Reportagem
Joana Azevedo Viana
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Associated Press
São quase 130 milhões de habitantes, dos quais 96 milhões estão recenseados para votar a 2 de junho, e é nas mãos deles que está o futuro do México, num momento de viragem para a nação. “De várias formas, as campanhas – e as preferências de voto – têm sido movidas por afirmações sobre quem é a força mais credível e honesta”, diz à CNN Portugal Falko Ernst, analista sénior do International Crisis Group (ICG) para o México.
“O país está largamente dividido em dois campos – entre os apoiantes do Morena e do presidente de saída, Andrés Manuel López Obrador, que defendem que o México teve uma viragem substancial para melhor nos últimos anos, e a oposição, que defende precisamente o oposto”, adianta o especialista. “Faltam propostas concretas para resolver as questões mais prementes – sendo a segurança e a economia as principais preocupações dos cidadãos. Quem irá governar o México é, em grande medida, uma questão de fé.”
A ter fé nas sondagens, a próxima chefe de Estado será Claudia Sheinbaum, cabeça de lista do partido no poder, da esquerda dita popular, que enfrenta a ex-senadora Xóchitl Gálvez, líder da coligação Frente Ampla, que integra três partidos conservadores de direita. Antes da ida às urnas, este é já um marco histórico para o país, que pela primeira vez terá uma mulher na presidência – facto ainda mais relevante se se considerar, por exemplo, uma piada controversa feita pelo presidente de saída no verão passado. “E tudo o que me dizem, isso não é violência de género? Ou o género é só feminino?”
As palavras proferidas numa conferência de imprensa poucos meses depois de Gálvez ter formalizado a sua candidatura caíram mal numa nação onde mais de três mil mulheres são assassinadas anualmente e onde a violência de género continua a aumentar, com uma taxa de impunidade a rondar os 95%, segundo dados oficiais. Em resposta, a Comissão Nacional Eleitoral ordenou ao governo de Obrador que modificasse ou removesse todos os vídeos que incluíssem a declaração.
“Apesar de as duas candidatas à presidência serem mulheres, as questões de género não foram um tema proeminente nem nas suas agendas nem no debate geral antes das eleições”, diz Ernst. “Atualmente, não há qualquer indicação de que estes assuntos sejam tema forte nos esforços da próxima administração. Mas existe obviamente alguma esperança de que uma presidente mulher leve mais a sério estes problemas prementes do que anteriores governos, face à contínua onda de feminicídios que o México tem vindo a registar.”
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O Morena e "a figura mais carismática" da política mexicana
Desde o ano passado, as sondagens preveem a vitória de Claudia Sheinbaum com uma margem considerável – um inquérito de final de maio atribuía-lhe 56% das intenções de voto, contra 34% para Gálvez e 10% para o terceiro candidato, Jorge Álvarez Máynez, do Movimento Cidadão. A confirmar-se a vitória, prevê-se um projeto de continuidade, sustentado no que López Obrador pôs em marcha. Isso acarreta riscos para a antiga autarca da Cidade do México, que pode estar condenada a viver na sombra do antecessor.
“O presidente López Obrador é uma figura de significativa controvérsia, que moldou o panorama político mexicano nos últimos 25 anos e que continua a ser a figura mais carismática da política mexicana”, explica à CNN Portugal Manuel Alejandro Guerrero, do Departamento Ciências Políticas e Sociais da Universidade Iberoamericana, na Cidade do México.
Quando conquistou a presidência como candidato do Morena, em 2018 – depois de duas derrotas, em 2006 e 2012, enquanto candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD) – “Obrador prometeu uma verdadeira mudança sob o slogan «Pelo bem-estar de todos, vamos pôr os pobres em primeiro», o que não só deu visibilidade a estes setores no discurso político, como também alterou a ideia generalizada de que as desigualdades não eram resultado da preguiça ou dos defeitos das pessoas, mas de uma distribuição desigual do poder”, adianta Guerrero.
“Não é por acaso que Morena, acrónimo do Movimento de Regeneração Nacional, corresponde quer à cor da pele da maioria da população de um país onde a cor da pele ainda é associada à posição social de cada um, quer ao nome usado para referir a Virgem de Guadalupe, um dos símbolos nacionais mais populares do México, que vai muito além do catolicismo.”
Sob o mandato de López Obrador, “houve uma despesa recorde em programas sociais, o que contribuiu efetivamente para a redução geral da pobreza”, explica Falko Ernst. “[Mas] a corrupção, que o presidente declarou ter acabado, continua a ser um fator importante que prejudica a funcionalidade das instituições. Não foram tomadas medidas concretas para resolver este problema, o que denota uma incapacidade mais alargada para transformar as instituições do Estado nos instrumentos necessários para satisfazer as necessidades dos cidadãos.”
Voltamos à questão da fé. Ao longo do seu mandato (único sob a Constituição mexicana) e também durante a campanha ao lado da sucessora, “López Obrador pediu aos mexicanos que confiem na sua integridade e na do seu partido”, indica o analista do ICG. E os mexicanos confiaram, em parte pela aposta nesse discurso inclusivo que deu voz aos mais desfavorecidos, em parte pela estratégia de sucesso nas redes sociais, em parte pelo currículo manchado do Partido Revolucionário Institucional (PRI).
O retorno ao poder do PRI entre 2012 e 2018, um dos partidos tradicionais da história moderna do México, “foi caracterizado por alguns dos mais grotescos escândalos de corrupção governamental e pelo envolvimento direto das forças armadas na morte de estudantes”, adianta Guerrero. “Obrador acabou por vencer em 2018 com a maior margem (53,19%) e a maior participação eleitoral (63,42%) dos últimos 20 anos no país.”
O principal legado de Obrador será sempre essa capacidade de mobilizar um grande segmento da população que, até então, nunca se tinha sentido representada nem defendida pelo poder político. “Mas apesar de ter tido sucesso em obter e manter a lealdade desses eleitores, estas eleições vão testar a capacidade do Morena de manter a sua coligação vencedora sem Obrador à frente e ao centro”, indica Henry Ziemer, do Programa Américas do Center for Strategic and International Studies (CSIS), sobre o partido que Obrador estabeleceu em 2011, ainda enquanto membro do PRD, e que levou a uma debandada dos seus militantes para o Morena.
“É crucial olhar não apenas para a performance de Sheinbaum, que está na mente de todos, mas para o sucesso dos candidatos do Morena também aos níveis estatal e local.”
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"Um estado perpétuo de guerra criminosa"
Não foi só o nome do partido que Obrador escolheu a dedo. “Não é por acaso que chama ao seu movimento ‘a Quarta Transformação’, quando as três anteriores administrações procuraram a independência (1810), as leis (1857) e a justiça social (1910), mas acabaram por ser capturadas e traídas pelas mesmas ‘forças conservadoras’ que, segundo Obrador, se opõem à orientação popular do seu governo”, explica Manuel Guerrero.
Os temas que dominaram a campanha eleitoral mostram o lado negro dessa quarta transformação, que Sheinbaum promete levar “ao próximo nível”, encabeçada por questões de segurança e económicas. “Ambos são compreensíveis, o México está numa encruzilhada, enfrenta uma oportunidade económica geracional ao mesmo tempo que se confronta com organizações criminosas ressurgentes e uma quebra na capacidade do Estado em várias áreas”, aponta Henry Ziemer.
Ao longo da campanha, adianta, “Sheinbaum prometeu expandir os programas sociais estabelecidos por Obrador e mais investimento no sul do México, historicamente com menos recursos. E Gálvez fez questão de sublinhar o aumento da insegurança e da violência criminosa durante o governo de Obrador.”
Oficialmente, há indicações de que o número de homicídios no país já começou a diminuir. Mas a presidência Obrador não deixa de ficar para a história do México como a mais sangrenta de sempre – segundo dados oficiais, foram registados mais de 187 mil homicídios desde 2018. “Há dúvidas quanto à veracidade das estatísticas, que são propensas a distorções politicamente motivadas”, refere Ernst Falko. “Ainda assim, uma série de regiões vivem num estado perpétuo de guerra criminosa que não foi resolvida nem refreada, e as populações civis estão sujeitas à predação criminosa no quotidiano.”
Uma reportagem recente do Financial Times mostra o aumento do número de homicídios em relação às anteriores administrações mexicanas (quase 103 mil com presidente Calderón, mais de 130 mil com Peña Nieto) e também a descida que foi sendo gradualmente registada após ter sido atingido um pico de 36.773 homicídios em 2020, segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas e o Sistema Nacional de Segurança Pública.
“Há alguma discussão aqui sobre os números”, reforça Manuel Guerrero. “Mas apesar deste declínio, as pessoas ainda encaram a maioria das cidades como perigosas. Há relatos diários de comandos de crime organizado nas autoestradas a controlar as entradas e saídas. E até agora, mais de 35 candidatos a diferentes cargos locais foram assassinados sem qualquer investigação apropriada.”
O professor da Universidade Iberoamericana faz questão de usar a expressão “crime organizado”, e não falar apenas de cartéis da droga ou de narcotráfico, porque a criminalidade que grassa no país deixou há muito de se limitar ao tráfico de estupefacientes. “O crime de extorsão, por exemplo, subiu 26% entre 2018 e 2023, o que significa que o controlo dos negócios de pequena e média dimensão pelo crime organizado se expandiu. Se os números estiverem corretos, quase um terço do território [do México] é controlado por grupos de crime organizado.”
Isso tem reflexo também no processo eleitoral. “Em algumas regiões, como em áreas rurais, é evidente que o crime organizado não só tem a última palavra sobre que candidato ganha, como também controla importantes decisões dos municípios”, indica o também vice-presidente do Orbicom, dando como exemplos “quem assume o cargo de chefe da polícia ou que empresas ou indivíduos são contratados para fornecer serviços às autarquias, numa captura das políticas públicas e de segurança”. Isto para não falar do financiamento ilegal das campanhas, “onde há muitas oportunidades para o dinheiro do crime organizado entrar no circuito de formas difíceis de detetar”, e sem que haja “vontade política suficiente para investigar”.
É a principal arma de arremesso da oposição e o flanco mais fraco de Sheinbaum enquanto candidata à sucessão de Obrador, que a menos de dois meses de abandonar o cargo declarou que os gangues criminosos e máfias do narcotráfico são compostos essencialmente por “pessoas respeitadoras” que “respeitam a cidadania” e só se matam uns aos outros – e que, desde o início do seu mandato, optou por apostar quase exclusivamente no combate à pobreza como raiz da criminalidade sem uma estratégia paralela para acabar com a violência nas ruas.
“Apesar de ter defendido uma abordagem de desmilitarização baseada na sua estratégia de ‘abraços, não balas’, se Obrador conseguiu alguma coisa foi aumentar o papel das forças armadas na segurança e policiamento interno sem que daí resultassem benefícios tangíveis para a segurança pública”, destaca Henry Ziemer. “Abordar esta espiral descendente de insegurança não será fácil, mas terá de envolver algum reconhecimento do problema no topo, que Obrador foi relutante em oferecer.”
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"Uma bomba prestes a explodir"
É impossível falar de narcotráfico e criminalidade no México sem falar das migrações. “Tornaram-se uma fonte de rendimento para os grupos criminosos aumentarem o seu poder, alimentando a corrupção do Estado, sendo os migrantes desprotegidos as vítimas”, refere Ernst Falko.
Aparte os apelos aos mexicanos que vivem no estrangeiro para que vão aos consulados votar (são cerca de 13 milhões, a maior diáspora do mundo a seguir à da Índia), o tema das migrações esteve largamente ausente da campanha e dos debates entre as duas candidatas.
“A minha impressão é que os políticos não falam sobre migrações porque ainda julgam que é mais um problema dos Estados Unidos do que do México”, diz Guerrero. “Não querem debater uma estratégia abrangente com os EUA e não querem ficar encurralados em mais um tema complexo onde a corrupção das agências públicas está interligada com o crime organizado. Mas é uma bomba prestes a explodir.”
Apesar de 97% dos migrantes mexicanos escolherem como destino o vizinho a norte, o número tem vindo a decrescer nos últimos cinco anos, numa tendência inversa ao número crescente de mexicanos que tem estado a regressar ao seu país-natal. Ao mesmo tempo, desde 2021, o México assistiu a um aumento do número de refugiados e migrantes, a maioria dos quais quer chegar aos EUA, mas em que mais e mais acabam por ficar no país – oriundos sobretudo da Venezuela, Honduras, Guatemala, Equador e Haiti.
Segundo dados do Ministério do Interior, aponta Guerrero, “em 2023 o número de pessoas em ‘situação migratória irregular’, ou seja, migrantes sem documentos, atingiu um recorde de 782.176 pessoas”, bem acima dos mais de 441 mil registados no ano anterior. “Para além disso, a percentagem de pessoas nesta situação que foram detidas aumentou em 44% entre 2022 e 2023” no México – quando, no mesmo período, quase 2,5 milhões de pessoas foram detidas na fronteira sul dos EUA. “É uma situação complexa e o fluxo de migrações parece estar a aumentar”, sublinha o especialista.
“Os EUA estão a confiar fortemente no México para gerir o fluxo de migrantes através da fronteira, o que significa que, pelo menos daqui e até às presidenciais dos EUA em novembro, quem quer que governe o México terá uma vantagem nas negociações com a administração Biden”, aponta Henry Ziemer, não apenas no que toca às migrações, mas também ao tráfico de fentanil para os EUA. Mas o caso mudará de figura se o próximo presidente norte-americano for Donald Trump.
“Ao longo da campanha, Trump tem refletido sobre a possibilidade de recorrer às forças armadas norte-americanas para atacar organizações criminosas no México, uma medida que, se for tentada, seria quase de certeza desastrosa para as relações entre os EUA e o México”, destaca Ziemer.
Guerrero ecoa a mesma ideia. “Se Trump for eleito, o tema não poderá ser evitado. Penso que é bastante irresponsável ser-se passivo nisto em vez de se preparar um plano abrangente que inclua negociações sobre as duas questões mais caras para os EUA – tráfico de droga e migrações – e os dois tópicos mais caros para o México – segurança e tráfico de armas.”
Quando a próxima presidente do México tomar posse, a 1 de outubro, faltará cerca de um mês para se saber quem será o próximo presidente dos EUA. “Creio que esta é a primeira vez na história das eleições dos EUA que a imigração e a fronteira com o México se tornaram a preocupação número 1 para o eleitorado norte-americano”, refere Rafael Fernández de Castro, diretor do Centro de Estudos EUA-México da Universidade de San Diego. “O México estará nas urnas nos Estados Unidos.”
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Nearshoring ou a "porta dos fundos" da China
Nem só de migrações e de segurança se faz a relação EUA-México. “Um tema que até agora tem estado ausente da campanha é a questão das relações com a China, que tem estado a aumentar o investimento no México nos últimos anos, gerando receios entre os políticos dos EUA de que Pequim está a tentar explorar o México como ‘porta dos fundos’ para contornar tarifas e outras medidas comerciais”, destaca Henry Ziemer. “Para além disso, a China é uma das principais fontes de precursores químicos usados pelos cartéis mexicanos para produzir fentanil.”
Nesta outra encruzilhada, o México emerge não apenas como peão mas também como protagonista de uma promissora revolução económica por concretizar, na forma do chamado nearshoring, ou deslocalização próxima, um fenómeno que ganhou importância após a pandemia de Covid-19. “Com a China a afastar-se cada vez mais dos EUA, o México já está a sentir o impacto positivo [do nearshoring] na medida em que o seu peso como centro de trocas comerciais e de produção global aumentou”, indica Falko Ernst, o que “em parte ajuda a explicar o desenvolvimento económico globalmente positivo que o México registou” ao longo do mandato de Obrador.
“O nearshoring prossegue a bom ritmo no México, que recentemente ultrapassou o Canadá e a China para se tornar o primeiro parceiro comercial dos EUA”, acrescenta Ziemer. “Mas muito do progresso do nearshoring tem sido alcançado independentemente ou mesmo apesar das políticas a nível federal, já que o México ainda não desenvolveu nem articulou uma estratégia de nearshoring, nem identificou os tipos de setores que pretende trazer com maior prioridade para o México.”
Num artigo publicado em março, a Reuters indicava que o México está numa posição privilegiada para as multinacionais que procuram aproximar as suas operações dos principais mercados, mas que a antecipada onda de nearshoring ainda não se materializou devido ao aumento dos preços, a infraestruturas decrépitas e à incerteza política no país.
“É necessário um investimento estratégico e sustentado nas infraestruturas comerciais para que o México beneficie totalmente deste momento de nearshoring”, destaca o analista do Crisis Group. Mas com uma larga fatia do Orçamento do México alocada ao pagamento de dívida e, em cima disso, a gigante petrolífera estatal PEMEX a “esvair-se em dinheiro”, a próxima administração “vai precisar de criatividade” para dar a volta ao problema.
Para além disso, existe um desafio no setor energético, após Obrador ter tentado implementar reformas para que a estatal elétrica CFE pudesse fixar preços e excluir empresas privadas mais pequenas, outro ponto de contenda com os EUA. “As reformas do setor energético têm sido um ponto de tensão com os EUA e o Canadá”, destaca Ziemer. “É mais provável que um governo Gálvez resolva estas questões rapidamente do que um governo Sheinbaum, mas ambas podem dar importantes passos para reduzir o preço e aumentar a disponibilidade de energia, por exemplo, investindo em energias renováveis ou em parcerias público-privadas para explorar as reservas internas de gás natural do México.”
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Uma "grande sombra" a pairar
Há alguma esperança, dada a formação de Sheinbaum como engenheira energética, que a sua administração faça uma aposta de peso no setor das renováveis. “Tem havido alguns sinais positivos de que a sua equipa poderá diversificar a produção energética para dar um maior peso às energias renováveis, [quando] atualmente o setor energético do México depende fortemente do petróleo em particular”, indica Falko Ernst.
“Politicamente e em termos do orçamento público, é uma questão muito relevante, sobretudo depois dos enormes investimentos em refinarias e infraestruturas [petrolíferas] durante a atual administração”, acrescenta o investigador do ICG.
Num momento de viragem também no que diz respeito às alterações climáticas – com a subida do nível das águas a ameaçar as vastas costas mexicanas do Pacífico e do Mar Caribenho e o impacto cada vez mais severo de fenómenos extremos como secas, ondas de calor, escassez de água e tempestades a ameaçar comunidades inteiras do país – este pode ser um ponto em que a provável vencedora pode distanciar-se de Obrador.
“Apesar de se esperar que Claudia Sheinbaum dê continuidade às políticas de López Obrador em linha gerais, ela tem tido sucesso em usar estas eleições para forjar uma identidade para si própria longe da grande sombra dele”, diz Ziemer, destacando precisamente que a administração Sheinbaum “poderá focar-se mais em iniciativas ambientais e de energia limpa para cumprir a sua promessa de campanha de garantir que 50% da energia do México advém de energias renováveis até 2030”.
Mas dado que a questão energética “não pode ser transformada de forma fácil ou rápida para cumprir os padrões de proteção climática”, como aponta Falko Ernst, o grande desafio da próxima presidente no imediato será gerir as relações com os vizinhos norte-americanos sem perder de vista os diferentes interesses geoestratégicos que isso envolve.
Como sublinha Ziemer, “à medida que a competição entre as duas grandes potências aquece, o candidato que prevalecer a 2 de junho terá provavelmente de enfrentar a crescente pressão de Washington e de Pequim para se alinhar com um deles numa série de questões políticas e comerciais”.
Internamente, também há problemas urgentes que não podem ser descurados, aqueles que marcaram as campanhas de Sheinbaum, Gálvez e também do terceiro candidato que, “apesar de estar bem longe da vitória nas sondagens, é quem tem apresentado algumas das propostas mais atrativas para o eleitorado jovem, falando das alterações climáticas, reforma da educação, políticas laborais, segurança social, habitação e descriminalização da marijuana”, sublinha o professor Manuel Guerrero.
Sob Sheinbaum, antecipa o cientista político da Universidade Iberoamericana, haverá uma “continuidade dos programas sociais e o seu alargamento a outros grupos sem responsabilização nem grande transparência sobre como o dinheiro é investido, quem são os beneficiários, que melhorias estão a ser avaliadas” e “a política de segurança continuará a ser baseada numa demonstração de força da Guarda Nacional no território em vez de numa reforma das forças policiais ao nível estatal e local, num papel dissuasor em vez de mais ação preventiva e de contenção do crime organizado”.
Para além disso, antecipa-se que a candidata do Morena vai manter a rota de Obrador no que toca ao enfraquecimento das instituições públicas. “Sheinbaum está empenhada na captura política de todas as instituições que poderiam supor um controlo e equilíbrio do executivo, como o Supremo Tribunal e o Congresso.” Neste último, quer acabar com as fórmulas de representação proporcional, num país com 300 distritos eleitorais em que cada um elege um representante por maioria simples e em que os restantes 200 são eleitos por representação proporcional, “incluindo desta forma vozes e interesses das minorias”.
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O duelo, a desconfiança, os desafios
“Não há nenhuma proposta para reformar os serviços públicos ou tornar a administração pública mais eficiente”, ressalta Guerrero. “[Mas] a candidata da oposição não propôs um projeto alternativo viável para além das críticas – necessárias e pertinentes – às insuficiências e falhanços do atual governo. Há a impressão de que o seu projeto se baseia, em larga medida, num retorno ao status quo antes de López Obrador, mas incluindo muitos programas sociais já a funcionar. E os seus apoiantes estão reunidos em torno dela mais por medo e desconfiança quanto ao retrocesso democrático sob López Obrador e o que veem como uma provável deterioração com Sheinbaum do que pela natureza inovadora da sua visão e das suas propostas.”
É consensual que foi graças a López Obrador que o debate nacional mexicano passou a focar-se nos menos privilegiados e isso não deverá mudar, independentemente de quem vencer. “Acredito que isto vai continuar nos próximos anos e acredito que os resultados eleitorais no Congresso serão chave”, indica Rafael Fernández de Castro. “Se o Morena ganhar tudo, haverá reformas constitucionais como a eleição do Supremo Tribunal por voto popular, o que diminuirá a sua independência.”
Com a vitória praticamente garantida, "Sheinbaum deverá tornar-se gradualmente a sua própria pessoa e estar mais atenta à instrumentalização das políticas públicas", antecipa o especialista da Universidade de San Diego. Mas o cardápio de desafios e contendas será imenso, não só mas também no plano regional e internacional.
“As migrações são apenas uma das opções no menu de negociações com os EUA, sendo os outros a segurança, a energia e o comércio”, destaca Falko Ernst. “Em cada um destes domínios, o México tem importantes fichas de negociação e sabe como utilizá-las, tal como os EUA também dependem do seu vizinho a sul, o que limita as alavancas que qualquer futura administração norte-americana poderia utilizar para impor a sua vontade.”
Também aqui será preciso um pouco de fé, de um lado e do outro da fronteira. "A racionalidade e a preservação do interesse próprio (económico) nem sempre servem para identificar os líderes políticos da atualidade, teremos de esperar pelo resultado de ambas as eleições", aponta o analista. "O que é claro é que os destinos dos dois países estão intimamente ligados e as soluções para os muitos desafios comuns só podem ser encontradas se os dois países trabalharem em conjunto.”