Quem acompanhava a seleção nos anos 2000 lembra-se de Fernando Meira. Ao longo dessa década, foi presença regular na equipa das Quinas, mas um rumor infundado trouxe-lhe um dos maiores desgostos da carreira. Perante a adversidade, Meira calou-se e continuou a trabalhar. Da aceitação da injustiça colheu frutos mais tarde - e é por isso que todos nos lembramos dele
Estreou-se na seleção em 2000, quando ainda estava no Benfica. Começou por fazer uns amigáveis, mas acabou por não ser presença regular e não foi ao Mundial 2002. Ficou a pensar que podia ir a essa competição ou foi um sonho sempre muito distante?
Sabia que era difícil porque estávamos a falar de uma geração onde era muito difícil para um jovem, ainda por cima um jovem que vinha do Vitória (SC) ganhar o seu espaço na seleção nacional. Fiz jogos do apuramento para o Mundial 2002 e tinha sempre aquela esperança que pudesse eventualmente ser convocado, mas o António Oliveira optou por chamar outros colegas meus e, quando é assim, nós temos de respeitar sempre. Eu acabo por me colocar por vezes na posição de selecionador nacional. Não é nada fácil fazer uma convocatória, assim como também não é fácil fazer o 11 de uma seleção nacional.
Para o Euro 2004 já foi diferente. Não houve qualificação, mas houve um ciclo de amigáveis e o Fernando até disputou muitos desses jogos. No entanto, acabou por ser omitido da seleção final. Esta já deve ter doído um bocadinho mais.
Essa doeu ainda mais porque, como tu disseste bem, fiz muitos jogos, o último deles foi em Guimarães contra a Espanha, acabei por ser titular e capitão de equipa na minha cidade, com a minha seleção. Logicamente que a minha expectativa era poder estar no Europeu mas mais uma vez fui preterido, fui afastado inclusive, por supostamente ter tido desacatos com o selecionador e com colegas de balneário, algo que é completamente falso. Na altura desmenti isso publicamente, mas infelizmente ninguém da parte da Federação Portuguesa de Futebol teve a coragem ou a ousadia de me defender, a mim e penso que na altura também o Nuno Valente. Fomos acusados de faltar ao respeito ao selecionador, de andar quase à porrada no balneário, e isso foi desmentido por mim. Quando tens uma equipa técnica nacional que não toma oposição, nem sim, nem não, as pessoas acabam sempre a pensar que teria havido ali algum problema.
Chegou a dizer numa entrevista que esta era “a única pedra no sapato” que tinha com Scolari. Como era a sua relação com ele?
A minha relação com ele foi boa porque, apesar de sentir injustiça nessa situação do Euro 2004, tu tens de perceber também a tua posição. Se tomasse uma posição mais radical se calhar não estaria no Mundial 2006 nem no Euro 2008, nem eventualmente nos Jogos Olímpicos (de 2004). Temos de ser inteligentes nesse tipo de gestão e por isso eu calei-me, fiz o meu trabalho, apenas defendi-me publicamente dizendo aquilo que é a realidade, ou seja, nunca faltei ao respeito a nenhum dos meus treinadores em toda a minha carreira e muito menos aos meus colegas. Nunca tive nenhum desacato com nenhum colega de equipa nem com nenhum colega de seleção e por isso é que é a única pedra que eu tenho no sapato. Não houve problema nenhum e fui quase acusado de ter tido comportamentos inadequados.
Chegou a falar com Scolari sobre a sua omissão, num momento posterior?
Não, não falei.
Andaram para a frente.
Andou-se para a frente, ele foi soberano e se eu queria pensar na minha posição dentro da seleção, tinha de saber lidar com as consequências, independentemente de ter sido falso ou não. Ninguém me defendeu, também não iria estar a pedir ao selecionador para me defender publicamente. Aquilo que eu queria ganhar um espaço na seleção e, a partir do momento em que ele me chamou de novo, eu fiz o meu trabalho.
Em 2006 já foi diferente. Jogou os jogos da qualificação, chegou ao Mundial e não só foi titular em todas as partidas como jogou todos os minutos. Surpreendeu-lhe ser tão utilizado?
Eu estava muito bem, eu acho que no Mundial estava na melhor altura da minha carreira. Foi nessa época (2006/07) que depois acabo por ser campeão alemão no Estugarda, fiz um Mundial irrepreensível e por isso mesmo é que acabei por ter também algum destaque. Acho que o Scolari também não se arrependeu em momento algum de ter apostado em mim.
Pensa que se o Jorge Andrade, que falhou esse Mundial e fez dupla com Ricardo Carvalho no Euro 2004, tivesse disponível, teria sido tão utilizado?
Pois, nunca vamos saber. São ossos do ofício, são situações que acontecem. Claro que o Jorge é um grande jogador, continua a ser um grande amigo que fiz para a vida. Agora, quanto a essa situação, não faço ideia. Claro que seria mais difícil, mas eu também estava num bom momento e também tenho valor. Por isso o treinador é que iria ter de decidir quem estaria melhor. O que é certo é que o Jorge, mesmo sem jogar, acabou por ser importante para nós, esteve presente connosco e apoiou-nos sempre. Era um palhaço, sempre com boa disposição. Recentemente fui ao casamento dele, criámos uma relação muito forte. Na minha opinião, é um dos melhores centrais com quem eu joguei.
Nesse Mundial houve alguns jogos que ficaram para a história. Talvez o que as pessoas se lembram mais é daquele contra a Holanda, a Batalha de Nuremberga, nos oitavos de final. Como é que o Fernando sobreviveu a esse jogo?
Eu não sobrevivi, esses jogos é que me dão mais pica. Penso que, de uma forma geral, quem é jogador de futebol e gosta de jogos competitivos, são esses os jogos que dão gosto e que marcam uma carreira. O Van Basten era na altura o selecionador holandês, já nos tinha provocado no pré-jogo, e isso, quando acontece, fortalece-nos muito. Depois os holandeses entraram com uma conduta um pouco intimidatória, queriam ser agressivos demais, queriam tentar lesionar o Deco, o Figo, o Ronaldo, com entradas duríssimas. O árbitro teve de intervir muitas vezes e nós, sempre que podíamos, também retribuíamos a mesma moeda. Quem tem esse tipo de comportamento contra a seleção portuguesa ou contra jogadores que têm o sangue latino e são apaixonados por aquilo e vibram o futebol como nós vibramos, funciona ao contrário. Elevamos ainda mais aquilo que são as nossas condições físicas, condições mentais, temos mais foco, mais vontade de vencer. E por isso mesmo é que os holandeses foram infelizes.
Provavelmente seria um jogo mais fácil para eles se não tivessem provocado, se não tivessem essa conduta intimidatória, não?
Não tenho a menor dúvida disso. Nós acabámos por perder alguns jogadores depois para o jogo seguinte contra a Inglaterra, o Costinha, o Deco, o Paulo Ferreira, e isso complica bastante. A Inglaterra era uma equipa difícil de bater.
Também foi um jogo duro, imagino.
Muito tenso. Eram uns quartos de final, é sempre difícil jogar jogos a eliminar com grandes seleções. A seleção inglesa estava repleta de grandes individualidades, capitaneada pelo David Beckham. Nós também estávamos num excelente momento, também tivemos o apoio de muitos portugueses e acabámos por conseguir ter a sorte do jogo. Quando entras numa competição como um Mundial, um Europeu, tens de ter sorte nos jogos a eliminar. A sorte faz parte e quem pensa que apenas a qualidade individual e coletiva faz a diferença está muito enganado. É importante ter sorte e nós acabámos por ter a estrelinha. Foi um jogo muito equilibrado, mas depois nos penáltis acabámos por ser mais felizes.
Essa estrelinha de sorte depois não surgiu na meia-final, onde fomos novamente eliminados com um penálti do Zidane. O Maniche considera esse resultado uma injustiça, e o Fernando, também acha que foi uma injustiça e que Portugal deveria ter ganho o jogo pelo que produziu?
Não, nós não massacrámos a França. Foi um jogo equilibrado, tivemos oportunidades para nos adiantar no marcador e acabamos por sofrer o golo da França naquele penálti, uma falta infeliz do Ricardo Carvalho sobre o Henry, e depois o Zidane acaba por fazero único golo da partida. Foi um jogo que foi decidido num detalhe, sabia-se que iria ser assim com a Inglaterra, sabia-se que iria ser assim com a Holanda e sabia-se que iria ser assim com a França. Acabámos por ter azar nesse jogo, mas foi um jogo equilibrado. Não acho que tenha sido um jogo onde nós tenhamos sido claramente superiores à França. Tivemos oportunidades de golo, podíamos ter marcado, mas a França também teve uma ou outra oportunidade. Foi um jogo com poucas oportunidades de golo e a França é que acabou por ter a sorte de fazer aquele golo de penálti.
Depois desse Mundial vai ao Euro 2008, que terá sido uma participação um bocadinho mais desapontante.
Muito. A expectativa era muito alta e acabámos por ser eliminados pela Alemanha. Estava num momento muito bom e a jogar praticamente em casa, era difícil. Mas a aura que nós tínhamos em 2008 não tem nada a ver com a do Mundial 2006.
O Fernando acabou por apenas disputar essas duas competições pela seleção. Sente que a sua carreira pela seleção foi demasiado curta, que poderia ter dado muito mais do que aquilo que acabou por dar?
Não. Acho que fiz os jogos que devia ter feito, apanhei gerações com muita qualidade. Estou super tranquilo em relação a isso. Queria muito ser internacional português, queria muito jogar os Jogos Olímpicos e joguei em 2004, queria muito jogar no Europeu, mas a competitividade era muito grande, sempre tive grandes colegas que também tinham muita qualidade, por isso não era fácil para nenhum selecionador fazer as convocatórias.
Falando da seleção atual, acha que tem condições para repetir 2016 e vencer o Europeu?
Tem, eu acho que tem. Não é o jogo contra a Geórgia que afasta isso. Acabou por ser de facto um jogo mau, houve muita rotatividade e o foco e a atenção não eram os mesmos. Como disse o Roberto Martínez e bem, até foi bom para a equipa ficar em alerta para aquilo que nos espera agora no jogo contra a Eslovénia. Vai ser um jogo difícil e muito semelhante ao da Geórgia, a Eslovénia vai fechar-se muito e Portugal terá de ter muita paciência. Tem de ser uma equipa muito mais intensa, muito mais agressiva. Contra a Geórgia essencialmente faltou muita agressividade, os georgianos entravam sempre com tudo, muito agressivos, com muita vontade de vencer, e nós fomos uma equipa um pouco passiva. Agora, que temos qualidade e quantidade para sermos um dos candidatos a vencer o Euro 2024, isso não tenho dúvidas, mas mais uma vez te digo, Pedro: é importante ter sorte. Portugal, assim como a Alemanha, a Espanha, eventualmente a Itália e a França, é uma das seleções com mais qualidade. Somos um dos candidatos mas, sem sorte, eu penso que nenhuma das seleções que está presente é claramente superior às outras. Há um leque de 5 ou 6 equipas que são favoritas. Há alguns outsiders, como a Áustria. Não vai ser fácil de bater essas seleções, vão fechar-se muito, jogar na paciência e no erro do adversário. E depois, lá está, a sorte do jogo é que vai ditar quem segue. Se tivermos o azar que tivemos contra a Geórgia, de ter tido um mau passo do António Silva e uma excelente finalização por parte do Kvaratskhelia, e depois ter um penálti claro sobre o Ronaldo que não é marcado, e o da Geórgia, que poderia ter sido evitado...
Foi muito forçado.
O árbitro estava claramente com vontade de prejudicar Portugal, não tenho a menor dúvida disso. Se tiveres um dia assim, qualquer equipa te pode bater, até a própria Eslovénia. Por isso, o importante é aumentar muito os níveis de concentração, os níveis de agressividade que faltaram contra a Geórgia. Isso é que é preocupante, acabaste por dominar o jogo, acabaste por ter mais bola, acabaste por ter ainda algumas oportunidades de golo.
Agora uma pergunta mais difícil: qual das seleções é a melhor, a que integrou em 2006 ou a atual?
Essa é muito fácil, é uma pergunta muito fácil de responder. Esta seleção é muito melhor, não tenho a menor dúvida. Nós tínhamos uma grande seleção, mas eu acho que esta, apesar de não ter um Ronaldo nos seus melhores momentos, é uma seleção que tem muita qualidade e muita quantidade.
Olhando para os 11 base, esta de 2024 ganha a 2006?
Eu diria que sim, mas também não há forma de saber isso, não é?
É um exercício de imaginação.
Se fosse treinador, gostaria mais de treinar esta equipa do que a de 2006.