"O beijo da morte": a controversa reforma de imigração que uniu Macron e Le Pen

21 dez 2023, 22:00
Le Pen, Macron

Após um primeiro chumbo, o parlamento francês acaba de dar luz verde a uma controversa lei que o presidente Macron diz ser “um escudo” para proteger França do seu “problema de imigração”. A aprovação do pacote legislativo, que levou o ministro da Saúde a demitir-se, veio expor as cisões internas da coligação, com a esquerda a acusar Macron de "copiar" o manifesto da extrema-direita. Entre as medidas mais controversas está a distinção entre “cidadãos” e “imigrantes”, mesmo para os que vivem legalmente no país

Um chumbo, uma reformulação et voilà: França vai ter novas leis mais duras para controlar a imigração, uma reforma que o presidente francês diz ser necessária face ao "problema" que o país enfrenta após a Assembleia Nacional ter aprovado uma versão revista do pacote que tinha chumbado na semana anterior sem qualquer debate, fruto das cedências de Emmanuel Macron aos partidos mais à direita do seu Renascimento.

Numa entrevista ao programa C à vous, após a votação, Macron fez questão de garantir que não “traiu” os franceses que o reelegeram em 2022 para evitarem uma presidência Le Pen, isto depois de a líder do Reagrupamento Nacional (RN, ex-Frente Nacional) ter celebrado a “vitória ideológica” do seu partido e de o deputado Edwige Diaz, também do RN, ter descrito a nova lei como “incontestavelmente inspirada por Marine Le Pen”. Vários deputados da extrema-direita votaram a favor das medidas, que mesmo sem esses votos teriam passado graças ao apoio da bancada conservadora dos Republicanos, fundado por Sarkozy e liderado por Éric Ciotti.

Macron defende a nova lei como “um escudo de que o país precisa”, que está “muito claramente desenhada para desencorajar a imigração ilegal” e que “vai permitir lutar contra o que alimenta o Reagrupamento Nacional”. Na mesma entrevista, Macron também garantiu que, apesar do “problema de imigração”, França “não está sobrecarregada de imigrantes”.

Sob a nova legislação, o país passa a ter quotas migratórias, torna mais difícil a naturalização dos filhos de imigrantes e impõe um período de espera de cinco anos para migrantes legais que queiram ter acesso a prestações sociais, que pode ser reduzido para 30 meses se o candidato tiver um emprego. Macron argumenta que a lei também contém medidas liberais para “facilitar a integração”, como a regularização de migrantes com trabalho em setores com escassez de mão de obra, como o da construção civil, saúde e cuidados e hotelaria e restauração. Mas vem acompanhada de controversas alíneas, uma delas proposta precisamente pela extrema-direita, que “faz a discriminação entre cidadãos e migrantes, mesmo aqueles que vivam no país legalmente, para determinar a sua elegibilidade para prestações sociais”.

Cábulas da extrema-direita

Numa França tradicionalmente aberta a acolher refugiados e imigrantes, mas a braços com a inflação, uma crise na habitação e o aumento de chegadas de requerentes de asilo, a aprovação da reforma por um governo centrista promete agitar as águas a seis meses das europeias e está já a causar ondas dentro da coligação liderada por Macron, que tem visto a sua vida mais dificultada desde que o Renascimento perdeu assentos parlamentares nas eleições de 2022.

Na terça-feira, quase um quarto dos deputados pró-Macron absteve-se (32) ou votou contra a proposta (27). "Algumas medidas desta lei deixam-me muito desconfortável”, disse Yaël Braun-Pivet, presidente da Assembleia Nacional que integra o partido do presidente. Em protesto, o ministro da Saúde, Aurélien Rousseau, pediu demissão imediata do cargo, que a primeira-ministra aceitou. A própria Élisabeth Borne, numa entrevista à rádio France Inter e questionada sobre se partes da lei são inconstitucionais, respondeu: “Sim, posso confirmar que sim.”

Borne reconhece que algumas medidas suscitam “dúvidas”, que foram partilhadas com os conservadores durante as negociações, e adiantou que, após ter “cumprido o seu dever”, a lei vai ter de “evoluir” e “o Tribunal Constitucional vai analisar”. Perante tudo isto, o porta-voz do governo viu-se forçado a desmentir que haja uma “rebelião” contra o presidente em curso, assegurando que “é normal que os ministros tenham questões”.

À esquerda dos centristas, Macron é acusado de copiar o controverso manifesto de décadas de Jean-Marie Le Pen e da filha, onde se invoca uma “preferência nacional” sob a qual as prestações e apoios do Estado devem ser “primeiro para os franceses”. Elsa Faucillon, deputada comunista, diz que o governo está a usar exatamente as mesmas palavras e ideias da extrema-direita, indo até mais longe do que Giorgia Meloni em Itália. Olivier Faure, líder dos socialistas, avisou que “a História vai lembrar-se daqueles que traíram as suas convicções”.

Num comunicado conjunto, 50 grupos e associações de ativistas, incluindo a Liga Francesa de Direitos Humanos, criticam o que dizem ser a “lei mais regressiva dos últimos 40 anos para os direitos e as condições de vida dos estrangeiros, incluindo aqueles que vivem há muito em França”. E 32 dos 101 departamentos de França, incluindo Paris, já deixaram claro que não vão aplicar medidas que dificultem o acesso de não-cidadãos aos programas e apoios do Estado.

Mesmo sem rebelião, a aproximação de Macron à extrema-direita pode vir a provar-se o que alguns media já definiram como "o beijo da morte". Com esta vitória agridoce para o presidente, o seu partido vê-se forçado a debater estratégias e a encontrar consensos antes das eleições europeias de junho. E como escreve o Politico, "ainda não é claro se sacrificar as relações com os deputados mais à esquerda para aprovar legislação que é popular junto dos eleitores vai traduzir-se em mais votos nas urnas".

UE também avança com reforma

A nova lei francesa foi aprovada na véspera de os 27 Estados-membros e o Parlamento Europeu terem chegado a um pré-acordo quanto ao Novo Pacto de Migrações e Asilo, que prevê a criação de centros de detenção de migrantes nas fronteiras externas da UE e que pretende, entre outras, agilizar a deportação daqueles que veem os seus pedidos de asilo rejeitados.

Falando num “dia verdadeiramente histórico”, após três anos de intensas negociações, a presidente do Parlamento Europeu disse que esta reforma vai aliviar a carga sobre os países do sul da Europa, como Itália, Grécia e Espanha. “Não foi fácil, desafiámos todas as expectativas e provámos que a Europa consegue dar garantias numa questão que importa aos cidadãos”, disse Roberta Metsola. Admitindo que o pacto “não é perfeito” e que alguns “pontos complexos” têm de ser analisados, Metsola sublinhou: “O que temos agora em cima da mesa é muito melhor para todos nós do que o que tínhamos anteriormente.”

O acordo preliminar aprovado na quarta-feira será agora transposto para um texto legal com emendas, que segue para votação final no Parlamento Europeu e, depois, no Conselho. O Novo Pacto marca uma clara vitória para a presidente da Comissão Europeia, que definiu a imigração como uma das prioridades do seu mandato, a seis meses de abandonar o cargo. “A migração é um desafio europeu que requer soluções europeias”, destacou Ursula von der Leyen no final dos encontros de ontem. “[O Novo Pacto] significa que são os europeus que vão decidir quem vem para a UE e quem pode cá ficar, não os traficantes. Significa proteger aqueles que precisam."

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