Não é uma eleição, são 577. França vai fazer algo muito raro: um guia para entender a crise política

CNN Portugal , MJC
11 jun, 17:55
Marine Le Pen e Emmanuel Macron (AP)

Eleições estão marcadas para 30 de junho e 7 julho

França vai a eleições no final deste mês para eleger um novo governo. No rescaldo das eleições europeias, onde a extrema-direita foi a grande vencedora, o país enfrenta uma crise política cujo resultado é, para já, uma incógnita. À esquerda e à direita já há movimentações para estabelecer alianças - mas a direita está com dificuldades em entender-se e, ao ritmo a que os acontecimentos se têm sucedido, é difícil prever qual será o desfecho. Ao centro, o presidente Macron ainda só está a ver: deveria ter falado esta terça-feira mas adiou a conferência de imprensa para amanhã à tarde. Depois, à noite, será a vez do primeiro-ministro Gabriel Attal ser entrevistado pela TF1.

O que aconteceu?

O partido francês de extrema-direita Rassemblement National (União Nacional), liderado por Marine Le Pen e Jordan Bardella, conseguiu o primeiro lugar nas eleições para o Parlamento Europeu no domingo, com 31,4% dos votos. A coligação centrista liderada pelo partido Renaissance (Renascença) de Emmanuel Macron ficou num distante segundo lugar, com 14,6%, e muito perto do terceiro lugar, ocupado pelos socialistas.

Segundo os analistas, parte destes resultados tem que ver com o descontentamento dos franceses em relação a questões como a imigração, a criminalidade e o custo de vida. "Para mim, que sempre considerei que uma Europa unida, forte e independente é boa para a França, esta é uma situação que não consigo aceitar", disse Macron num discurso à nação no domingo à noite. "A ascensão de nacionalistas e demagogos é um perigo para a nossa nação. E também para posição da França na Europa e no mundo", acrescentou.

Macron reconheceu a derrota esmagadora: "A França precisa de uma maioria clara para avançar com serenidade e harmonia", disse o presidente, anunciando a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de eleições legislativas.

Esta é uma iniciativa bastante rara em França: desde 1977 que não havia uma dissolução da Assembleia composta por 577 deputados.

As próximas eleições presidenciais em França estão marcadas para 2027.

Porque é que Macron convocou eleições antecipadas?

Este é o segundo grande revés eleitoral para Macron, que perdeu a maioria absoluta no parlamento semanas depois de ter sido reeleito para um segundo mandato presidencial em 2022. A coligação centrista que formou governa desde então com uma maioria relativa, mas tem tido dificuldades em aprovar certos projetos de lei sem o apoio da oposição. Em janeiro, Macron nomeou Gabriel Attal, de 34 anos, primeiro-ministro, na sequência da demissão de Élisabeth Borne.

Apesar dos maus resultados nas eleições europeias, Emmanuel Macron não tinha obrigação de dissolver o Parlamento. No entanto, a posição do executivo estava agora muito mais fragilizada. Muitos analistas acreditam que os deputados mais conservadores se preparavam para ameaçar derrubar o governo no outono. Convocar eleições antecipadamente pode ser uma forma de Macron impedir a organização da oposição, e é também uma forma de apresentar aos eleitores uma escolha difícil entre ele e a extrema direita, apelando ao receio que muitos têm de um governo extremista.

Alguns comentadores políticos defendem ainda que Macron quer que a extrema-direita ganhe para que se torne impopular antes das eleições presidenciais de 2027, o que seria uma jogada bastante arriscada.

Marine Le Pen, por seu lado, congratulou-se com o anúncio das eleições e expressou confiança de que o seu partido conseguirá uma maioria. "Estamos prontos para mudar o país", disse, no domingo à noite. "Estamos prontos para exercer o poder se o povo francês depositar a sua confiança em nós nestas futuras eleições legislativas. Estamos prontos para dar a volta ao país, prontos para defender os interesses dos franceses, prontos para pôr fim à imigração em massa, prontos para fazer do poder de compra dos franceses uma prioridade", acrescentou Le Pen.

Quando são e como funcionam as eleições?

As eleições para os 577 lugares na Assembleia Nacional serão realizadas em duas voltas: a primeira em 30 de junho e a segunda em 7 de julho.

Os 577 círculos eleitorais de França – cada um com um deputado – abrangem o continente, os departamentos e territórios ultramarinos, e ainda os cidadãos franceses que vivem no estrangeiro. Os candidatos que obtiverem o maior número de votos em cada círculo eleitoral ganham o seu lugar como deputados. Isso significa que haverá 577 eleições separadas, com dinâmicas e peculiaridades locais.

Qualquer candidato pode competir na primeira volta em cada círculo, mas existem condições específicas para chegar à segunda volta. Embora na maioria dos casos a segunda volta conte com os dois mais votados, em raras ocasiões poderá contar com três ou até quatro candidatos. Quem obtiver mais votos nessa segunda volta vence a disputa. Se um candidato obtiver mais de 50% dos votos pode, sob algumas condições, vencer imediatamente, sem precisar de ir a segunda volta.

O que está em jogo?

A presidência é o cargo político mais importante em França, com amplas capacidades para governar por decreto. Mas a aprovação do Parlamento, e especialmente da Assembleia Nacional, é necessária na maioria das grandes mudanças políticas internas e em leis importantes, como o Orçamento do Estado ou alterações à Constituição.

Ao contrário do Senado, a outra câmara do Parlamento francês, a Assembleia Nacional é eleita diretamente pelo povo e pode derrubar um governo com uma moção de censura. Também tem mais margem de manobra para legislar e desafiar o executivo, e normalmente tem a palavra final se as duas câmaras discordarem sobre um projeto de lei.

O partido de Macron e os seus aliados centristas, que concorreram sob a denominação Ensemble! (Juntos), detêm atualmente 250 assentos na Assembleia Nacional, menos do que os 289 necessários para uma maioria absoluta (sozinho, o Renascença tem apenas 169 deputados). A União Nacional detém 88 lugares, enquanto os republicanos conservadores têm 61. Uma aliança de deputados de extrema esquerda, socialistas e verdes tem 149 assentos. O restante é detido por grupos menores e deputados independentes.

Apesar do seu triunfo nas eleições europeias, não é claro que a União Nacional conseguirá conquistar um número significativamente maior de lugares na câmara baixa do Parlamento francês, uma vez que são eleições bastante distintas.

Se Macron não conseguir reunir uma maioria parlamentar forte, poderá encontrar-se num cenário de "coabitação" - onde a presidência e a Assembleia Nacional estão em lados políticos opostos. Nesse cenário, Macron, a quem faltam ainda três anos para o fim do mandato presidencial, será obrigado a governar com um primeiro-ministro de um partido político diferente do seu, o que poderá potencialmente bloquear grande parte da sua agenda interna. A política externa, que é uma prerrogativa presidencial, teoricamente permaneceria praticamente intocada.

Houve apenas três situações de "coabitação" anteriormente, a mais recente em 1997, quando o presidente Jacques Chirac dissolveu o parlamento pensando que conseguiria uma maioria mais forte, mas perdeu inesperadamente para uma coligação de esquerda liderada pelo Partido Socialista. O socialista Lionel Jospin tornou-se primeiro-ministro durante cinco anos, período durante o qual aprovou uma lei sobre a semana de trabalho de 35 horas.

Como é que a esquerda se está a organizar para as eleições?

Os líderes dos principais partidos políticos de esquerda anunciaram esta segunda-feira a constituição de uma Nova Frente Popular para apresentarem candidatos únicos em cada círculo eleitoral na primeira volta das próximas eleições legislativas: Marine Tondelier (Ecologistas), Olivier Faure (Partido Socialista), Fabien Roussel (Partido Comunista Francês) e Manuel Bompard (La France Insoumise - LFI) apareceram juntos para anunciar uma "aliança que visa unir forças humanistas, sindicais e associativas". Embora um acordo político ainda não esteja totalmente definido, existe para já uma declaração conjunta de intenções. "Somos um país que hoje se levanta para dizer não à extrema direita", afirmou o líder socialista Olivier Faure. "Mostramos a nossa vontade de concorrer unidos para propor uma alternativa a Emmanuel Macron", acrescentou Manuel Bompard, líder da LFI.

Entre os signatários, encontra-se também a Place Publique, o partido de Raphaël Glucksmann, e o partido da esquerda radical França Insubmissa, cujo líder, Jean-Luc Mélenchon, já elogiou "o bom trabalho que frustra a divisão com a qual Macron e Le Pen contavam". "É importante compreender que não pretendemos um efeito defensivo mas sim uma lógica de conquista democrática para a mudança da maioria parlamentar a partir desta eleição. Se soubermos organizar a campanha hiper-rápida que se forma, ela poderá estar ao nosso alcance", escreveu Mélenchon.

Resta saber qual será o nome do candidato a primeiro-ministro que vai unir todas estas vontades.

E à direita o que se passa?

Eric Ciotti, líder do partido de direita Republicanos, anunciou esta terça-feira que apoia uma aliança à direita para conquistar o maior número de deputados na Assembleia Nacional. "Precisamos de ter uma aliança e ao mesmo permanecermos nós mesmos", disse Ciotti à televisão TF1, acrescentando que já manteve conversações com Le Pen e Bardella nesse sentido e garantindo que os partidos têm uma visão coincidente dos "valores da direita".

Esta é a primeira vez que um líder de um partido tradicional francês apoia uma aliança com a extrema-direita. O Republicanos remonta ao líder do pós-guerra Charles de Gaulle e é o partido de ex-presidentes como Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. Mas se Eric Ciotti é da ala mais conservadora do partido, membros mais centristas já fizeram saber que não concordam com esta aliança. 

"Um partido político não é apenas uma pessoa", disse o líder dos republicanos no Senado, Bruno Retailleau, enquanto o seu homólogo na Assembleia Nacional, Olivier Marleix, concordou que o anúncio de Ciotti apenas o comprometia a ele e não ao partido.

Gerard Larcher, presidente do Senado, disse que "nunca aceitaria" um acordo com a União Nacional e apelou à demissão de Ciotti: "Na sequência das declarações de Eric Ciotti, acredito que ele já não pode presidir ao nosso movimento e deve renunciar ao seu mandato como presidente dos Republicanos”, escreveu na rede social X (antigo Twitter):

Já Marine Le Pen elogiou "a escolha corajosa" e o "sentido de responsabilidade" de Ciotti, dizendo esperar que um número significativo de figuras do partido apoiem esta decisão. "Quarenta anos de um pseudo cordão sanitário, que causou a derrota em muitas eleições, estão a terminar", congratulou-se Le Pen. O outro partido da extrema-direita, o Reconquista, de Eric Zemmou e Marion Maréchal (sobrinha de Le Pen), encetou conversações com vista a uma eventual aliança com a União Nacional, mas, já esta tarde, Maréchal anunciou que não foi possível chegar a qualquer entendimento.

Da esquerda, a reação não podia ser outra: “A aliança anunciada entre os Republicanos e a União Nacional marca uma viragem na história do nosso país”, afirmaram os partidos de esquerda aliados na "Nova Frente Popular", num comunicado divulgado ao início da tarde.

Como seria a "coabitação" com a União Nacional?

Jordan Bardella, o popular protegido de Marine Le Pen, de 28 anos, e líder da União Nacional, será o candidato da extrema-direita ao cargo de primeiro-ministro de França.

Com eleições antecipadas, no caso de a União Nacional ser chamada a governar, é provável que o programa recupere alguns dos pontos essenciais do manifesto apresentado por Le Pen em 2022, defendendo, por exemplo, a prioridades dos cidadãos franceses no acesso à habitação social, o processamento de pedidos de asilo fora de França e a eliminação do imposto sobre heranças para famílias de classe média e de baixos rendimentos. 

Governo e presidente irão discordar em muitos pontos - por exemplo, Macron é um crente convicto na União Europeia , enquanto a União Nacional é declaradamente eurocética -  que pode causar alguma tensão interna e, inclusivamente, ter consequências na economia e nos mercados.

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