"A camisola amarela de França vai ser a instabilidade e a incerteza". O que vai acontecer até à segunda volta das eleições (e depois dela) – e o que isso significa para a V República

1 jul, 18:16

Dos 577 lugares da Assembleia Nacional francesa, apenas 76 foram eleitos à primeira volta, 39 da extrema-direita e 32 da Nova Frente Popular. Até ao final de terça-feira, decorre o período de novas inscrições e, mais importante, de desistências nos círculos eleitorais onde existe o risco de o Reagrupamento Nacional voltar a ganhar, uma tentativa da esquerda e do centro para criar um cordão sanitário ao partido de Marine Le Pen e Jordan Bardella. É quase certo que serão eles os vencedores na segunda volta, mas com quantos deputados? Vem aí uma coabitação de combate ou um governo tecnocrata? E quem vai beneficiar mais com este caos até às presidenciais de 2027?

Houve poucas ou nenhumas surpresas no domingo, na primeira volta das legislativas antecipadas em França. Como as sondagens previam, o Reagrupamento Nacional (RN) de Marine Le Pen e do seu protegido, Jordan Bardella, venceu as eleições, com cerca de 34% dos votos, seguidos da coligação Nova Frente Popular (NFP), que uniu o França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon aos socialistas e outros partidos de esquerda, com 28,5%, e do Ensemble! do presidente centrista Emmanuel Macron e do seu primeiro-ministro, Gabriel Attal, com 20,5%. As percentagens totais, contudo, importam pouco neste modelo eleitoral. 

“Não faz o mínimo sentido aquilo que ontem [domingo] os comentadores passaram o tempo a dizer sobre os 34%, os 28% e os 20%, isso é para as europeias e presidenciais, nunca para as legislativas em França”, explica José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais e movimentos populistas. “O que interessa é tão simplesmente qual é a percentagem em cada uma das circunscrições, porque aí é que percebemos onde há segunda volta e entre quantos candidatos.”

Dos 577 lugares da Assembleia Nacional a votos, apenas 76 foram atribuídos na primeira volta – o RN conseguiu eleger 39 deputados, ao atingir mais de 50% de votos em círculos eleitorais onde mais de 25% dos eleitores votaram, contra 32 eleitos pela NFP, dois para o Ensemble! e outros três eleitos por movimentos políticos menores. Contas feitas, isto significa que ainda há 501 assentos parlamentares em disputa no próximo domingo, 7 de julho. E para garantir um cordão sanitário para travar a extrema-direita, esta terça-feira será o novo Dia D destas eleições antes da segunda volta.

“O que vai acontecer, o que já está a acontecer, é que há uma negociação entre os diferentes candidatos e partidos, e não se trata aqui de uma negociação só entre partidos, porque isto é uma eleição uninominal, o candidato também conta e há muitos anticorpos, tanto à esquerda como à direita, e nem todos os candidatos podem seguir as indicações dos seus líderes para desistir”, esclarece José Filipe Pinto. 

Na prática, os candidatos têm até às 18:00 de terça-feira para se inscreverem para a segunda volta e o que está agora em curso é um “processo de negociação e de muita pressão política de uns campos sobre outros para haver desistências de candidatos neste ou naquele círculo, na tentativa de bipolarizar a segunda volta”, acrescenta Ricardo Borges de Castro, conselheiro do European Policy Center (EPC) e analista de assuntos europeus e globais. “É preciso ver como é que este processo se desenrola.”

Jordan Bardella já disse que não aceitará a nomeação para primeiro-ministro se vencer a segunda volta sem maioria qualificada no parlamento (AP)

Republicanos podem ter algum impacto

As negociações em curso para recalibrar as intenções de voto e tentar reunir o máximo de eleitores em torno de candidatos alternativos à extrema-direita em cada círculo eleitoral deixa a descoberto que o futuro em França já chegou. Com acordos difíceis de alcançar, desde o anúncio dos resultados da primeira volta, os rostos de cada movimento têm-se desdobrado em avisos sobre a necessidade de fazer cedências e agir em nome de um bem comum maior.

“A nossa estratégia é clara: nem um voto a mais, nem um deputado a mais para o Reagrupamento Nacional”, disse Jean-Luc Mélenchon, líder do partido de extrema-esquerda França Insubmissa, que integra a NFP com os socialistas, os comunistas e os ecologistas – Mélenchon que, juntamente com o líder socialista, Olivier Faure, anunciou que a esquerda vai retirar as suas candidaturas nos círculos em que ficaram em terceiro lugar e onde existe o risco de a extrema-direita vencer, pedindo ao movimento de Macron que siga o exemplo.

“A extrema-direita está às portas do poder”, reagiu Gabriel Attal, já depois de Macron vir pedir uma coligação democrática abrangente para fazer frente ao RN. O primeiro-ministro também ressaltou o “dever moral de fazer tudo aquilo que está ao nosso alcance para impedir que o pior aconteça” e deixou um pedido aos eleitores: “Votem juntos pela República e votem pelos candidatos que defendem a República.”

Mas como vão votar os franceses? Para o embaixador António Monteiro, os eleitores do partido Os Republicanos, que ficou em quarto lugar, poderão ser decisivos nas contas finais, agora que estão profundamente divididos entre os que apoiam Eric Ciotti e a sua aliança com Bardella, e os que apoiam François-Xavier Bellamy, que sendo contra essa aliança rejeitou juntar-se numa frente democrática republicana. “Os Republicanos ainda podem ter algum impacto na segunda volta, dependendo de onde vai votar o seu eleitorado”, indica o diplomata que representou Portugal em Paris. Já para Borges de Castro também é preciso prestar atenção à mobilização dos mais jovens, que, numa tendência oposta à observada nas eleições europeias, penderam mais para a esquerda na primeira volta das legislativas francesas.

Eric Ciotti (à esquerda) chocou o seu partido ao anunciar uma aliança com Jordan Bardella (direita) para "restabelecer a ordem nas ruas"; muitos dos militantes e eleitores conservadores não concordam com a aproximação e podem ser decisivos na segunda volta (Julien De Rosa/AFP/Getty Images)

Um problema de todo o tamanho

Há quem acredite que a esquerda ainda tem possibilidades de impedir uma maioria absoluta da extrema-direita no próximo domingo, mas apenas se conseguir um entendimento com os macronistas. “Seria um retorno ao que foi sempre uma tradição em França – sempre que a ex-Frente Nacional [agora RN] venceu a primeira volta, a seguir houve sempre uma coligação de todos contra a extrema-direita, impossibilitando-a de ganhar à segunda”, aponta o embaixador António Monteiro.

Foi isso que aconteceu, por exemplo, em 2002, quando o pai de Marine Le Pen, então líder da FN, ficou à frente do socialista Lionel Jospin nas presidenciais, e em que os partidos de esquerda se uniram para, na segunda volta, darem uma esmagadora vitória ao conservador Jacques Chirac. Mas novamente: estas não são presidenciais – essas, até ver, são só em 2027 – e este é um momento histórico de viragem em França. 

“Estamos perante o fim do Macronismo, com a agravante de Macron já ter dito que não vai demitir-se, que vai cumprir o mandato até ao fim, e isto vai levantar um problema de todo o tamanho”, destaca José Filipe Pinto. “Primeiro vamos ter de perceber como vai ser a passagem de votos, não é líquido nem garantido que o RN, mesmo com o apoio dos republicanos, tenha maioria na Assembleia Nacional. Garantido é que o Ensemble! será a terceira força política, com uma diferença enorme em relação à NFP e ao partido de Le Pen, que apesar de ter Bardella à frente continua a ser o partido de Marine Le Pen, que está a salvaguardar-se para a campanha presidencial [de 2027].”

Quais são então as perspetivas de uma grande frente democrática como a que pede Macron? “Há uma certeza: o RN junto com os Republicanos vai vencer a segunda volta, a grande dúvida é se com maioria absoluta ou relativa”, responde o analista político. “A meu ver, se a esquerda conseguir negociar e limitar os anticorpos contra a França Insubmissa de Mélenchon, acredito que o RN não tenha a maioria dos deputados na assembleia. Agora, numa situação ou noutra, vamos ter uma França sem centro e com dois extremos, entre o populismo nacionalista e identitário protagonizado pelo RN e o populismo socioeconómico protagonizado por Mélenchon – sendo que nem a extrema-direita nem a extrema-esquerda estão disponíveis para admitir a derrota, qualquer um destes populismos só conhece a palavra vitória, e não tem adversários, tem inimigos.”

Há quem conjeture que, ao convocar estas eleições antecipadas, Macron pretendia empurrar a extrema-direita para o poder e "ver o que acontece", destaca Ricardo Borges de Castro (AP)

Um retorno à instabilidade da IV República

Assim que se perceber quem desiste e quem avança em cada círculo a votos, França vai entrar num período que Borges de Castro classifica de “dramatização total durante o resto da semana, em que vamos ouvir um campo e outro a dizer ‘ou nós ou o caos e o perigo’, o que também vai permitir bipolarizar as corridas”. Mas até os franceses voltarem às urnas no próximo domingo, há apenas uma certeza no horizonte: o país enfrenta pelo menos um ano de instabilidade política, independentemente da distribuição dos assentos parlamentares e da solução política que for alcançada. 

“Vamos ter um retorno à instabilidade que caracterizou a IV República Francesa, de 1946 a 1958, em que a França teve 22 governos e foi verdadeiramente governada por diretores gerais, por tecnocratas, é numa situação dessas em que estamos”, ressalta José Filipe Pinto. “Na primeira volta, os franceses votam no candidato da sua predileção, na segunda votam contra o candidato que não querem eleger. Não é um voto de adesão, é um voto contra o inimigo identificado, e isso vai funcionar tanto para a extrema-direita como para a extrema-esquerda. Em Portugal tivemos uma geringonça, em França vão ter duas.”

Para o embaixador António Monteiro é quase impensável um governo tecnocrata – “França não é Itália, para além de que isso seria deixar o presidente Macron com a faca e o queijo na mão, e não foi com isso em mente que os franceses foram votar agora”. Mas essa é uma hipótese cada vez mais colocada pelos analistas caso o RN vença sem maioria absoluta, sobretudo se Jordan Bardella cumprir a promessa de não aceitar a nomeação de Macron para ser primeiro-ministro sem ter o controlo do parlamento.

“Neste momento, o cenário mais provável talvez seja um parlamento sem maioria estável, e sendo o resultado da segunda volta, como dizem os britânicos, um hung parliament, o presidente vai ter de nomear um primeiro-ministro tecnocrata que consiga agradar à maioria”, indica Borges de Castro. “Mas isso também pode demorar muito tempo a tornar possível, vai obrigar a muitas negociações e a muitos acordos dentro do parlamento.”

Uma outra questão sem resposta para já, tendo em conta as movimentações populares desde o anúncio dos primeiros resultados, é como vão estar as ruas francesas até à segunda volta – e depois dela. “Já se sabe que tipicamente, em França, a rua tem um peso muito importante, e isso junta-se a um parlamento instável, à formação de um governo que, seja qual for, pode não sobreviver muito tempo, por isso se fala na hipótese de um governo tecnocrata nomeado por Macron, para satisfazer o centro, alguma direita republicana e a esquerda”, adianta o analista do EPC. “E depois há outra pergunta: como vai a esquerda da NFP comportar-se no parlamento? Em bloco ou também terá divisões? A camisola amarela de França vai ser a instabilidade e a incerteza.”

Com pelo menos um ano de instabilidade política à vista, e presidenciais marcadas para 2027, os analistas questionam-se sobre quem vai beneficiar mais com isso: Macron ou Le Pen, os moderados ou os extremos? (AP)

Quem vai beneficiar mais com isto?

Qualquer que seja o resultado final, França só pode voltar às urnas dentro de um ano. E presos a qualquer que seja a situação política no pós-eleições, surgem questões sobre o potencial de Macron se demitir, antecipando as eleições presidenciais em dois anos. O líder francês já garantiu que não vai sair de cena e, diz Borges de Castro, é improvável que volte atrás com a palavra. 

“Se já é criticado por ter criado esta situação, se resolve demitir-se é o caos total, não haverá rei nem roque. Obviamente que a demissão poderia ser consequente e coerente, devolvendo a palavra aos franceses, mas acho que se esta jogada de convocar legislativas antecipadas já foi arriscada, essa seria ainda mais – deixaria o país politicamente numa situação em que não vejo como é que o sistema aguentaria.”

Se o dito cordão sanitário não funcionar, França vai voltar aos tempos da coabitação entre um presidente de um partido e um primeiro-ministro de outro, só que de natureza inédita, pela primeira vez com o chefe de Estado e o chefe do governo em posições diametralmente opostas, quer a nível interno, quer na política externa. 

Quando Macron decidiu antecipar estas eleições, houve muitos a conjeturar que a jogada premeditada tinha, no limite, o objetivo de pôr a extrema-direita no poder para provar o que vale – e ver o que acontece. “Ele nunca o assumiu, mas a ideia seria confrontar esta extrema-direita, que tem ganho principalmente influência como um movimento de protesto, a cargo dos salários, das políticas económicas, responsável pelo país”, refere o analista do EPC.

“Talvez por isso [o RN] tenha começado a repensar algumas das propostas feitas antes da campanha. Mas com maioria absoluta e governo formado, um parlamento em ebulição, um presidente de outra cor política e as ruas em protesto, a situação não fica mais estável. Mesmo havendo o mínimo de estabilidade, haverá governabilidade? Vai ser um desafio muito grande para todos e a grande questão é: quem vai beneficiar mais com isto? Macron ou Le Pen? O campo moderado ou os extremos?”

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