Depois dos porcos, as vacas. Esta pode ser a "tigela de mistura" para a próxima pandemia

CNN , Brenda Goodman e Nadia Kounang
18 mai, 16:00
Vacas na Califórnia (Ed Young/Design Pics Editorial/Universal Images Group/Getty Images)

Novo estudo descobriu que as vacas têm o mesmo tipo de recetores para vírus que as aves, mas também os que têm os humanos. Isso significa que podem ser hospedeiras de vírus que evoluem para estirpes híbridas capazes de infetar tanto aves como humanos e fomentar uma nova pandemia. Foi deste mesmo modo, que o surto mundial de H1N1 teve início em porcos no México

No início de março, Barb Petersen, uma veterinária de animais de grande porte do Texas, começou a receber chamadas das explorações leiteiras com que trabalha no Panhandle. Os trabalhadores estavam a ver muitas vacas com mastite, uma infeção do úbere (usualmente chamado de teta).

O leite estava espesso e descolorido, e o fenómeno não podia ser explicado por nenhum dos suspeitos habituais, como bactérias ou danos nos tecidos.

Telefonaram-lhe várias outras explorações leiteiras. Um proprietário disse-lhe que pensava que a sua quinta tinha "o que quer que ande por aí, e metade dos meus animais de estimação morreram", o que indicava que o contágio tinha ido para além do gado.

Depois de efetuar uma bateria de testes e de excluir todas as causas possíveis, Petersen enviou amostras de animais doentes e mortos para o laboratório veterinário estatal da Texas A&M e para amigos e colegas da Universidade Estatal do Iowa.

O que encontraram - cargas do vírus da gripe H5N1 - abalou a indústria dos laticínios e pôs em alerta as autoridades de saúde pública de todo o mundo. Também criou uma lista de tarefas científicas urgentes. Uma das primeiras perguntas a que era necessário dar resposta era como é que o vírus estava a infetar as vacas.

Os investigadores dos EUA e da Dinamarca encarregaram-se dessa tarefa. As suas descobertas, publicadas num estudo de pré-impressão, mostram que as vacas têm os mesmos recetores para os vírus da gripe que os humanos e as aves. Os cientistas receiam que as vacas possam ser "tigelas de mistura" - hospedeiros que ajudam o vírus a aprender a propagar-se melhor entre as pessoas. Um acontecimento deste tipo, embora raro, segundo os especialistas, poderia colocar-nos no caminho de outra pandemia.

A gripe das aves experimenta novos hospedeiros

Durante anos, o H5N1, ou gripe aviária altamente patogénica, esteve confinado principalmente à população de aves, mas recentemente começou a infetar um número crescente de mamíferos, o que sugere que o vírus pode estar a adatar-se e a aproximar-se de se tornar um agente patogénico humano.

Os vírus da gripe aviária dizimaram bandos de aves de capoeira comerciais nos EUA e, como se sabe que os porcos apanham o vírus da gripe aviária, os suínos têm sido monitorizados de perto para detetar sinais de infeção - mas as vacas não estavam no radar de ninguém como potenciais hospedeiros.

Desde o final de março, foram detetadas 42 manadas infetadas em nove estados, segundo o Departamento de Agricultura dos EUA. Apenas uma pessoa foi infetada pelo H5N1 após contato com vacas infetadas e o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA afirma que o risco atual para a saúde pública é baixo, embora esteja a trabalhar com os estados para monitorizar as pessoas expostas a animais.

"A descoberta no gado tem sido muito diferente", disse Lars Larsen, professor de microbiologia clínica veterinária na Universidade de Copenhaga, na Dinamarca. Nos mamíferos, a gripe infeta normalmente os pulmões. Nos gatos, também pode infetar o cérebro. "Aqui vemos uma enorme quantidade de vírus na mama e no leite", disse Larsen.

Lars Larsen disse que a concentração de vírus H5N1 no leite de vacas infetadas é mil vezes maior do que a observada normalmente em aves infetadas. O especialista e os seus colegas calcularam que, mesmo que o leite de uma única vaca infetada fosse diluído em mil toneladas de leite, os cientistas conseguiriam detetar vestígios do vírus em testes laboratoriais.

Testes efetuados pela Food and Drug Administration dos EUA (conhecida pela sigla FDA, organização que regula os alimentos e medicamentos) encontraram fragmentos inertes de material genético do vírus H5N1 em cerca de uma em cada cinco amostras de leite compradas nas prateleiras das mercearias, levantando questões sobre a forma como o vírus se tinha espalhado tanto. Os investigadores confirmaram, em testes posteriores, que o leite pasteurizado testado não era infecioso e não podia deixar ninguém doente.

Mas, isso não impediu que o surto da doença afetasse mais do que alguns nervos dos animais. A saúde das vacas é muito lucrativa. O leite e os produtos láteos foram o quarto maior produto agrícola dos EUA em termos de receitas, em dinheiro, em 2022, de acordo com o serviço de investigação económica do USDA. As vendas de gado e vitelos eram o segundo maior produto de base.

Como é que os vírus penetram nas células

Os vírus precisam de uma forma de penetrar nas células. No caso do vírus que causa a Covid-19, a chave é um recetor chamado ACE2. No caso dos vírus da gripe, é uma molécula de açúcares que se destaca da superfície das células, chamada ácido siálico.

Diferentes animais possuem diferentes formas de ácidos siálicos. As aves têm recetores de ácido siálico com formas ligeiramente diferentes das que os humanos têm no trato respiratório superior.

Se segurarmos o dedo indicador a direito, é mais ou menos esse o aspeto do recetor de ácido siálico de uma ave, diz o Andy Pekosz, microbiologista molecular e imunologista da Universidade Johns Hopkins. Se dobrarmos o dedo na junta em forma de L invertido, é esse o aspeto do recetor de ácido siálico humano. Os vírus da gripe tendem a preferir ligar-se a uma forma em detrimento da outra, afirmou.

Os investigadores pensam que esta pode ser uma das razões pelas quais o H5N1, que teve origem nas aves, não se propagou eficazmente entre as pessoas.

Até há pouco tempo, ninguém sabia que tipo de recetores de ácido siálico tinham as vacas, porque se acreditava que não apanhavam nenhum vírus da gripe da estirpe A como o H5N1.

Lars Larsen e os colegas dos EUA e da Dinamarca recolheram amostras de tecido dos pulmões, traqueia, cérebro e glândulas mamárias de vitelos e vacas e coraram-nas com compostos que sabiam que se ligavam a diferentes tipos de recetores de ácido siálico. Cortaram os tecidos corados em fatias muito finas e observaram-nas ao microscópio.

O que viram foi surpreendente: os minúsculos sacos produtores de leite do úbere, chamados alvéolos, estavam repletos de recetores de ácido siálico, e tinham tanto o tipo de recetores associados às aves como os que são mais comuns nas pessoas. Quase todas as células analisadas continham ambos os tipos de recetores, afirmou a autora principal do estudo, a Charlotte Kristensen, investigadora de pós-doutoramento em patologia veterinária na Universidade de Copenhaga.

Esta descoberta suscitou preocupação, porque uma das formas de os vírus da gripe mudarem e evoluírem é trocando partes do seu material genético com outros vírus da gripe. Este processo, denominado rearranjo molecular, requer que uma célula seja infetada com dois vírus da gripe diferentes ao mesmo tempo.

"Se os dois vírus estiverem presentes na mesma célula ao mesmo tempo, é possível obter essencialmente vírus híbridos", afirmou o autor do estudo, Richard Webby, diretor do Centro de Colaboração da Organização Mundial de Saúde para Estudos sobre a Ecologia da Gripe em Animais e Aves.

Para ser infetada simultaneamente com dois vírus da gripe - um vírus da gripe aviária e um vírus da gripe humana - uma célula teria de ter ambos os tipos de recetores de ácido siálico, o que as vacas têm, algo que não era conhecido antes deste estudo.

"Penso que este é provavelmente um acontecimento muito raro", explica Richard Webby, que estuda o vírus H5N1 há 25 anos. Para que algo assim acontecesse, uma vaca infetada com o vírus da gripe das aves teria de apanhar uma estirpe de gripe diferente proveniente de um humano infetado. Atualmente, as infecções de gripe humana são baixas em todo o país e estão a diminuir à medida que a época da gripal vai terminando, tornando a possibilidade de algo deste género acontecer ainda mais remota.

No entanto, não é inédito.

Os porcos também têm recetores de ácido siálico humanos e de aves nas suas vias respiratórias, e sabe-se que as infecções de gripe em porcos desencadearam vírus pandémicos. Acredita-se que a pandemia de 2009 causada pela gripe H1N1, por exemplo, tenha começado em porcos no México, quando o vírus se reordenou para se tornar um vírus capaz de se espalhar rapidamente entre as pessoas.

Segundo Richard Webby, outra forma de o vírus da gripe das aves se transformar nas vacas é mais gradual - e mais comum.

Cada vez que um vírus se copia a si próprio, comete erros. Por vezes, esses erros tornam o vírus menos potente e prejudicam as suas hipóteses de sobrevivência, mas, noutros casos, são acidentes felizes - pelo menos para o vírus. Se um vírus da gripe das aves se alterasse de forma a poder ligar-se mais facilmente aos recetores de ácido siálico do tipo humano nas vacas, poderia ganhar uma vantagem de sobrevivência: a capacidade de infetar mais células e mais tipos de animais, como os humanos.

Os vírus podem mudar e derivar

O rearranjo molecular seria uma grande mudança na evolução do vírus, mas a passagem gradual do vírus por novos hospedeiros também poderia resultar numa alteração do genoma do vírus por deriva evolutiva.

De qualquer forma, não são boas notícias, disse Sam Scarpino, biólogo computacional, diretor de Inteligência Artificial e ciências da vida na Northeastern University.

"Temos agora um dado que sugere que o perfil de risco é mais elevado", disse Sam Scarpino, que não esteve envolvido no novo estudo.

Sam Scarpino salienta que se trata de uma investigação inicial. Precisa de ser confirmada por um grupo diferente de investigadores e que foi publicada rapidamente como uma pré-impressão antes de ser analisada por peritos externos.

No entanto, afirma que os resultados também são importantes porque ninguém tinha analisado antes a suscetibilidade dos tecidos das vacas ao vírus da gripe A.

"Este é o primeiro de que tenho conhecimento. Não quer dizer que não haja outro por aí, mas vários de nós analisaram-no com muito cuidado e não encontraram nenhum", referiu Scarpino.

Charlotte Kristensen disse que os investigadores também não conseguiram encontrar qualquer investigação anterior sobre o assunto, razão pela qual efetuaram o estudo.

"Sentimos que, dada a situação, devíamos apresentar estes resultados o mais rapidamente possível", disse Lars Larsen.

Outros especialistas afirmaram que, embora haja mais pontos a ligar, o estudo aumenta claramente o nível de alerta.

"Penso que dispomos agora de informação mais do que suficiente para concluir que o que tem de acontecer é que precisamos de parar a transmissão no gado leiteiro", disse Sam Scarpino. "Temos de aumentar o tipo de proteção obrigatória para os trabalhadores que estão em contato próximo com as vacas e os produtos láteos e aumentar significativamente o financiamento destinado a compreender a gripe e as vacas, porque há uma quantidade enorme de coisas que não sabemos e que temos de aprender muito rapidamente."

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