"É uma falácia que venham para aproveitar os sistemas de saúde, educação e segurança social". O pacto da migração da UE reflete o poder crescente da extrema-direita. E é, ao mesmo tempo, uma tentativa de esvaziar a agenda dos populistas

20 dez 2023, 22:50
Nacio de resgate Open Arms

O tema da migração torna-se particularmente tóxico quando a economia entra em crise - a população descontente encontra nos imigrantes o bode expiatório perfeito. Este é o terreno perfeito para os populismos crescerem. Os moderados tentam reagir. "Os partidos de extrema-direita estão a caminhar da periferia para o centro. E, por outro lado, encontramos os partidos do regime no sentido dessas franjas, para captarem esse eleitorado", explica o politólogo José Filipe Pinto

Os Estados-membros chegaram esta quarta-feira a acordo sobre uma vasta reforma da política de asilo e migração da União Europeia (UE), que prevê um endurecimento das regras de acolhimento e medidas para deportar os estrangeiros que não sejam aceites. Perante isto, o politólogo José Filipe Pinto recorda as palavras de Adriano Moreira, que dizia que "a Europa ainda não aprendeu a lidar com os trópicos em casa", querendo isto dizer que "a Europa precisa dos trópicos porque não tem uma taxa de fecundidade que lhe permita a renovação das populações e também precisa dessa mão de obra, mas, depois, não consegue absorver essa população de que tanto necessita devido a problemas de índole cultural".

Este é um dos pacotes legislativos que mais atritos causou na UE desde que, em 2015, mais de um milhão de pessoas chegaram às suas fronteiras. No ano passado, houve 874 mil pedidos de asilo na UE e nos primeiros oito meses desde ano o número foi de quase 650 mil, para além dos 4,2 milhões de ucranianos que receberam proteção temporária desde a invasão da Rússia em fevereiro de 2022. Os centros de receção em todo o norte da Europa estão a atingir a sua capacidade, embora o número de pessoas que viajam efetivamente para a Europa sem autorização seja muito inferior ao de 2015 e 2016.

"Há um crescente descontentamento da população com os problemas do fenómeno migratório", considera o politólogo. "Nunca se põe o foco no ativo que essa população pode representar - na resolução da falta de mão de obra, na reposição da população - fala-se sempre no elemento negativo, no choque de civilizações, no racismo, na insegurança, no contacto com culturas muito diferentes. Isso cria na opinião pública uma ideia generalizada de que os migrantes representam não um ativo mas um passivo, que todos os problemas e toda a insegurança são provocados pelos imigrantes. A crença de que os imigrantes põem em causa a identidade europeia e a segurança colhe junto de uma população europeia envelhecida, mais conservadora, menos aberta à mudança. Acreditam que eles vêm para cá para aproveitar os sistemas de saúde, educação, segurança social. Mas isto é uma falácia. Não quer dizer que não haja imigrantes que não representem uma ameaça para o tecido social, sobretudo no caso dos extremismos religiosos, mas na generalidade isso não acontece. Além disso, eles contribuem muito mais do que beneficiam", argumenta.

Ainda esta semana foi noticiado que, em Portugal, em 2022, os imigrantes contribuíram com 1.861 milhões de euros para a Segurança Social enquanto beneficiaram de apenas 257 milhões de euros em prestações sociais - ou seja, o valor das contribuições é sete vezes superior ao das ajudas que receberam. 

Apesar disso, os responsáveis políticos, apercebendo-se desta tendência da opinião pública, acabam por se deixar influenciar, na opinião de José Filipe Pinto. "Vivemos numa democracia do público, mais do que uma democracia representativa. Os temas do debate político são muito influenciados pela comunicação social, os spin doctors, os opinion makers", aponta. "Por isso, a legislação tende a tornar-se mais conservadora." 

O tema da migração torna-se particularmente tóxico quando a economia entra em crise - a população descontente encontra nos imigrantes o bode expiatório perfeito. Por isso, a chegada permanente de migrantes, sobretudo através do Mediterrâneo, e o elevado número de pedidos de asilo está a empurrar os eleitores para partidos populistas e de extrema-direita, colocando-os estes cada vez mais próximos de, ou mesmo em, cargos públicos. Estão no bom caminho para obter resultados significativos nas eleições para o Parlamento Europeu em junho e para exercer maior influência sobre a elaboração de políticas da UE, avisa o Financial Times. Temendo uma reação eleitoral, os governos estão a procurar soluções cada vez mais drásticas, indo ao encontro daquilo que julgam ser as preocupações da população - por exemplo, tomando medidas para reduzir o número de chegadas às suas fronteiras ou tornando mais difícil a concessão de asilo.

Segundo José Filipe Pinto, "a Europa já experimentou três estratégias de combate aos movimentos populistas: primeiro, tentou um cordão sanitário; depois a tentativa de os desapossar das suas bandeiras; e, por fim, "integrá-los no sistemas, tentando dar-lhes as benesses do sistemas, com o intuito de eles mudarem a sua essência". Porém, "nenhuma destas estratégias deu resultados" e não foi possível parar o crescimento do populismo. "Neste momento, já há exemplos de países, como a Hungria, onde a extrema-direita chegou ao poder, ou onde estes partidos constituem os principais elementos da oposição."

Alguns políticos temem que o foco na imigração impulsionado por grupos de extrema-direita seja em detrimento de políticas eficazes. “Não importa se nesses países o problema é realmente grande ou não, ou se há até refugiados, estes partidos [de extrema-direita] colocam este tema no topo da agenda”, diz Katarina Barley, ex-juíza alemã e agora deputada de centro-esquerda do Parlamento Europeu, ao Financial Times. “E isso cria uma dinâmica na discussão política que não tem como objetivo a resolução de problemas.”

"O que acontece é que verdadeiramente há uma cedência dos partidos do centro (ou do centro-direita) aos ideais defendidos pelos partidos do populismo cultural-identitário ou mesmo da direita radical", defende José Filipe Pinto. "Os partidos de extrema-direita estão a caminhar da periferia para o centro. E, por outro lado, encontramos os partidos mainstream - do regime - no sentido dessas franjas, para captarem esse eleitorado. Essa mistura acaba por ser tóxica. Não são os partidos moderados que estão a moderar os partidos radicais, são os partidos radicais que estão a radicalizar os partidos moderados", explica o politólogo.

A imigração, seja por parte de pessoas que fogem de perseguições ou que procuram trabalho, tem sido desde há muito uma questão controversa na Europa, opondo os principais países de entrada a outros que se tornam destinos. Cerca de 2,3 milhões pediram asilo na UE entre 2015 e 2016, muitas delas fugindo da guerra civil na Síria. A Alemanha, que então desfrutava de uma economia em expansão, recebeu um número sem precedentes, com a famosa declaração da chanceler Angela Merkel: “Podemos fazer isto”. Não por acaso, a extrema-direita entrou no parlamento alemão pela primeira vez em 2017. Atualmente, a AfD é o segundo partido mais votado na Alemanha.

A Itália com Georgia Meloni e os Países Baixos com Geert Wilders são dois exemplos de países que elegeram políticos da extrema-direita com uma agenda manifestamente anti-imigração. Mas na Áustria e na Suécia, a extrema-direita também tem cada vez mais votos. Em França, Marine Le Pen, com o seu posicionamento anti-imigração, nunca esteve tão bem nas sondagens de opinião e acabou de reivindicar uma "vitória ideológica", depois de o parlamento ter aprovado um pacote legislativo sobre imigração, defendido por Macron mas muito criticado por toda a esquerda e também pelos centristas, que visa reduzir os pedidos dos requerentes de asilo e acelerar as deportações. 

Com as sondagens a preverem bons resultados para os partidos populistas e de extrema-direita nas eleições para o Parlamento Europeu em junho, os deputados e responsáveis ​​dos Estados-membros estão a "correr para adotar reformas nas regras de migração e asilo da UE antes das eleições", indica o Financial Times, e tentar resolver o problema para que ele não seja o tema dominante da campanha eleitoral. “A migração tem de ser resolvida, caso contrário dominará o cenário político em 2024”, afirmou ao jornal Manfred Weber, que dirige o Partido Popular Europeu, de centro-direita. “Se não conseguirmos limitar o número de chegadas até junho do próximo ano, então as eleições europeias serão provavelmente uma votação histórica para o futuro da Europa, com extremistas de esquerda e de direita [beneficiados]”, antecipou Weber.

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