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"Coabitação de combate" à espreita em França: os riscos de um governo Bardella para a UE, a Ucrânia e a NATO

29 jun, 22:00
Jordan Bardella e Marine Le Pen tiram selfie durante campanha para as eleições legislativas em França (AP)

Há alguma expectativa em Bruxelas que, se a extrema-direita vencer as eleições e conseguir formar governo em França, Marine Le Pen e Jordan Bardella moderem algumas das mais radicais promessas de campanha, na sua maioria relacionadas com política externa. Mesmo assim, os analistas estão céticos. E os exercícios de futurologia estão condicionados ao resultado da segunda volta, que será disputada a 7 de julho. A primeira é já este domingo e, segundo as sondagens, vai dar a vitória ao Reagrupamento Nacional

A polémica estalou a poucos dias da primeira volta das legislativas em França e lançou um aceso debate entre juristas e constitucionalistas do país sobre o papel do presidente da república. Na quinta-feira, Marine Le Pen voltou a repetir uma promessa de campanha do Reagrupamento Nacional (RN) de que, se vencer as eleições e formar governo, a extrema-direita não vai enviar quaisquer tropas para treinar pessoal na Ucrânia. 

Até aqui nada de novo, essa tem sido uma garantia repetida por Jordan Bardella, o jovem de 28 anos que Le Pen escolheu para líder do RN e que, após a retumbante vitória nas eleições europeias, lidera agora as sondagens na corrida ao cargo de primeiro-ministro. O argumento de ambos é que é o governo, e não o presidente, que determina questões financeiras. Ou seja, mesmo que Emmanuel Macron decida enviar tropas para a Ucrânia, um governo RN pode não desbloquear os fundos para tal. A novidade foi o que Le Pen disse a seguir – que o presidente ser o comandante supremo das Forças Armadas, tal como acontece em Portugal, é uma mera posição honorífica.

“Foi surpreendente ver a senhora Le Pen a pôr em causa o cargo do presidente, um cargo que ela quer”, destaca Ricardo Borges de Castro, analista de Assuntos Europeus e conselheiro do European Policy Center (EPC). “Segundo percebi, mais tarde veio corrigir isto com um tweet a dizer que não queria pôr em causa o domínio reservado do presidente, embora frisando que continua a ser o primeiro-ministro a tomar decisões relativamente ao Orçamento do Estado.” 

No fundo, considera o analista de política europeia e internacional, “o que Le Pen quis dizer foi que, admitindo que o RN tem maioria absoluta e consegue formar governo, França vai ter uma coabitação de combate, especialmente no que toca a estas questões de segurança e defesa, de política externa e de política europeia”.

Bardella ameaça cortar financiamento à Ucrânia de Zelensky (na foto), não enviar mísseis de longo alcance nem militares para Kiev e empatar o alargamento da UE, agora que o processo de adesão já está em curso (Getty Images)

"Macron tem o monopólio da política externa, mas não tem os mecanismos financeiros"

Com as sondagens a anteciparem a vitória da extrema-direita na primeira das duas voltas eleitorais, toda a União Europeia está de olhos postos em França. “Em termos gerais, sabemos que este domingo não vamos ter ainda dados definitivos, só vamos saber que tipo de governo França vai ter depois de 7 de julho. Tudo o que resta é tentarmos perceber como as coisas podem evoluir”, refere Borges de Castro. E o exercício de futurologia não augura um cenário feliz caso se confirme a provável “coabitação” inédita entre um presidente centrista e um primeiro-ministro de extrema-direita.

Muitas das dúvidas prendem-se com o papel que o país vai desempenhar na Europa e na NATO, em particular face à guerra da Rússia na Ucrânia, se Bardella for eleito. Enquanto presidente, destaca o diplomata Francisco Seixas da Costa, “Emmanuel Macron tem o monopólio da política externa, mas não tem os mecanismos financeiros que lhe estão associados, pode jogar com o orçamento para 2024, mas um governo Bardella seguramente fará um orçamento para 2025 com base em novos argumentos, face à terrível situação financeira de França, agora que está com 112% de dívida relativamente ao PIB”.

Neste contexto, adianta o antigo embaixador português em Paris, “Bardella vai usar todos os argumentos de natureza financeira para justificar cortes, que terão impacto, nomeadamente, no apoio à Ucrânia”. A questão de não enviar instrutores militares franceses para a Ucrânia “é uma zona cinzenta, porque uma coisa são militares, outra é a legião estrangeira, mas é consensual que há reticência por parte de um eventual governo Bardella ao envio de qualquer pessoal de treino, e ele tem uma justificação económica e financeira para sustentar restrições ao financiamento à Ucrânia – não vai dizer que não em absoluto, mas vai restringir”.

Com todos os fantasmas que pairam sobre esta eleição, há algumas certezas confortáveis para já: um governo Bardella não vai sair do comando militar integrado da NATO, como Le Pen tinha dito que faria, nem tão pouco vai tirar o país da aliança. Mas “há um ponto que Bardella tem vindo a defender, e disse-o claramente no último debate, que é uma rutura radical – o de reduzir a participação financeira francesa para a UE”, sublinha o diplomata português. “Isto não é possível, os países pagam para a UE uma percentagem em função do PIB nacional, e se acaso não pagarem entram em incumprimento e, no limite, serão expulsos. Esta é a única postura radical que Bardella toma, mas se isto fosse à la carte, se França fizesse isso, todos os países poderiam fazê-lo e a UE rebentava.”

Borges de Castro reforça a mesma ideia. “Há a expectativa em Bruxelas que, se de facto [Le Pen e Bardella] chegarem ao poder, vão moderar algumas das posições, mas eu continuo cético, até porque a questão do rebate do dinheiro que contribui para o orçamento comunitário é um sinal negativo para a UE, que põe em causa princípios basilares da UE” – tal como a promessa de restringir a liberdade de circulação ou vedar o acesso de cidadãos com dupla nacionalidade a determinados cargos da função pública, precisamente em "áreas estratégicas" como a defesa.

Marine Le Pen tem pretensões de suceder a Emmanuel Macron em 2027 e diz que, face a uma potencial "crise política" após estas legislativas, o presidente deve sair de cena já (AP)

"Há o risco de uma dissociação de França relativamente aos EUA e ao Reino Unido"

Talvez por anteciparem o pior dos cenários em França, há uma semana ressurgiu o chamado Triângulo de Weimar, naquele que foi o primeiro encontro militar entre Alemanha, Polónia e França desde 2015. Sébastien Lecornu, atual ministro francês da Defesa, partilhou o palco com os homólogos alemão e polaco para anunciarem exercícios conjuntos, mais mobilização militar e cooperação industrial. E a questão das eleições francesas, claro, foi incontornável.

“Numa nota pessoal egoísta, teria muito gosto em poder continuar a boa cooperação que estabelecemos com Sébastien Lecornu, há muito a fazer”, destacou o ministro alemão Boris Pistorius, quando questionado sobre os riscos políticos que Paris enfrenta. A decisão dos eleitores franceses, adiantou o polaco Wladyslaw Kosiniak-Kamysz, “terá um impacto em toda a Europa” e no apoio “fulcral” à Ucrânia que o bloco deve manter.

Não é certo que um governo Bardella o mantenha. Para além de ter garantido que não vai enviar tropas para treinar os soldados ucranianos, o candidato do RN também diz que não vai deixar que mísseis de longo alcance franceses sejam usados pela Ucrânia, no que Seixas da Costa classifica como “uma alteração importante que representa o risco de uma dissociação de França relativamente ao que tem sido uma posição recente de alguns países ocidentais, nomeadamente os Estados Unidos e o Reino Unido”, ao final de mais de dois anos de invasão russa.

Um outro ponto importante, acrescenta Borges de Castro, “é que, quando Le Pen se candidatou à presidência em 2022, tinha um programa sobre Defesa que entretanto desapareceu do website” do RN. “Sabemos que há aqui uma nuance sobre a retirada da estrutura militar integrada da NATO, Bardella agora diz que isso só acontecerá quando terminar a guerra na Ucrânia. Estão a tentar moderar, mas no essencial – a coisa mais importante – é que Le Pen até há muito pouco tempo era pró-Putin e pró-Rússia, já depois de a guerra começar dizia que era preciso conversar com a Rússia como parceira. Não é positivo nem para a UE nem para a NATO ter um governo francês cético em relação a estas organizações, embora seja verdade que pode haver alguma moderação – até porque, em última análise, Le Pen quer ser presidente em 2027.”

Admitindo que Macron não se demite até lá – uma possibilidade real face ao que as sondagens preveem, mesmo tendo garantido que não o fará – a potencial vitória da extrema-direita abre caminho a uma "realidade diferente, um terreno onde nunca estivemos, em que passamos a ter um país que é central na segurança e defesa da UE, até pela sua capacidade de dissuasão nuclear, a pôr em causa princípios fundamentais que até agora não se discutiam”, adianta o analista do EPC.

Sébastien Lecornu, ministro da Defesa de França (esquerda), com o homólogo alemão, Boris Pistorius. "Mesmo com governos enfraquecidos, continuam a ser dois países muito importantes" (Julien de Rosa/AP)

"Quando há coabitação em França, quem fala? Pode ser uma situação-limite"

As preocupações não se esgotam aí, sobretudo tendo em conta que também a Alemanha está a atravessar um momento de grande fragilidade política. No mais recente Conselho Europeu, França e Alemanha apresentaram uma série de alterações à agenda estratégica europeia e “houve muitos líderes muito incomodados com isto”, destaca Borges de Castro. “Mesmo com governos enfraquecidos, continuam a ser dois países muito importantes. E face à possibilidade de uma França paralisada, tudo fica ainda mais difícil.”

Entre as dificuldades a jusante conta-se, por exemplo, o alargamento da UE, agora que as negociações para a adesão da Ucrânia e da Moldova estão a avançar. “Neste momento, a posição de Bardella é contra o alargamento e isso põe em causa o projeto europeu. Num futuro governo poderá usar isso para exigir algo em troca, como mais restrições à imigração, sabemos que o RN quer enfraquecer as medidas estruturais do funcionamento da UE no que toca às liberdades fundamentais…”

No imediato, as primeiras provas de uma França ingovernável podem chegar já no final do verão. “Quem é que vai indicar o próximo comissário francês?”, questiona Borges de Castro. “O presidente Macron diz que é ele, Bardella diz que é ele… Enfim, é o tipo de conflitos que vão seguramente surgir se o RN formar governo. Do ponto de vista prático, é o presidente da república que vai ao Conselho Europeu, que está lá a determinar as orientações estratégicas de França, mas depois às formações europeias vão os ministros do governo, que não têm de votar como o presidente. Há aqui o potencial para criar conflitos institucionais. O risco de um governo Bardella torturar a agenda de política externa do presidente é muito grande.”

Mesmo sendo o máximo responsável pela política externa de França, “Macron tem uma margem muito limitada, é ele quem vai ao Conselho Europeu mas vai ter de levar Bardella ao lado”, acrescenta Francisco Seixas da Costa. “Quando há coabitação em França, quem fala? Normalmente é o presidente, mas isto porque no passado, em todas as coabitações – e eu assisti a algumas ao vivo –, não havia uma contradição profunda em matérias europeias e internacionais entre o presidente e o primeiro-ministro. Nesta pode haver, pode de facto ser uma situação-limite desse ponto de vista. E aí voltamos à grande questão: será que pode haver um cenário de criação de um governo para salvar França?” As respostas só vão chegar depois de 7 de julho.

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