O que é o pacto migratório da União Europeia e como vai mudar as regras de acolhimento dos migrantes

CNN Portugal , MJC
20 dez 2023, 22:10
Migrantes resgatados pelo Salvamento Marítimo em Espanha (EPA)

Os países da União Europeia acordaram uma série de regras em matéria de migração, asilo, integração e gestão de fronteiras que tornam mais exigentes os requisitos para a receção e concessão de asilo. Os responsáveis políticos mostram-se satisfeitos, mas as organizações humanitárias receiam que os migrantes sofram ainda mais e não vejam os seus direitos respeitados

Os Estados-membros chegaram esta quarta-feira a um acordo político sobre uma vasta reforma da política de asilo e migração da União Europeia (UE), um dos pacotes legislativos que mais atritos causou na UE desde que, em 2015, mais de um milhão de pessoas chegaram às suas fronteiras. O fluxo migratório continua e, em 2023, cerca de 273 mil pessoas terão chegado à Europa, segundo a Organização Internacional para as Migrações.

O que é o Pacto da UE sobre Migração e Asilo?

Trata-se de um pacote de regras comuns para os Estados-membros em matéria de migração, asilo, integração e gestão de fronteiras. Está organizado em cinco regulamentos: o controlo e processamento de dados de migrantes; o controlo das fronteiras externas; a proteção judicial e os recursos; a administração de possíveis crises migratórias; e, por fim, a gestão e atendimento dos requerentes de asilo, e sua distribuição entre os países membros.

O pacto não abrange as operações de busca e salvamento no mar, que são regulamentadas por leis marítimas internacionais, nem as autorizações de residência ou trabalho e os procedimentos de atribuição de visto.

Qual é o seu objetivo?

A Comissão Europeia apresentou o projeto do pacto em setembro de 2020 para quebrar o impasse político entre os membros sobre a reforma da política de asilo e migração da UE. Esta tem sido uma das questões que mais atritos tem causado nos últimos anos entre os 27, não só devido às exigências dos países mediterrânicos de um mecanismo de distribuição solidária dos requerentes de asilo, mas, sobretudo, devido à oposição de governos que incluem ou incluíram partidos de extrema-direita. Estes últimos, como a Polónia e a Hungria, recusaram-se a acolher requerentes de proteção internacional que desembarcassem em Estados como Itália, Espanha ou Grécia.

Este acordo “significa que os europeus, e não os traficantes [de pessoas], decidirão quem vem para a UE e quem pode ficar", "significa proteger quem precisa”, congratulou-se a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que considerou que o acordo vai dotar a União Europeia dos instrumentos necessários responder a "países hostis que querem desestabilizar" os 27. "O pacto vai garantir que os Estados-membros partilhem o esforço com responsabilidade, demonstrando solidariedade com os [países] que protegem as nossas fronteiras externas enquanto previnem a migração ilegal na UE", disse Ursula von der Leyen, em comunicado.

Quais as medidas previstas?

As regras aplicam-se à primeira entrada no território da UE, na qual os recém-chegados serão "rastreados" e serão recolhidos dados biométricos – incluindo o perfil racial. Todos os migrantes irregulares que cheguem às fronteiras europeias serão submetidos a verificações de saúde, identidade, segurança e avaliação de vulnerabilidade. Estes dados serão recolhidos numa base de dados da UE denominada Eurodac e as autoridades responsáveis ​​pela aplicação da lei, incluindo a agência policial da UE, Europol, terão acesso a eles. Esta avaliação durará no máximo sete dias.

Não haverá assistência jurídica gratuita durante os procedimentos para os requerentes, que, no entanto, podem beneficiar de aconselhamento financiado pela UE.

Serão criados diferentes canais de pedido e alguns requerentes entrarão nos Procedimentos de Asilo Fronteiriço, que são obrigatórios para três categorias: os provenientes de países com uma taxa de aceitação de asilo inferior a 20%, aqueles - incluindo menores - que se integram na categoria de “risco de segurança” e aqueles que “enganaram” as autoridades.

O pacto endurece os requisitos para receção e concessão de asilo e estabelece que uma parte dos requerentes desta proteção internacional que acabem na UE (pelo menos 30 mil pessoas por ano) seja assumida por todos os países da comunidade. Com exceções como as previstas no conceito de “solidariedade obrigatória mas flexível”, que permite aos membros evitar esta obrigação pagando 20 mil euros por cada requerente rejeitado a um fundo comum europeu. 

Esta ajuda transnacional pode assumir a forma de relocalização (também no âmbito do reagrupamento familiar), contribuições financeiras, fornecimento de material operacional, mas também a construção de muros, vedações, ferramentas de vigilância e acordos com países terceiros.

Para efeitos de reagrupamento familiar, os irmãos não são reconhecidos e apenas podem candidatar-se aqueles que são cidadãos da UE ou residentes de longa duração num país da UE.

Numa situação de chegadas maciças, quando o “fluxo excecional de nacionais de países terceiros provoque o colapso do sistema nacional de asilo”, pode ser acionado o Regulamento de Gestão de Crises e, nesse cenário, serão aplicadas diferentes disposições nas fronteiras da UE.

Que críticas são feitas a este acordo?

No Parlamento Europeu, os maiores críticos são os Verdes e a Esquerda. Também as organizações de direitos humanos, como a Amnistia Internacional, consideram que este acordo “atrasará durante décadas a legislação europeia em matéria de asilo” e que o seu “resultado provável é um aumento do sofrimento em todas as fases do percurso de uma pessoa para pedir asilo na UE”, alertou a Amnistia Internacional em comunicado.

Segundo esta organização, o acordo representa “o risco de normalizar medidas de emergência desproporcionais nas fronteiras europeias, estabelecendo um precedente perigoso para o direito de asilo em todo o mundo”. Estas medidas de emergência são, por exemplo, um novo mecanismo que prevê “uma possível revogação temporária dos procedimentos normais de asilo” em momentos de aumento das chegadas de migrantes; em caso de “força maior” ou “instrumentalização” destas pessoas, quando “países terceiros ou agentes não estatais hostis usam imigrantes para desestabilizar a UE”.

O prazo e os critérios do procedimento de controlo inicial para classificar os migrantes também preocupam as ONG, que temem que esses sete dias se transformem em detenções prolongadas, mesmo de crianças, nas fronteiras europeias. As ONG, por sua vez, denunciam a possibilidade de fugir ao mecanismo de distribuição dos requerentes de asilo entre os 27, pagando quantias cujo destino não é claro e que poderiam ser utilizadas para reforçar a proteção das fronteiras. Para a Save the Children este é um pacto "historicamente mau": “é evidente” que a prioridade deste pacto era “fechar as fronteiras, não proteger as pessoas, incluindo as famílias e as crianças que escapavam à violência, ao conflito, à fome e à morte enquanto procuravam proteção na Europa”, escreve esta ONG.

O que acontecerá aos migrantes rejeitados?

Os migrantes irregulares rejeitados na entrada como requerentes de asilo serão encaminhados para o procedimento habitual de fronteira, cujo objetivo é devolvê-los aos seus países, uma deportação que não será interrompida mesmo que a pessoa interponha um recurso. Algumas ONG temem que os migrantes fiquem detidos durante vários meses, o que aumenta novamente o “perigo de que aqueles que procuram proteção tenham de permanecer no limbo, presos em condições semelhantes às de detenção, por muito mais tempo” do que inicialmente planeado”, alertou a ONG International Rescue Committee (IRC).

"Embora sejam urgentemente necessárias reformas na abordagem da UE ao asilo e à migração, o IRC está preocupado com o facto de muitas das alterações agora acordadas correrem o risco de exacerbar, em vez de resolver, os desafios existentes, tais como diminuir a pressão sobre os estados de primeira entrada, acabar com a violência nas fronteiras, defender o direito de asilo e criar um Sistema Europeu Comum de Asilo com regras e regulamentos claros", afirma o IRC.

A presidência espanhola destacou que este pacto “não exige a criação de centros de detenção de pessoas” e, no caso das pessoas que solicitam asilo, “o Estado garantirá que o requerente permaneça na fronteira externa enquanto decorre o procedimento”.

A UE também pode transferir um pedido de asilo para um Estado não membro da UE – como a Tunísia ou a Turquia – se for considerado um “país terceiro seguro” e o requerente aí tiver residido, mesmo que temporariamente. Na prática, isso permite que o requerente seja deportado. Essa possibilidade já existia mas, com o novo pacto, os critérios para a sua utilização são flexibilizados.

O que é um “país terceiro seguro”?

O novo pacto europeu prevê que qualquer Estado não pertencente à UE que conceda “proteção efetiva” aos requerentes de asilo será considerado um “país terceiro seguro”. Esse conceito não incluirá o acesso ao estatuto legal, cuidados médicos completos ou reagrupamento familiar, o que contraria os critérios da ONU, segundo o IRC. Esta ONG teme que a flexibilização da definição de “país terceiro seguro” dê lugar a deportações em massa para Estados que violam os direitos humanos.​

Quando entra em vigor este acordo?

Para já, o acordo é “provisório”, o que significa que tem de ser confirmado por uma votação formal dos deputados da UE, após as verificações jurídicas. 

O período de implementação será de dois anos. No entanto, é de esperar que alguns estados-membros consigam aplicar as novas disposições numa fase mais precoce.

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