"Havia grupinhos" na seleção, alguns "dificultavam o trabalho de quem jogava". Depois resolveu-se isso, veio a batalha de Nuremberga: "Ainda para mais o árbitro era russo"

18 jun, 03:53
Maniche

Maniche fez parte da seleção que esteve há 18 anos no mesmo sítio onde a seleção está hoje, em Marienfeld. Há 18 anos foi um Mundial em vez de um Europeu, mas o centro de estágios é o mesmo, o país é o mesmo, mais adiante se verá se o resultado vai ser melhor - fomos semifinalistas em 2006, ano em que decorreu a famosa batalha de Nuremberga contra a Holanda: o soldado Maniche esteve nesse combate mas já não estará no deste ano se os Países Baixos forem segundos no seu grupo e Portugal primeiro (e se ambos passarem os oitavos). Portanto: promovemos Maniche a general desta entrevista, queríamos muito falar com ele neste dia em que Portugal se estreia no Euro - pelas 20:00, diante da Chéquia. Há grandes revelações nesta entrevista - e belas histórias

O Maniche estreou-se na seleção em 2003, já com o ciclo de preparação para o Euro a decorrer. Como é que foi essa integração na equipa?
A integração normal. Obviamente que era uma geração diferente daquela que depois veio a estar no Europeu de 2004, até porque nessa geração só o Fernando Couto, o Rui Costa, o Rui Jorge, o Figo e o Pauleta é que foram ao Euro 2004. Estavam até mais jogadores dessa geração, mas só foram esses que concluíram depois a trajetória até 2004. Essa ligação é sempre difícil. Quando estava a começar, muitos jogadores que chegaram à seleção tinham acabado de conseguir a primeira internacionalização ou iriam obter a primeira internacionalização. Há sempre aquele respeito, não há assim muita cumplicidade devido ao facto de nós termos visto essa geração a jogar e ambicionamos estar no lugar deles. A ligação é mais no sentido do respeito, de ouvir com humildade, porque éramos novos e estávamos a começar também a fazer a nossa caminhada na seleção. Depois também depende do que os mais velhos, que têm mais anos na seleção, querem ou não transportar para outros jogadores que estavam a começar na seleção. Há uns mais recetivos que outros, há aqueles que gostam de conversar mais, há outros que pela sua personalidade e pelo seu caráter não são fáceis.

Na altura existiam grupinhos? Falava-se muito de que havia grupos na seleção. Como é que os jogadores se relacionavam nos estágios? Havia a divisão entre os jogadores do Sporting para um lado, os do FC Porto para o outro, por exemplo?
Sim, eu venho de uma geração a posterior a uma sobre a qual tanto se falava de que havia os jogadores do Norte e os jogadores do Sul. Aquela cumplicidade, aquela sintonia e a química dos jogadores que jogam nos clubes é normal e natural. Aqueles que estavam a começar, como eu, verificaram exatamente isso, que havia aquela relação do Norte-Sul, e pensávamos ‘onde é que nós nos vamos encaixar?’. Mas isso lá está, depende muito também dos jogadores mais velhos aceitarem ou não os mais novos. Porque aqueles jogadores que estão a chegar nem sequer falam para alguma coisa séria. Eu recordo uma vez em que estávamos a discutir os prémios para o Europeu: estavam os velhos a falar, a falar, a falar, e os jogadores mais novos nem sequer opinaram. Foram sempre os mais velhos a discutir e nós tínhamos de aceitar exatamente aquilo que eles decidiam porque tinham mais anos de seleção.

E para o Euro 2004, como era uma competição especial, em casa, fizeram um esforço maior para se tentarem relacionar uns com os outros? Ou continuou nessa dinâmica?
Na seleção é complicado porque todos pensam, e com toda a legitimidade, que têm lugar no onze. Querem todos jogar porque jogam a titulares nos seus clubes, têm visibilidade nos seus clubes, e chegam à seleção e pensam, e bem, que também podem jogar a titular. Acontece alguns fazerem o seu grupinho para muitas vezes dificultar o trabalho de quem está a jogar e quem quer o melhor para a seleção. Aconteceu isso. Não vale a pena dizer nomes, mas isso aconteceu. Agora, nós tínhamos a vantagem de em 2004 ter muitos jogadores do FC Porto, que acabou por ser a base da seleção a partir do segundo jogo. Depois de perdermos o primeiro jogo contra a Grécia, Scolari chegou, inclusive, a juntar-nos no quarto e a dizer que nós tínhamos de ser uma família. E pedia muito dos jogadores do FC Porto.

Ainda hoje dói foto Getty

Falou do primeiro jogo do Euro contra a Grécia, que Portugal perdeu. O que é que aconteceu? Foram surpreendidos? Foi excesso de confiança? Falta de ritmo competitivo juntos?
É difícil explicar. Perdemos contra a Grécia o primeiro e o último e ganhámos as seleções como Espanha, como Inglaterra, Holanda e Rússia, que tinha uma excelente seleção na altura. Não é falta de competitividade porque os jogadores que estavam no onze jogavam todos a titulares na sua equipa. Nesse jogo ainda não havia aquela base do FC Porto, mas eu acho que havia jogadores que queriam resolver as coisas sozinho. Queriam ser protagonistas, porque provavelmente iria ser o último Europeu de alguns deles e queriam ter esse protagonismo a que estavam habituados a ter nos anos anteriores. Chega uma outra geração e a mentalidade começa a ser diferente. E o protagonismo deles também começa a baixar, porque entram outros para os seus lugares e começam também a ter visibilidade e a sobressair. Nós não tivemos muitas oportunidades para fazer golo. A Grécia também se esforçou muito, fizeram dois golos. E nós sempre mais com o coração do que com a cabeça. Acho que não estávamos preparados para sofrer dois golos da Grécia. É muito difícil explicar. Posso estar aqui a falar, mas não é fácil explicar porque nós de facto demos aquilo que pudemos. Não foi por falta de intensidade.

Chegaram a ter medo de serem eliminados na fase de grupos ou tinham muita confiança em vós próprios? Seria um escândalo sair tão cedo.
Nós tínhamos muita confiança. As palavras corretas são muita confiança. Como disse há pouco, tínhamos a mentalidade e a experiência. Tínhamos de estar preparados e havia um país que queria e exigia e tinha as expectativas bastante elevadas. Não queríamos sair na fase de grupos do Europeu em Portugal e ficar associados a isso. Sabíamos a responsabilidade, sabíamos que todos os jogos, como o Scolari disse na altura, eram mata-mata, mas tínhamos confiança em nós e, se estivéssemos bem, podíamos ganhar a qualquer seleção. E foi exatamente isso que aconteceu. Ganhámos à Rússia 2-0 e depois a Espanha 1-0, e depois estivemos de igual para igual com todas as seleções. Mas contra a Rússia era um jogo importante, também para dar confiança aos portugueses, também para eles terem aquilo que tinham antes do campeonato, que era sentir que nós podíamos chegar o mais longe possível no Europeu. Obviamente que as pessoas não contavam que nós chegássemos ao final. Porquê? Porque perdemos o primeiro jogo. Recordo-me que parecia que os jornais nos estavam a pôr cada vez mais em baixo. Mas o Scolari era um comunicador nato, tinha uma comunicação muito direta, muito frontal, muito clara, e disse-nos que nada estava perdido e que nós podíamos ficar para a história da Seleção Nacional, sendo a primeira vez a ganhar um título. E nós ouvimos aquilo, aceitámos, olhámos uns para os outros e dissemos ‘não, isto vai ter de mudar’. E foi assim. Foi devido também à nossa vontade, acima de tudo à nossa disponibilidade para mudar, para ajudar e esquecer um pouco o ego.

Craques foto Getty


Marcou um dos golos contra a Rússia. Como é que foi esse primeiro golo numa competição internacional? Ainda por cima em casa.
Sim, ganhámos 2-0, fiz o primeiro e o Rui Costa faz o segundo. Foi importante até porque foi aos vinte e poucos minutos e deu-nos alguma tranquilidade e confiança para encararmos o jogo de outra forma, porque, como disse, era um jogo decisivo. Se nós empatássemos não iríamos passar, tínhamos de ganhar à Rússia e a Espanha. Era um jogo extremamente importante para a confiança, para os adeptos também acalmarem e nos ajudarem, para nos catapultarem também para outros patamares. Acho que foi a partir desse momento, desse golo, que nós começámos a acreditar ainda mais que sim, que era possível. Quando tu jogas numa competição tão importante, é tudo tão rápido, é uma competição tão exigente e tão curta que tu não tens a noção e a perceção daquilo que tu fizeste. Quando vou para fora do país, as pessoas ainda me falam, ainda se lembram do golo contra a Holanda. Na altura aquilo foi tão rápido que nem tive a noção como foi o golo. Eu até depois vi o golo repetidamente, depois mais tarde, quando chegámos ao hotel para jantar. E mesmo assim achei normal, não achei nada de especial, sinceramente.

E esse remate tinha sido treinado ou simplesmente saiu?
Foi um lance improvisado. Nós, por acaso, treinávamos lances de bola parada, o Scolari trabalhava muito esse pormenor. E, aliás, recordo-me perfeitamente, aquele golo da Grécia nunca devia ter acontecido porque foi falta de marcação. Nos dois dias de treino antes do jogo fizemos praticamente só treinos de bola parada, defensivos e ofensivos, e o Scolari só dizia exatamente isso, que eles só têm a oportunidade de marcar golo de bola parada. E aconteceu exatamente isso. Mas estava-me a perguntar do...

…do golo contra a Holanda.
Foi muito improvisado. Eu senti que a defesa da Holanda não estava posicionada nos seus lugares e pedi bola ao Ronaldo, aquilo foi do nada. Nunca fizemos isso nos treinos. Eu lembro-me exatamente dessas decisões improvisadas, porque não depende do treinador, depende do jogador. Estás a sentir que naquele momento podes fazer a diferença. E foi exatamente isso que eu e o Ronaldo sentimos. Eu recebi uma bola de um canto curto e nem sequer olhei para os meus colegas. Eu só pensei ‘vou pôr a bola na área’. Mas quando chutas, nunca pensas que vai chegar àquele ângulo tão afastado. Eu recordo até que o [Edgar] Davids sai do poste, ele estava no segundo poste, onde a bola entrou, ele sai e a bola entra ali. Mas o [Edwin] Van der Sar era tão grande que eu tinha de colocar a bola o mais afastado possível dele. E quando o Davids sai, a bola entrou mesmo no ângulo onde ele estava posicionado. São golos que acontecem. São golos que jamais se esquecerão.

Simplesmente saem, não é?
Saem, saem. Não se explica. Aquilo é no momento e já está. Não é como na Playstation. São frações de segundos em que o jogador tem de decidir e eu decidi rematar. Foi isso. Eu tive essa perspetiva.

Vai buscar, Van der Sar foto Getty

A meia-final de Portugal no Euro foi a que se jogou primeiro, a segunda foi no dia seguinte. Quando souberam que iam jogar contra a Grécia outra vez, o que é que pensaram? Ficaram nervosos?
Não, nada. Pensávamos que íamos ganhar. Simplesmente isso. Às vezes a confiança dá mau resultado. Nós, nesse jogo, podíamos estar ali mais uma hora e não fazíamos golo. Tentámos de todas as maneiras. Jogámos com médios a lateral, acho que foi o Deco que chegou a um ponto em que já estava a lateral. Chutámos de fora da área várias vezes. Eles só marcaram esse golo de bola parada e não tiveram mais oportunidades nenhumas para fazer golo. Tinham bons jogadores, é um facto. Salvo erro, a base deles era do Panathinaikos. Tinham muita experiência e qualidade. Se não tivessem qualidade não estariam na final, como é óbvio, Não há que desprestigiar. Mas, obviamente, em comparação com a nossa seleção, fica muito aquém. Essa mágoa, essa tristeza, vem um pouco daí, de nós sentirmos que éramos melhores e perdemos. Nós tentámos, tentámos e não deu nada nem pelo lado direito, lado esquerdo, nem rematar de longe, nem de perto, enfim, nem com cruzamentos. Sentes que chegou a um ponto nos últimos 15, 20 minutos, em que era mais com o coração do que com a cabeça. Nós queríamos era fazer o golo de qualquer maneira, como fosse. Talvez não fosse essa a estratégia, mas, enfim, o desespero era tanto em marcar, para não desiludir, que acabámos por não marcar.

Como estava o balneário após a final?
Era um misto de sentimentos. Estávamos orgulhosos por termos chegado à final. Pela primeira vez na história da seleção chegámos à final de uma competição tão importante como é o Campeonato da Europa. Tínhamos, de certa forma, dever cumprido, neste sentido. Mas sentimos que morremos na praia, como se costuma dizer. Deixou um sabor amargo porque tínhamos todas as condições para ganhar o jogo. O apoio, o entusiasmo, o carinho dos portugueses foi tão grande que nós queríamos retribuir essa gratidão com uma vitória. Ficámos supertristes, nem falámos. Mas aquilo que nós fizemos pela primeira vez em Portugal, em que os portugueses sentiram orgulho pela nossa seleção, acho que foi a maior vitória que nós obtivemos. Que obtivemos, ao fim e ao cabo, o orgulho de os portugueses em sentir-nos. Dizerem ‘eu tenho orgulho em ser português porque esta seleção está a fazer-nos sonhar’. Isso nunca tinha acontecido porque ou éramos eliminados no último ou no penúltimo jogo da qualificação ou saíamos nos quartos de final e, enfim, nunca chegaríamos a uma final, nunca chegámos a uma final. A partir desse momento é que os portugueses começaram a ter o orgulho na nossa seleção e a pensar de outra forma. Reforçou-se isso para 2006. Ao mesmo tempo nós queríamos o caneco e não conseguimos, havia uma frustração, alguns estavam a chorar. Só quem está no balneário é que entende isso.

O lance do pesadelo foto Getty

De 2004 para 2006, mudou alguma coisa?
Não mudou muita coisa porque, ao fim ao cabo, os jogadores que incorporaram a convocatória de 2006 eram praticamente os mesmos. E aí já havia uma cumplicidade, uma química muito grande. Já encarámos essa competição como uma família. Era um grupo muito fechado, muito forte também, que abria portas também para os mais novos se incorporarem de forma natural, sem stresses. Eu acho que isso fez toda a diferença, tínhamos um grupo muito forte e uma cumplicidade muito forte dentro do campo e também fora dele. Já nos conhecíamos e já sabíamos exatamente em qual era a desmarcação do jogador A, B ou C para nós colocarmos lá a bola.

Essa fase de grupos na Alemanha correu muito bem, o Maniche até marcou frente ao México, mas depois, nos oitavos, tiveram um jogo duro contra a Holanda, que ficou conhecido como a Batalha de Nuremberga. Porque é que o jogo se tornou assim? Foi o árbitro que perdeu o controlo?
O árbitro nunca teve o controlo. Recordo-me perfeitamente, quando nós chegámos ao estádio, já havia conversas sobre o árbitro, que já estaria a sofrer pressões da comitiva holandesa. Não sei como é que eram essas pressões, não faço a mínima ideia, não sei se era para condicionar ou não, mas fomos alertados no balneário que isso estava a acontecer. Ainda para mais o árbitro era russo. Também fomos alertados, o Scolari disse àqueles jogadores que jogavam na Rússia, e por acaso eu jogava na Rússia, para ter cuidado que, à primeira oportunidade, o árbitro podia dar-nos amarelo, depois, inclusive, num lance normal podia expulsar-nos. Isso aconteceu, de facto. O jogo foi muito duro porque, não sei porquê sinceramente, talvez a Holanda estivesse com alguns sintomas negativos do Euro 2004. Eles disputavam cada lance era como se fosse o último. Recordo-me de um lance em que o Ronaldo sofre uma lesão do [Khalid] Boulahrouz numa entrada que era para expulsão. O Ronaldo ainda tentou reentrar mas não aguentou com dor. Nós começámos a perceber que era um jogo para homens, era um jogo em que nós tínhamos de aplicar a nossa agressividade, no bom sentido da palavra. Não vai chegar o talento, não vai chegar a qualidade, tinha de haver sacrifício e tínhamos de ter a humildade de sofrer e tentar fazer o golo. Por acaso, fui eu que fiz o golo, que não nos tranquilizou muito mas ajudou bastante. Foi o único golo da partida e a Holanda tinha grandes jogadores, fez uma pressão enorme sobre a nossa defesa. Levámos nove amarelos e dois vermelhos, ficou para a história do Campeonato do Mundo como o jogo mais amarelado e com mais expulsões. Ficámos orgulhosos, foi uma batalha duríssima.

Batalha de Nuremberga, Maniche chuta, vai buscar outra vez, ó Van der Sar foto Getty

Nos quartos de final tiveram um encontro com a Inglaterra que também foi a penáltis, como em 2004. Quão importante foi essa vitória de 2004 em 2006? Já estavam confiantes de que iriam ganhar?
Não, nunca pensámos isso, porque quem pensa assim normalmente sai derrotado. Subestimar um adversário com tanta qualidade como a que a Inglaterra tinha nesse tempo não iria dar bom resultado. Acima de tudo, tivemos respeito pela Inglaterra, sabíamos que eles tinham uma grande equipa, um grande treinador. Não iria ser um jogo fácil, e não foi, por isso é que fomos a penáltis. Nos penáltis, a parte emocional talvez tenha afetado a Inglaterra, uma vez que perderam em 2004. Apesar dos jogadores não serem os mesmos, está lá aquele sentimento e não sai. Parece que desaparece, mas não. Podem vir as recordações do passado, fica sempre aquela memória do ‘nós perdemos nos penáltis’. E quando um jogador falha o primeiro, começa a condicionar os outros, começa a cair a ficha. Acho que foi um pouco por aí. Os penáltis dependem muito da parte individual, da capacidade emocional, já não depende da equipa.

Nas meias-finais Portugal foi eliminado, mais uma vez com um penálti do Zidane. Como é que foi estar tão perto de conquistar dois títulos, na altura inéditos, e de ter falhado por muito pouco?
Falhámos por pormenores. Foi por pouco, foi por um detalhe. Recordo que foi um penálti do Ricardo Carvalho com o Thierry Henry ou assim, um deles. Mas havia muito jogo ainda, tal como contra a Grécia. Podíamos ter vencido o jogo, recordo-me que nós tivemos mais tempo por cima do jogo, não fomos nada inferiores à França. Tivemos mais posse de bola, mais remates, mais ações ofensivas, só que, lá está, a França tinha uma grande equipa, tinha grandes jogadores, dos melhores do mundo. Não é fácil dar a volta a um jogo onde eles também têm a capacidade de fazer o segundo golo, Foi uma meia-final que doeu. Se tu perdes e és inferior não dói tanto, agora quando perdes e és superior ao teu adversário dói mais e foi exatamente isso que aconteceu. No jogo do terceiro e quarto lugar [Portugal perdeu 3-1 contra a Alemanha], o chip já tinha mudado, a cabeça já não estava lá. Não era bem igual a estar numa final. Levámos um murro no estômago e não nos conseguimos levantar, foi isso que nos aconteceu contra a Alemanha. Estávamos tão perto de uma final, queríamos ir à final, merecíamos ir à final.

Penálti (e que dois craques na imagem) foto Getty

Queria também que falasse um pouco sobre Scolari. O que é que ele trouxe para a seleção que a seleção anteriormente não tinha?
Foi compromisso, acima de tudo. O Scolari deu e trouxe compromisso e era exatamente isso que nós tínhamos de ter. Não vou fazer comparações com outras seleções porque eu não estive lá, não sei se tiveram ou não compromisso, mas o que eu sei é que faltava sempre mais alguma coisa. Na nossa seleção não faltou nada, demos o máximo. Scolari tinha sido campeão do mundo pelo Brasil, tinha estado em grandes clubes, os jogadores respeitavam-no muito. Ensinou-nos a ter amor próprio e agregar-nos com o adepto. A seleção precisava dos portugueses, precisava dos adeptos, e ele, como grande comunicador, um dos melhores do mundo nesse capítulo, ensinou-nos também a puxar pelo adepto. Talento nunca faltou à seleção em todas as gerações, faltava era o pormenor, a disponibilidade, o dar tudo em prol da seleção. Scolari, com as suas palavras sábias, ensinou-nos, de facto, a termos ainda mais amor pelo nosso país, mais compromisso, mais disponibilidade em todos os jogos, onde nós jogávamos.

Essas duas competições foram as primeiras de Cristiano Ronaldo na seleção. Na altura já deu para ver no que ele se iria tornar?
Em termos de mentalidade ele não mudou, é o mesmo, tem o que sempre teve, a disponibilidade e compromisso. Tem aquela virtude do querer sempre mais e mais e fazer melhor. Ainda com 17, 18 anos, já era um dos primeiros a chegar ao treino. Recordo-me uma vez, num treino, ele estava a bater livres e o Scolari disse ‘chega, vai descansar as perninhas que amanhã temos jogo’. Mas ele queria continuar a bater e a bater até atingir os seus objetivos. Ele tinha o objetivo de ser o melhor do mundo. Uma coisa é dizer, outra é fazer e ele fez. As pessoas não têm noção do quanto ele trabalha, do quanto ele se foca para todos os jogos, para os treinos, enfim, para tudo. Antigamente era um jogador mais irreverente, era um jogador de ala, um extremo, driblava, cruzava, fazia golos, agora não, agora está um jogador de área. Neste momento da sua carreira está obcecado pelo golo. Tem de fazer golo, vive de golos. O chip mudou mas continua a trabalhar com grande profissionalismo e sempre a querer melhorar. A mentalidade faz a diferença.

Não era uma má seleção, não foto Getty

Para finalizar, o Maniche acabou por não disputar mais nenhuma competição pela seleção. Custou-lhe muito falhar o Euro 2008?
Sim, custou. Custou porque acho que merecia, acima de tudo. Já merecia ir em 2002 mas entendo, havia outros jogadores com qualidade e tinha de respeitar, 2008 custou-me muito, custou-me muito mais do que não ir em 2002 porque o Scolari tinha-me dito que eu ia. Já tive esta conversa com ele, inclusive, mas não guardo rancor. Estava no Inter de Milão na altura e o Scolari garantiu-me ‘tu vais, independentemente de estares a jogar mais ou menos não tenho problema algum, conto contigo, tu fazes parte do grupo’. Joguei desde sempre com ele, foi com ele que tive a primeira internacionalização. Joguei sempre a titular, mesmo os jogos de apuramento, só não jogava quando estava lesionado. De resto, sempre a titular. Por isso, achei estranho não estar na convocatória. Foi muito mau para mim porque eu, além de merecer, acho que tinha condições para dar muito mais à seleção e jogar mais anos. Mas não controlo o que se passa nos bastidores e isso fez toda a diferença.

Disse que tinha voltado a falar com Scolari depois da convocatória.
Sim.

Como foi essa conversa?
Quando lhe disse ‘mister, eu merecia ir em 2008’, ele pediu-me desculpa. Obviamente que não se abriu, não disse em concreto o motivo exato por que eu não tinha ido porque não havia motivo. A resposta mais fácil de dar era, efetivamente, dizer que foi por opção, não se pode dar uma contrarresposta a isso. Mas então, aí, foi uma opção errada. Quando te dizem que tu vais e depois não vais a dor é maior. A desilusão foi enorme na altura, fiquei magoado, confesso, até disse isso publicamente. Mas depois juntei as peças do puzzle e verifiquei que isso foi um jogo de bastidores que a Seleção já tinha antes do Scolari. Não esperava que com o Scolari viesse novamente a ter esse jogo de bastidores através dos empresários. Lançavam alguns nomes para irem os jogadores do empresário A ao B.

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