Às vezes não é só tristeza ou um efeito das hormonas. Os mais novos também ficam deprimidos e os sinais nem sempre são fáceis de decifrar

24 set 2023, 08:00
Depressão infantil

A prevalência de casos de depressão entre crianças e adolescentes tem vindo a aumentar e são cada vez mais os gatilhos. Especialistas pedem atenção aos comportamentos dos mais novos, mas apelam também aos pais para que não sejam precipitados: nem toda a tristeza é sinónimo de depressão

A brincadeira preferida deixa de ter interesse e o quarto passa a ser um refúgio. As noites ora são passadas em branco, ora transformam-se em longas horas seguidas de sono durante o dia. Há quem fique refém da apatia e quem faça da irritabilidade o seu escudo protetor. O apetite ora é escasso, ora insaciável. 

Descrever a depressão numa criança ou adolescente é descrever todos os cenários possíveis nesta doença: não há um comportamento específico e muitas vezes os sinais passam despercebidos anos a fio. E há ainda os casos em que a tristeza que os pais tanto estranham não passa disso mesmo, de tristeza, emoção tão comum do desenvolvimento humano.

É importante sabermos que a tristeza e o humor deprimido fazem parte da vivência humana, surgem como reação natural a acontecimentos ou a situações do quotidiano. Os episódios de tristeza são particularmente frequentes na adolescência, não sendo sinónimo de depressão.

Berta Pinto Ferreira é pedopsiquiatra e explica que a depressão nas crianças “é pouco comum”, afeta “cerca de 1 a 2%” dos menores e apresenta “poucas diferenças de prevalência entre os sexos”. Na adolescência, “o número de casos aumenta com a idade” e a “prevalência já está entre os 4 e 5%”, sendo esta doença mental “mais marcada nas raparigas do que nos rapazes”.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 10% a 20% das crianças e jovens em todo o mundo têm ou podem vir a ter depressão. E os números em Portugal não estão muito longe disso: um estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, realizado em 2020, concluiu que a depressão afeta 31% dos jovens e adolescentes em Portugal. Dos que são diagnosticados, conta o Jornal de Notícias, perto 19% apresentam sintomas moderados ou graves e 10% apresentam um risco elevado de ter comportamentos que possam levar ao suicídio.

Olhando apenas para os adolescentes, os dados recentemente apresentados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) no retrato Os jovens em Portugal, hoje: Quem são, que hábitos têm, o que pensam e o que sentem, coordenado por Laura Sagnier e Alex Morell, mostram que 12% dos jovens entre os 15 e os 34 anos já auto-infligiram lesões corporais, 5% sofreram de transtornos alimentares e mais de metade está insatisfeito com o próprio corpo. Mas as questões da saúde mental não se ficam por aqui: 30% já tomaram medicamentos para o sono e 26% para a ansiedade e depressão.

A procura de ajuda profissional é determinante em qualquer questão de saúde mental, mas tanto a psicóloga como a pedopsiquiatra pedem aos pais atenção e sensatez e que não se precipitem em diagnósticos apenas porque a criança ou o jovem está mais triste ou irritado. “O importante é olhar para a criança e perceber se houve mudança no seu temperamento habitual”, sublinha Berta Pinto Ferreira.

O bullying, seja ele praticado presencialmente ou através de plataformas digitais, é um dos gatilhos para a depressão nas crianças e nos adolescentes. (Freepik)

Como se manifesta a depressão em crianças e adolescentes?

De forma distinta, convém começar por dizer. Tal como a depressão infantil e juvenil não se espelha de igual modo quando comparada com a dos adultos. Mas antes disso, há que sublinhar que nem toda a tristeza é sinónimo de depressão.

“É diferente ter sintomas depressivos a ter depressão, o que aparece muito em consultório é os miúdos diagnosticados pelos pais através do ‘Doctor Google’. Temos de ter muita atenção a isso. Uma coisa é a sintomatologia, outra coisa é de facto ter um quadro depressivo”, atira a psicóloga Bárbara Ramos Dias, especialista em adolescente e autora de livros de parentalidade. “Parece que às vezes os pais se sentem mais confortáveis se encontrarem um diagnóstico e nem sempre é assim”, lamenta.

“Na depressão, a tristeza assume outros contornos, mais invasivos, persistentes e que condicionam o dia a dia, surgem acompanhados de outras manifestações clínicas”, adverte Berta Pinto Ferreira, que adianta que “os sintomas depressivos podem surgir em qualquer idade, aos 10, 20 ou 30 anos”. 

No entanto, a forma como a depressão aparece na criança ou no adulto é diferente. “No adulto pode aparecer primeiro uma tristeza e uma vontade de isolamento, o mais comum nos adolescentes é aparecer como forma de irritabilidade, passa a responder mal, a bater com a porta, está zangado, isso também é uma forma da depressão se demonstrar, não tanto pelo cansaço e tristeza generalizada”, esclarece a médica especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência, que dá consultas no Hospital Lusíadas.

Numa criança, continua a psiquiatra, “se começa a ficar mais triste, com menos prazer nas brincadeiras, se gostava muito de jogar à bola e deixa de querer ir, se fica mais irritável, chora ou grita, tanto está feliz como triste”, então está na hora de os pais procurarem uma avaliação clínica, especialmente se a estes sinais se juntarem “alterações no padrão de sono”, em que, exemplifica, a criança “acorda várias vezes, tem dificuldades em adormecer”, ou ainda “alteração do padrão de apetite e do rendimento escolar.” Mas, mais uma vez, a médica pede coerência: “não é ao fim de uma semana” com estes sinais que se consegue um diagnóstico de depressão, “tem de haver uma alteração persistente”.

E quanto a géneros, há diferença? Sim. De um modo geral, afirma a pedopsiquiatra, nas raparigas a depressão espelha-se mais pela tristeza, sensação de vazio e raiva; já nos rapazes, também a tristeza assim como a sensação de falta de apoio.

Genética, dinâmica familiar e redes sociais. Tudo isto (e muito mais) serve de gatilho

A perturbação depressiva é complexa e multifatorial, acaba por ser o resultado de uma combinação de fatores ambientais e sociais. Mas há “indivíduos biologicamente mais vulneráveis” e suscetíveis à depressão, reféns de uma herança genética nada desejada. E só o fator genético aumenta em “duas a três vezes o risco de depressão major em indivíduos com familiares de primeiro grau com perturbação depressiva”, esclarece a médica, que nos dá mais números: a genética pesa 33% a 70% na depressão. E a probabilidade de tal acontecer é grande: três em cada 10 portugueses já foram diagnosticados com depressão e seis já sentiram sinais da doença num momento da sua vida, estima um estudo da Lundbeck Portugal, farmacêutica especializada em doenças neurológicas e psiquiátricas.

No caso dos adolescentes e pré-adolescentes (isto é, a partir sensivelmente dos dez anos), “o  aumento na prevalência” dos casos de depressão apresenta gatilhos que começam a ser mais recorrentes, como é o caso do “grande uso das tecnologias, o cyberbullying, isolamento social” provocado pela vida digital, vida essa nem sempre possível de eliminar: “o que está na internet fica para sempre na internet”, lamenta a pedopsiquiatra.

“Também se pensa que este aumento de prevalência pode dever-se às exigências escolares”, continua a médica Berta Pinto Ferreira.

Sobre os gatilhos, Bárbara Ramos Dias não hesita em dizer que são muitos. O divórcio é um deles, mas “não como os pais dizem muitas vezes, não é o divórcio em si, mas a maneira como os pais se dão no pós-divórcio” que pode ser um gatilho para o desenvolvimento da doença. As zangas com os colegas de escola e o bullying, presencial ou digital, são outros fatores colocados em cima da mesa pela psicóloga. Bárbara Ramos Dias aponta ainda o impacto das redes sociais, algo que começa a ser recorrente nas suas consultas.

Os jovens querem ser perfeitos. Na adolescência e pré-adolescência há uma coisa que é o monstro do espelho, ver refletido no espelho uma pessoa que não se reconhece, ‘já não sou criança, ainda não sou adulto, então sou o quê?’. E isso aliado às redes sociais, onde querem ser perfeitos, partilham fotografias com filtros, sentem-se completamente imperfeitos.

E os pais, adianta-se, “ajudam um bocadinho” neste círculo vicioso em que os jovens entram. “Dizem que tem de ter cuidado na maneira como veste, mas se não somos suficientes para os pais não somos suficientes para os outros. E isto fica para a vida. Os pais tentam incutir perfeição aos filhos, de tal maneira que dizem ‘tens de ser assim’, ‘tens de fazer assim’. Isto é uma pressão gigantesca nas crianças e faz com que se sintam insuficientes, tenho muitos meninos a dizerem-me isto.”

O diagnóstico de depressão é feito através de uma entrevista clínica e da avaliação comportamental. “Para dizermos que tem uma perturbação depressiva tem de haver uma alteração persistente do humor com uma duração de, pelo menos, duas semanas, associado à perda de interesse e prazer”, indica Berta Pinto Ferreira, explicando ainda que, no fundo, é necessário avaliar se há ou não “mudanças no comportamento prévio”.

E aí, sim, prestar a máxima atenção. “A depressão também está associada a outras doenças, uma depressão pode ter cerca de 60% de associação a pensamento de morte e 30% de associação a  tentativa de suicídio. É importante estar muito atento às crianças”, alerta a médica.

O divórcio dos pais pode ser um momento marcante e com um peso negativo na saúde mental dos mais novos, mas a psicóloga Bárbara Ramos Dias diz que mais do que o divórcio em si, é a forma como os pais lidam um com o outro que pode fazer a diferença, para o bem e para o mal. (Freepik)

Uma criança deprimida, um adulto deprimido?

Não necessariamente. Mas este não prende-se, sobretudo, com o diagnóstico atempado e o tratamento adequado: uma criança que vê a sua depressão ser reconhecida e tratada, tem uma menor probabilidade de desenvolver quadros depressivos ao longo da vida. Já quando o contrário acontece, em causa pode estar “uma depressão major”, dizem as especialistas.

“Qualquer doença tem impacto tanto na vida do próprio como na vida dos outros. E quando não se trata uma doença, esta fica cada vez mais cristalizada, pode tornar-se difícil de tratar no futuro”, assegura a médica psiquiatra, dizendo que tal se verifica em doenças do foro mental, como em qualquer outra física.

No entanto, a própria depressão infantil ou durante a adolescência pode servir de escudo protetor no futuro, sobretudo quando o acompanhamento e tratamento é adequado. De acordo com Berta Pinto Ferreira, “pode haver uma reincidência [da depressão], pode não ficar adormecida, mas os próprios ganham sensibilidade para isto” e aprendem a reconhecer os sinais antes que seja tarde demais.

O cumprimento do tratamento é determinante e sobre este ponto Bárbara Ramos Dias diz que os mais jovens são mais recetivos às recomendações, seja mudanças de hábitos ou até toma de medicação. “As crianças são mais recetivas ao tratamento, cada vez mais são as crianças ou adolescentes a pedirem ajuda”, diz a psicóloga, explicando que “há mais abertura para medicação” por parte dos mais novos. 

Em consultório, fala abertamente da importância dos medicamentos e da necessidade de quebrar o estigma que ainda existe, mas foca-se também naquilo que cada criança e adolescente pode fazer por si e que, no final de contas, é também uma forma de tratamento, como a prática de exercício físico, a boa alimentação, a boa hidratação. E às vezes, diz, conseguem-se bons resultados com esta “medicação natural”, que à sua maneira melhora o bem-estar das crianças e jovens.

“Na adolescência há uma grande quebra de serotonina, os jovens ficam naturalmente mais tristes e apáticos e podemos estimular essa hormona através do desporto”, conclui.

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