Filho de Marcelo escreveu que o pai tratou do assunto das gémeas e invocou o "Pai" para repreender o atraso da funcionária de Marcelo

5 abr, 19:30
Com o filho, Nuno Rebelo de Sousa - Cerimónia da Tomada de Posse do novo Presidente da República Portuguesa Marcelo Rebelo de Sousa 09.03.16 Foto: Lusa

A troca de emails envolve o Presidente da República, o chefe da Casa Civil e a assessora dos Assuntos Sociais no caso das gémeas luso-brasileiras

Foi o próprio filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, que escreveu ter havido intervenção do seu pai no caso das gémeas luso-brasileiras tratadas no hospital de Santa Maria, segundo o relatório da Inspeção-geral da Saúde (IGAS) a que a CNN Portugal teve acesso. “Segue um assunto que o meu Pai passou para a Dra. Maria João Ruela, mas até hoje nada evoluiu e ninguém falou com os Pais das crianças”, lê-se no email enviado à assessora de Marcelo Rebelo de Sousa.

A troca de emails iniciada por Nuno Rebelo de Sousa a 21 de outubro de 2019 foi divulgada esta quinta-feira no relatório da IGAS, e mostra qual foi o envolvimento do chefe de Estado, de uma sua assessora e do chefe da Casa Civil no caso das gémeas. 

Segundo o relatório, a troca de mensagens entre os quatro começa quando o Presidente da República é solicitado pelo seu filho "Dr.” Nuno Rebelo de Sousa para intervir no "processo" das duas crianças diagnosticadas com atrofia muscular espinhal. Os pais das crianças, segundo Nuno Rebelo de Sousa "são muito amigos de uns amigos nossos” – sublinhando “nossos”, e referindo-se a si e à sua mulher. Segundo a IGAS o email é, então, reencaminhado por Marcelo Rebelo de Sousa para o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, embora seja dirigido à assessora Maria João Ruela: “Pode perceber do que se trata”. Maria João Ruela responde a Nuno Rebelo de Sousa, informando que se encontra a “ver a situação das gémeas”. Falta saber “se a família se encontra em Portugal e em caso afirmativo como poderei contactar”, escreve Maria João Ruela. A mensagem é devolvida, com a informação de que se encontram em São Paulo e os respetivos contactos.

A 22 de outubro de 2019, Marcelo recebe novos detalhes sobre o caso, através de um email de Frutuoso de Melo: as gémeas estão a “ser seguidas em São Paulo, onde residem, e não em Lisboa. Escreveram para o Conselho de Administração do Centro Hospitalar a pedir tratamento, ainda não obtiveram resposta. Ao que sabemos, o processo foi recebido e estão a ser analisados vários casos do mesmo tipo, estando analisados doentes internados e seguidos em hospitais portugueses, sendo que a capacidade de resposta é naturalmente muito limitada e depende inteiramente de decisões, médicas, do hospital e do Infarmed”. O chefe da Casa Civil não obtém resposta do Presidente da República.

Mais tarde, ainda segundo o relatório da IGAS, Nuno Rebelo de Sousa pede explicações à assessora dos Assuntos Sociais, Maria João Ruela, que por sua vez pede orientações a Frutuoso de Melo e este reenvia-lhe a informação que havia transmitido ao chefe de Estado. Maria João Ruela reencaminha esta informação para Nuno Rebelo de Sousa.   

Marcelo em xeque

O filho do Presidente insiste novamente por email, questionando a assessora sobre a possibilidade de “acelerar a análise e o processo” e perguntando se os pais das crianças devem deslocar-se para Portugal. Depois de passar quase uma semana sem obter resposta, tenta novamente junto do chefe da Casa Civil e relembra a assessora do impasse com uma nova mensagem: “Segue um assunto que o meu Pai passou para a Dra. Maria João Ruela, mas até hoje nada evoluiu e ninguém falou com os Pais das crianças”.

Quem responde, no mesmo dia, é Frutuoso de Melo e explica que “há uma lista de espera, sendo que a prioridade é dada aos casos que já estão a ser tratados nos hospitais portugueses, daí que ainda não tenham sido contactados, nem é previsível que o sejam rapidamente”. O responsável pela Casa Civil acrescenta ainda que “o SNS cobre em primeiro lugar as situações das pessoas que residem ou se encontrem em Portugal” e sublinha que “os portugueses residentes no estrangeiro têm o direito a ser tratados pelos sistemas de saúde dos países onde residem, nos termos das convenções de segurança social ou, no caso da EU, da legislação europeia”. Nuno Rebelo de Sousa agradece, referindo que “o Pai das crianças está na disposição de ir a Portugal saber se tem alguma chance de conseguir o tratamento em Portugal caso as crianças se mudem agora para Portugal”.

Maria João Ruela surge, no entanto, novamente na equação, que solicita a entrada da documentação das crianças e a elaboração de ofícios para o gabinete do primeiro-ministro e da secretária de Estado das Comunidades Portuguesas. O ofício nº 12749 é enviado no mesmo dia ao chefe de gabinete do primeiro-ministro Francisco André. Frutuoso de Melo informa imediatamente Nuno Rebelo de Sousa: “Depois de termos contactado o hospital, achámos adequado envolver o Governo, pois a gestão das listas de espera é da responsabilidade do Ministério da Saúde”.

Todos estes contactos ocorreram em 10 dias. Em 10 dias Nuno Rebelo de Sousa pede a intervenção da Presidência da República no processo das gémeas luso-brasileiras, referindo o próprio pai no seguimento do caso que visa o tratamento das crianças em Portugal com o medicamento Zolgensma, entretanto recebido em 2020 no valor de quatro milhões de euros.

O relatório da IGAS sublinha que na investigação realizada “os factos foram analisados em duas linhas de investigação, ou seja, a referenciação das crianças para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a prestação de cuidados de saúde após a marcação de consulta”. A investigação concluiu que “não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria” e “a prestação de cuidados de saúde decorreu sem que tenham existido factos merecedores de qualquer tipo de censura”.

Segundo a IGAS “foram emitidas três recomendações dirigidas à Unidade Local de Saúde de Santa Maria, E.P.E. Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, (E.P.E.), INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. e Secretaria-Geral do Ministério da Saúde”, com um prazo de 60 dias para a sua implementação.

Belém procurou condicionar investigação

A IGAS conclui ainda que a Presidência da República “condicionou a direção da instrução” do caso, de acordo com o capítulo “Condicionantes na execução da inspeção”, onde é referida a recusa inicial por parte de Belém no envio da documentação pedida por aquela entidade. Uma informação que fez a manchete do Expresso desta sexta-feira.

Na sequência da abertura do inquérito do Ministério Público e da comunicação do Presidente da República ao país a 4 de dezembro do ano passado - que negou a sua intervenção pessoal no processo, mas admitiu ter recebido um email do filho – a IGAS solicitou informação à Casa Civil “quanto à natureza e às datas dos contactos mantidos” entre Maria João Ruela e o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, ao qual pertence o Hospital de Santa Maria, bem como “a identificação do(s) interlocutor(es) no CHULN com remessa da documentação eventualmente trocada neste âmbito”. 

A Presidência, por sua vez, informou que toda a documentação tinha sido enviada para o MP, sendo que estaria sob segredo de justiça. Foi quando jornalistas da TVI interpuseram junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, a 23 de janeiro de 2024, que os documentos foram obrigatoriamente disponibilizados à Inspeção-Geral da Saúde. Mas a IGAS revela que este impasse acabou por condicionar a forma como a investigação estava a ser conduzida, impedindo a entidade de ouvir atempadamente alguns intervenientes no processo, entre eles a médica que acompanhou as crianças no Santa Maria, Teresa Moreno, e membros do Centro Hospitalar de Lisboa Central, onde se insere o Hospital D. Estefânia.

Além disso, o documento refere que a documentação em causa se apresentava “incongruente” face às declarações de Marcelo à comunicação social e aos testemunhos de Teresa Moreno e do neuropediatra da D. Estefância, José Pedro Vieira, mas ressalva: “Não se verificou ter impacto nas conclusões do processo”.

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