Médica das gémeas diz que mãe afirmou ter todas as assinaturas garantidas "até à ministra da saúde"

31 mai, 22:34

Afirmação está num e-mail de 2020 entregue à Inspeção-Geral das Actividades em Saúde e escrito muito antes da polémica sobre a alegada cunha

A médica que tratou as gémeas luso-brasileiras no Hospital de Santa Maria escreveu que a mãe das crianças lhe disse ter todas as assinaturas garantidas, “até à Ministra da Saúde”, para conseguir o tratamento.

A frase consta de um e-mail a que o Exclusivo da TVI teve acesso e que se encontra no processo aberto pela Inspeção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A mensagem tem data de janeiro de 2020, pouco depois da chegada das crianças a Portugal. 

Após fazer um ponto da situação do caso a três superiores hierárquicos do hospital, Teresa Moreno, a médica das crianças, descreve um episódio de um encontro com a mãe das crianças: "A mãe a certa altura arrogantemente (e habitualmente é muito simpática) diz que só precisa da minha assinatura, pois tem todas as outras garantidas até à ministra da Saúde... Nem comentei... ". 

A frase descrita pela médica foi anotada pelos inspetores da IGAS que questionaram a mãe das gémeas. No auto de declarações de Daniela Martins, também consultado pela TVI, é indicado que "a declarante não se recorda, quando questionada, de qualquer e-mail enviado a esta médica, ou conversa tida com ela, questionando o porquê da demora do Zolgensma, e que nessa missiva ou conversa teria afirmado que garantiria qualquer aprovação necessária, até à ministra da Saúde".

Um "pistolão"

Após a reportagem de novembro de 2023 do Exclusivo da TVI que desencadeou a polémica, a mãe das crianças tem dito sempre não conhecer o filho do Presidente da República que segundo o relatório da IGAS levou o ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, a marcar a consulta no Hospital de Santa Maria contra a vontade dos médicos e em violação das regras definidas sobre quem pode fazer essas marcações. 

A frase citada no referido e-mail da médica, com data de 2020, soma-se àquela captada pela TVI em 2023, no Brasil, onde Daniela Martins admitiu a influência de um “pistolão” (uma cunha, no português do Brasil). 

Nessas declarações, a mãe contava que tinha encontrado resistência da médica a dar o medicamento e que usou os seus “contactos”, através da “nora do presidente, que conhecia o ministra da Saúde, que mandou um e-mail para o hospital e falou sobre o caso das meninas… começaram a receber ordens de cima”. 

Ex-ministra nega influência

Em resposta à frase escrita pela médica no referido e-mail de 2020, Marta Temido garantiu esta sexta-feira, mais uma vez, não ter tido qualquer influência no caso. 

“Não faço a menor ideia do que possa estar a falar. Esses processos nem são autorizados pela ministra da Saúde. Sobre esse tema já disse tudo o que tinha a dizer e não tenho nada a ver com esse processo”, afirmou Marta Temido. 

Consulta marcada de forma ilegal

Recorde-se que em abril a inspeção da IGAS concluiu que a consulta das gémeas luso-brasileiras foi marcada de forma ilegal, no final de 2019, pelo ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, após a reunião com o filho de Marcelo Rebelo de Sousa, apesar do ex-governante insistir que não deu qualquer ordem nesse sentido. 

Os inspetores da saúde acreditaram mais na palavra da secretária de Lacerda Sales no governo, Carla Silva, que garantiu ter tido ordens do próprio nesse sentido, não se descortinando, segundo o relatório consultado pela TVI, outra razão para a acção da sua secretária sendo este um cargo de confiança pessoal. 

Para isso "tinha ficado no Brasil"

A terem de facto existido, como escreveu a médica no e-mail, as palavras da mãe das crianças sobre a ministra da Saúde aconteceram semanas após a primeira consulta presencial das crianças, numa altura em que a mãe insistia que as filhas tinham de ter acesso àquele que na altura era o medicamento mais caro do mundo (2 milhões de euros por doente). 

Nessa mesma altura, enquanto o hospital esperava pela avaliação da Agência Europeia do Medicamento, e em que a médica do Santa Maria pretendia administrar outro medicamento às gémeas (o mesmo que estas já tinham tomado no Brasil), segundo a médica a mãe respondeu-lhe que para isso "tinha ficado no Brasil".  

Quatro crianças luso-descendentes sem resposta

As centenas de documentos a que o Exclusivo da TVI apenas teve acesso esta semana estiveram na origem do relatório final da IGAS sobre o caso, onde o e-mail da médica a falar da ministra da Saúde é pouco valorizado, sendo apenas referido nos autos de declarações da médica e da mãe.

Pelo contrário, os inspetores parecem ter valorizado os depoimentos da médica sobre a forma como foi sucessivamente contrariada na intenção de não marcar a consulta para as gémeas que tinham outro tratamento em curso no Brasil. 

Segundo Teresa Moreno, "após a mediatização do medicamento, foram recebidos contactos diversos de familiares de doentes portugueses ou luso-descendentes, com interesse em saber da possibilidade de tratar em Portugal as crianças com o mesmo fármaco".

Ao todo, a médica que já tinha tratado a bebé Matilde com o medicamento mais caro do mundo, que à época não era administrado em praticamente nenhum outro país, recebeu contactos referentes a quatro bebés da Bélgica, Alemanha e Canadá. 

Essas famílias ficaram sem resposta ou foi-lhes dito para ficarem onde estavam “porque as crianças provinham de países desenvolvidos, onde tinham garantia de assistência médica". 

Não era uma cura

"Havia na população e nos meios de comunicação social a convicção de que o novo medicamento constituía uma cura, ao contrário da alternativa terapêutica. À data dos factos, a comunidade médica sabia já tal não ser verdade, não obstante o benefício terapêutico", acrescenta a nota da declarações de Teresa Moreno à IGAS.

Cruzando as datas dos factos com os relatos da clínica percebe-se que após o contacto da secretária de Lacerda Sales com o hospital a médica “recebeu três telefonemas da diretora do departamento dizendo que havia indicação do diretor clínico para marcar as consultas para as gémeas”, “tendo a médica alertado que essa família não queria mera consulta, mas um tratamento com Zolgensma" (o medicamento mais caro do mundo).

Segundo a nota de declarações consultada pela TVI, Teresa Moreno “relembrou o impacto financeiro do tratamento e num segundo telefonema foi informada pelo diretor de departamento que o diretor clínico tinha insistido pela marcação da consulta para as crianças, por indicação da Secretaria de Estado".

Médicos resistiram a marcar consulta

Mais ou menos por esta altura, em reação, os médicos do departamento de neuropediatria, incluindo Teresa Moreno, escreveram uma carta à administração a contestar tratamentos tão caros a crianças que não viviam em Portugal e que tinham outros tratamentos em curso no país de origem, numa altura em que existiam tantas dificuldades financeiras. 

A carta dos médicos não ficou registada nos arquivos do hospital e só reapareceu durante a realização da primeira reportagem da TVI sobre este caso. 

No dia seguinte ao anterior telefonema, “foi recebido novo telefone da diretora do departamento a informar que a direção clínica mantinha as instruções de marcação de consulta para as gémeas, por haver determinação superior da Secretaria de Estado. A médica concretizou não saber de quem partiu a determinação, embora houvesse rumores que se trataria do Presidente da República", lê-se na nota de declarações da médica que acabou mesmo por receber e mais tarde tratar as gémeas luso-brasileiras.

António Lacerda Sales vai ser o primeiro a ser ouvido pela comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas, no dia 6 de junho, vésperas das Eleições Europeias, marcadas para dia 9.

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