«João Rocha meteu um Rolex no meu armário para me convencer, mas eu queria o FC Porto»

10 fev 2022, 09:14
Jaime Pacheco

Em semana de FC Porto-Sporting, o Maisfutebol apresenta uma longa entrevista com Jaime Pacheco, um dos melhores jogadores da história do futebol português e que um dia, magoado com o clube, trocou as Antas por Alvalade, para dois anos depois regressar. Uma conversa cheia de histórias imperdíveis.

DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias de décadas passadas e marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.

Em entrevista ao Maisfutebol, Jaime Pacheco conta tudo sobre uma carreira enorme e revela vários episódios curiosos. De quando, com 16 anos, tinha de fazer oito quilómetros a pé na noite escura para ir jogar, do rigor do pai para quem o futuro estava na carpintaria e do mês à experiência no FC Porto.

Fala da mudança para Alvalade, que começou com um convite feito por Jordão durante o Euro 84, do regresso às Antas para ser campeão europeu, dos convites para treinar Sporting e Benfica e da pena por nunca ter sido convidado pelo FC Porto. Venha daí numa viagem cheia de nomes e histórias.

O Jaime Pacheco começa a jogar contra a vontade do seu pai, não é?

O meu pai não me deixava jogar. Comecei a jogar com 16 anos, nos juvenis do Rebordosa, os jogos eram ao sábado à tarde e muitas vezes não ia porque o meu pai não me deixava.

Mas antes disso, deixa de estudar cedo, vai trabalhar com o seu pai e joga com os amigos.

Sim, eu começo a jogar no fim da escola, nos intervalos da escola, na hora do almoço. Depois comecei a trabalhar com o meu pai na marcenaria, a fazer móveis, e ia jogando nos intervalos: depois do trabalho, na véspera de natal, na véspera de carnaval, tudo o que fosse espaço para jogar, eu e todos os miúdos da minha geração íamos jogar à bola.

Não havia mais nada nessa altura?

Era jogar à bola. Às vezes jogávamos ao pião, andávamos em carrinhos de rolamento, jogávamos hóquei com uns sticks de madeira que fazíamos na fábrica. Éramos muitos criativos e andávamos sempre na rua. Mas o futebol sempre foi o meu jogo preferido. Ainda me lembro de ver o Mundial.

Qual? O de 66?

O Mundial de 66, sim. Ainda tive esse privilégio. Pequenino, criança, ia com o meu irmão ao café ver os jogos, ainda não tínhamos televisão. Lembro-me de todos os jogos que Portugal fez em 66.

Mas nessa altura os jogos do campeonato seguiam-se pela rádio, não era?

Sim, os jogos do campeonato e a Volta a Portugal. Eu acompanhava a Volta pela rádio, o Peixoto Alves, do Benfica, o Mário Silva, do FC Porto, o Jorge Corvo, do Tavira. Tudo o que era futebol e ciclismo eu ouvia na rádio. O Valdemar Pacheco, que foi jogador do FC Porto, era meu primo. Então em minha casa havia uma fação do FC Porto, que era o meu pai, o meu irmão mais velho era do Sporting e eu, talvez influenciado pelo Mundial 66 e por Eusébio, gostava do Benfica. O meu ídolo sempre foi o Eusébio e ouvia os jogos do campeonato na rádio. Para além disso, ao final da tarde tinha a curiosidade de ir ouvir os resultados de todos os jogos da III, da II e da I Divisão.

Era mesmo apaixonado por futebol...

Desde miúdo. Nessa altura ia ver os jogos do juvenis, dos juniores e dos seniores do Aliados de Lordelo, que era o clube da minha terra. Adorava aqueles domingos à tarde e vivia aquilo com uma paixão tremenda. Vivi nesse ambiente de futebol e de rivalidade com o Paços Ferreira, com o Rebordosa, com o Paredes. Tinha uma paixão louca por isso e sonhava ser jogador das distritais.

Começou a jogar no Rebordosa, não foi?

Com 16 anos.

Começou tarde...

Os treinos eram às 19 horas, por isso era tarde, sim [risos]. Não, eu percebo o que estás a dizer. Agora os miúdos geralmente começam aos oito, nove, dez anos. No meu tempo não era tão fácil. Havia clubes que não tinham juniores, outros nem tinham juvenis. O Aliados, por exemplo, não tinha juvenis. Por isso fui para o Rebordosa, que era o grande rival do Aliados. Mas eu sou um filho também de Rebordosa. Ainda hoje tenho lá grandes amigos que fiz nessa altura. Entrei a meio da época no Rebordosa, depois passei para a equipa de juniores e a época acabou. No ano a seguir comecei nos juniores e a meio da época passei para os seniores.

No espaço de um ano passa dos juvenis para os seniores?

Exatamente. Eu sou um jogador que tem um início muito rico, porque joguei nos juvenis, nos juniores e bati a distrital toda do Porto. Com a idade de júnior jogava no campo do Oliveira do Douro, do Candal, do Coimbrões, do Avintes, esses pelados todos de Gaia, que eram terríveis.

Deve ter grandes histórias desses tempos...

No Rebordosa treinávamos uma vez por semana, à quarta-feira, mas quando passei a sénior treinava à terça e à quinta-feira. Para o meu pai me deixar ir, tinha de chegar do treino e ir trabalhar. Chegava às nove, ia trabalhar até à meia noite e no dia seguinte acordava às seis da manhã. Não sei se muita gente aceitaria fazer estes sacrifícios para jogar futebol.

Incrível, de facto.

Havia outra coisa: de Lordelo a Rebordosa são sete ou oito quilómetros. Muitas vezes ia de bicicleta e outra vezes ia a pé. Oito quilómetros para lá e oito quilómetros para cá.

E à noite...

À noite, completamente escuro, não se via nada. Tinha de passar por um cemitério, à noite, escuro. Aí é que eu pedalava... E quantas, quantas vezes tomávamos banho em água fria, porque os juniores não tinham direito a água quente. Para jogar, o roupeiro chegava lá e despejava um saco se serapilheira cheio de chuteiras velhas, alguns pares eram as duas chuteiras do pé esquerdo, noutros casos eram uma chuteira número 40 e outra 43. Porque não tínhamos botas nossas, eram as botas do clube e o que sobrava. São coisas que parecem não contar nada, mas contam muito. Muito, muito. Sobretudo para nos ensinar a dar valor.

Isso tudo no Rebordosa?

Sim, sim, no Rebordosa. O Aliados já era um clube diferente, muito mais organizado, com outras condições de trabalho.

Nessa altura havia dias em que dormia cinco horas por dia?

Às vezes nem tanto. Por isso adormecia no banco enquanto fazia o trabalho.

Depois na época seguinte vai para o Aliados, certo?

Sim, o meu irmão jogava lá, era central, era o clube da minha, os dirigentes chateavam-me para ir. Estive naquela do ‘vou ou não vou’, até porque eu era júnior, estava na distrital e ia passar para um candidato ao título da III Divisão, portanto estava com receio de não jogar. Fui e passei por algumas dificuldades. Também porque o meu pai não me deixava jogar. No Rebordosa treinava-se à quarta-feira, no Aliados treinava-se à terça, quarta, quinta-feira e sexta-feira. Mas o meu pai só nos deixava ir, a mim e ao meu irmão, dois dias por semana. Não treinávamos e não jogávamos.

Mas porque é que o seu pai não o deixava jogar?

Queria que trabalhássemos. Para ele, o nosso futuro não era a jogar futebol, era ali a trabalhar com ele. O meu pai era muito rigoroso e queria que trabalhássemos na fábrica. Mas eu e o meu irmão, à revelia dele, lá fomos conseguindo ir treinar praticamente todos os dias, começámos a ser titulares e fomos campeões da III Divisão a jogar juntos.

Sobem de divisão?

Subimos à II Divisão e no ano seguinte vamos à Liguilha, para subir à I Divisão. A Liguilha foi o Juventude de Évora, o Académico de Viseu e o Aliados de Lordelo. Na última jornada tínhamos de ganhar por quatro ou cinco golos, empatámos em casa e foi o Académico Viseu que subiu. No ano seguinte fiquei no Aliados, mas em dezembro disse que não jogava mais e saí.

Porquê?

Porque o Aliados entrou numa crise diretiva muito grande, havia muitos jogadores que saíram, grande parte deles para a I Divisão, eu fiquei, mas em dezembro deixei de jogar porque o clube só tinha pagado um salário, não tinha pagado mais, e havia grandes problemas, muitos jogadores com família a passar dificuldades, estávamos muito desacompanhados. Cheguei a dezembro e disse: ‘Não jogo mais’. E não joguei mais.

O que veio a seguir?

Durante esse tempo eu trabalhei sempre com o meu pai. Sempre. Depois comecei a jogar uns torneios aqui, ali e acolá. Mais ou menos em abril, o pai do José e do Adelino Caldeira, da SAD do FC Porto, que era um advogado muito respeitado e gostava de mim, mandou um funcionário dele a minha casa, para saber da minha vida e se podia ir treinar à experiência ao FC Porto. Eu tinha jogado em São Martinho, ali em Santo Tirso, e no dia seguinte à tarde apareceu o funcionário em minha casa. ‘Olha, venho a mando do Dr. Caldeira, que falou com o sr. Pedroto, e quer saber se podes ir lá treinar à experiência’. O Pedroto já sabia de mim, porque o massagista Zé Luís, que ainda é vivo, trabalhava no FC Porto e fazia uns serviços no Aliados, e já lhe tinha falado de mim.

Então lá foi treinar ao FC Porto...

Exatamente. O período experimental durou um mês e tal. Jogava aqueles jogos em que o FC Porto ia ao Grijó ou ao Perosinho, para homenagear o capitão ou não sei quê. Era uma equipa secundária, com vários juniores. Nesses jogos as coisas correram-me muito bem. Mas chegou maio e eu fui chamado para ir para a tropa. Falei com o Pedroto, que me perguntou se eu queria fazer carreira na tropa. ‘Não sei, eu vou tentar sair como toda a gente’. E ele diz-me: ‘Se não ficares na tropa, vens jogar para o FC Porto’.

E foi?

Espera. Durante o período experimental, nunca deixei de trabalhar com o meu pai. Trabalhava de manhã, almoçava, apanhava o autocarro da Pacense, saía no matadouro, subia aquilo tudo a pé, treinava, no fim do treino descia até aos Aliados e ou apanhava a Pacense ou ia no 94 para Valongo e depois apanhava boleia para casa. Portanto, até essa fase experimental foi muito exigente. Eu fui para a tropa, andei um mês e meio na tropa, e quando saí tinha convites do Rio Ave, do P. Ferreira, do Beira Mar e da Académica. Estive quase a ir para a Académica, mas não fui e o Pedroto mandou-me chamar para assinar com o FC Porto. Fui à Segrobe, onde trabalhava o Pinto da Costa, mas não chegámos a acordo ali e o Pedroto chamou-me e disse-me: ‘Vais ficar aqui dois anos’. Fez ele o contrato e eu assinei.

Só estavam os dois?

Praticamente. O Pinto da Costa queria dar-me trinta contos por mês e até me mostrou um contrato na altura do Rodolfo Reis, que era o capitão, supostamente de trinta e cinco contos. Mas era um contrato paralelo. Eu já conhecia os contratos paralelos desde os tempos do Aliados. Disse que trinta contos nem davam para sobreviver, até porque o Rio Ave e o Beira Mar ofereciam-me mais. O Pedroto chamou-me e disse: ‘Vai assinar por dois anos e vais ganhar 60 contos por mês’. E assim foi. Eu aceitei e assinei. Portanto, foi o Pedroto que fez o meu contrato.

Era um FC Porto campeão nacional, certo?

Bicampeão nacional. Mas há uma coisa que tenho de dizer: quando cheguei apanhei um FC Porto bicampeão com o sr. Rui, o Fonseca, Torres, Murça, Gabriel, Rodolfo, Octávio, Simões, Freitas, Gomes, Oliveira, Vital, Gonzalez, Óscar, e essa gente boa tratou-me sempre tão bem, ajudaram-me tanto, que também me fizeram ser quem sou. E, claro, o sr. Pedroto, que acreditou em mim quando eu estava a jogar torneios amadores e me integrou num grupo campeão.

Depois acaba por viver o Verão Quente e os anos de construção do grande Porto.

Eu fui por solidariedade. Na altura o Pedroto e o Pinto da Costa entenderam que o presidente Américo de Sá não tinha os valores que o clube precisava, geraram-se duas frações e houve a deserção daquele grupo de jogadores, do qual eu fazia parte. Andámos a treinar fora do clube, depois o Pinto da Costa saiu, o Pedroto saiu também, o Américo de Sá ficou, contratou o Stessl e nós regressámos todos. Mas o FC Porto aí fragilizou-se muito. Perdeu totalmente a coesão.

Quando ficaram a treinar à parte, treinavam onde?

No Parque da Cidade, em Santa Cruz do Bispo, no Inatel, andávamos todos os dias a saltar de um lado para o outro.

Depois não regressaram todos, pois não?

Não, não, regressámos todos. Houve algumas negociações, algumas peripécias e voltámos todos. Os únicos que não regressaram foram o António Oliveira, que depois foi para o Penafiel, e o Gomes, que foi vendido ao Sporting Gijón.

E em 82 regressou então Pinto da Costa.

Em 82 houve eleições, o Pinto da Costa candidatou-se, ganhou e regressou também o Pedroto. Os dois anos com o Stessl tinham sido muito difíceis e o FC Porto teve de se reconstruir outra vez. Mas eu tenho uma história engraçada nessa altura.

Então?

Após meia da época com o Stessl, comecei a ser titular, joguei ano e meio a titular e acabei o meu contrato. Disse ao FC Porto que tinha clubes interessados em mim, o FC Porto, através do Teles Roxo, não me ligou nada, e o Pedroto, que estava no V. Guimarães, mandou contratar-me. Fiz o contrato com Pimenta Machado, entretanto o Pinto da Costa ganhou as eleições e voltou o Pedroto. Uma das primeiras coisas que ele fez foi falar comigo para renovar contrato. E eu disse: ‘Já assinei com o V. Guimarães, falei com o Teles Roxo, não me ligou nenhuma, não quis saber, e eu assinei com o V. Guimarães’. Entretanto o FC Porto insistiu comigo, eu falei com Pimenta Machado e ele não abdicou de mim. O FC Porto teve de mandar para lá o João Gouveia, o Júlio e o Murça para eu ficar no FC Porto. Nessa altura renovei por mais três anos.

Mas saiu após o Euro 84 e assinou com o Sporting.

Exatamente. Em 84 eu tinha interessados em mim a Roma, do Eriksson, que através do Toni falou comigo no estágio para o Europeu que fizemos em Palmela. O Toni chamou-me ao telefone, disse que o Eriksson queria falar comigo e ele convidou-me a ir para a Roma. Depois apareceu o Verona, que me queria a mim e ao Gomes, inclusivamente vieram cá o presidente e treinador, tivemos uma reunião no Altis em que também estavam o Luciano D’Onofrio e o Filipovic. Foram horas e horas a negociar, eu já estava farto daquilo, peguei num papel, escrevi quanto queria e disse ao Gomes: ‘Está aqui o que eu quero, já estou farto disto, vou-me embora’. Assinei uma folha em branco. ‘Se eles oferecerem isso, está aqui a minha assinatura, eles que façam o contrato’. Tínhamos tido um jogo de preparação com a Jugoslávia no Estádio Nacional, apanhei um avião e vim para o Porto passar o fim de semana. Ainda apareceu também o Milan, mas foi um interesse mais ligeiro.

Porque é que não assinou nem pela Roma, nem pelo Verona, nem pelo Milan?

Não aconteceu. Entretanto fomos para o Europeu, em França, e o Pinto da Costa foi lá duas ou três vezes falar com o Gomes para não sair e renovar contrato. Comigo nunca falou. Eu era o jogador mais mal pago do FC Porto e tinha recebido o prémio de melhor jogador desse campeonato. Estava numa grande fase. O Jordão estava lá na seleção e a mando do João Rocha veio falar comigo. Eu disse-lhe: ‘Pá, eu não quero ir para lado nenhum, mas isto é como tudo’. Ia ganhar oito ou nove vezes mais. Ia ser dos mais bem pagos a nível nacional. Então fui. Não tinha grande vontade de ir, mas para além do dinheiro, foi a desconsideração que senti. Depois o FC Porto ainda voltou à carga, mas tinha dado a palavra ao Sporting e não voltei atrás.

Esses tempos foram difíceis?

Claro que foram, foram quinze dias complicados de negociações. Eu gostava de estar no FC Porto, já lá estava há cinco anos. Já sair de Lordelo para o Porto foi difícil, ir para Lisboa foi ainda pior.

E como foram os dois anos no Sporting?

Trataram-me muito bem e só foi pena de não ter sido campeão. Tive uma pubalgia e fui operado, mas foram dois anos excecionais, em que fui muito bem tratado. O João Rocha, o Toshack e o Manuel José sempre me trataram bem. Tinha uma excelente relação com os adeptos, sempre dei tudo em campo e era um jogador querido deles. Tínhamos uma equipa fabulosa, mas a defesa era frágil. Carlos Xavier, Morato e Fernando Mendes estavam a começar, o Venâncio andava com problemas no joelho. Do meio campo para a frente tínhamos uma equipa excecional. Eu, o Oceano, o Manuel Fernandes, Oliveira, o Jordão, o Litos... Ficámos em segundo.

Isso na primeira época.

Sim, depois no segundo ano, no meu penúltimo jogo no Sporting fomos ganhar à Luz, o FC Porto foi ganhar 1-0 a Setúbal, passou para primeiro e depois foi campeão em casa com o Covilhã. Eu regressei então ao Porto e fomos campeões europeus. Portanto, uma pequena fatia do meu trabalho no Sporting está ligada ao título de campeão europeu do FC Porto.

Os números de Jaime Pacheco no FC Porto e Sporting:
1988/89 – FC Porto, 22 jogos
1987/88 – FC Porto, 31 jogos
1986/87 – FC Porto, 25 jogos
1985/86 – Sporting, 39 jogos
1984/85 – Sporting, 19 jogos
1983/84 – FC Porto, 49 jogos
1982/83 – FC Porto, 27 jogos
1981/82 – FC Porto, 29 jogos
1980/81 – FC Porto, 17 jogos
1979/80 – FC Porto, 3 jogos

O Jaime Pacheco não teve um choque de mentalidades ao ir para o Sporting?

Um bocado, sim. Não quero desculpar-me, porque eu tanto faço parte do grupo que ganha, como do grupo que perde. Não quero dizer que no Sporting não trabalhassem todos muito, porque trabalhavam, mas o espírito era diferente. O sentimento de responsabilidade quando perdíamos no Sporting não era igual ao do FC Porto. Era mais ‘pronto, perdemos, paciência’. No FC Porto não era assim. Se perdêssemos, o ambiente era de um funeral. O Sporting não era tão intenso.

E porque regressou ao FC Porto?

Regressei porque o Artur Jorge me ligou a dizer para voltar. Gostava de ganhar títulos e sentia que no FC Porto tinha mais possibilidades disso.

Pelo meio joga o Euro 84 como titular e Portugal vai às meias-finais. O que é que aconteceu para o Euro correr tão bem e o Mundial de 86 correr tão mal?

A França tinha de facto uma grande equipa. Podíamos ter ganhado, estivemos perto de ganhar, mas a França tinha grandes jogadores, jogava muito bem e jogava em casa. Depois falou-se muita coisa. Naturalmente que não tínhamos a organização que a Federação tem agora, a Federação daquela altura era muito desorganizada, fazia tudo em cima do joelho e sofremos muito com isso. Eu estava habituado ao FC Porto, chegava à Federação e via que ali não havia organização nenhuma. Tudo funcionava mal.

Inclusivamente a equipa técnica com quatro treinadores?

Isso foi uma confusão que não ajudou nada. O Toni e o Morais eram os mais coerentes e visionários, o Fernando Cabrita andava um bocado dividido, o Zé Augusto chegou mais tarde e não tinha nada que fazer parte daquilo. Houve ali uma quebra até do que eram os interesses da seleção. Naquela altura não havia jogadores no estrangeiro e havia uma grande partidarização entre Benfica, Sporting e Porto. Eu sentia muito isso quando a seleção jogava em Lisboa, da mesma forma que os jogadores do sul sentiam a falta de apoio quando jogavam no Porto. Foi pena, porque podíamos ter ido à final e ganhado à Espanha.

Era de facto uma grande geração.

Era, era. E atenção, ficaram de fora e podiam ter ido o Manuel Fernandes, o João Alves, o António Oliveira, o Humberto Coelho que se lesionou, verdadeiras estrelas, mas não podiam ir todos.

Desses jogadores todos com quem jogou, qual foi o que lhe encheu mais as medidas?

Eu habituei-me a gostar de jogadores independentemente do clubismo. Gostava do Gomes, que era um goleador cerebral, o Jordão foi o jogador de quem mais gostei a seguir ao Eusébio, o Nené era muito refinado, o João Alves era um ídolo, tanto assim que nos juniores jogava de luvas para o imitar. Mas o jogador que era diferente, que era um perfeito número 10, era o António Oliveira.

Pois, o Oliveira.

Se ele jogasse hoje, estava sempre entre os melhores do mundo. Era fabuloso. Tinha coisas que só ele conseguia fazer. Não gostava de treinar, não gostava de correr atrás, mas dávamos-lhe a bola e fazia coisas que só ele. Com uma naturalidade e uma classe como nunca vi. Joguei com ele no FC Porto e no Sporting, cheguei a marcá-lo quando ele foi para o Penafiel e só eu sei o que custou. Lá está, se calhar joguei com jogadores mais completos, mas o mais talentoso foi o Oliveira. Joguei com o Futre, com o Madjer, eram fenomenais, mas o Oliveira tinha qualquer coisa que nem eu tinha [risos].

E como é que acontece o seu regresso ao FC Porto?

Estava em final de contrato com o Sporting, estava em casa do meu padrinho Peres Damião e ligou-me o Artur Jorge. Se eu queria ir para o FC Porto. O João Rocha insistiu muito para eu ficar. Lembro-me que até meteu um Rolex no meu armário para ver se me convencia. Mas eu tinha a vontade de voltar ao Porto. Quando o Artur Jorge me ligou nem discuti os termos do contrato. Ainda fiz os últimos quinze dias do contrato com o Sporting, fui fazer um torneio a Paris e no dia 1 de agosto apresentei-me na Maia, porque estavam a baixar o Estádio das Antas.

Sem contrato assinado?

Não, nada. Terminei contrato com o Sporting a 31 de julho e dia 1 de agosto apresentei-me sem contrato. Só depois é que assinei. Disseram-me que me iam pagar xis e eu aceitei. Era um bom contrato, semelhante ao que eu tinha no Sporting, por isso nem discuti. Só queria um contrato razoável e voltar para o FC Porto.

E o que é que aconteceu ao Rolex?

Ficou lá no armário. Fui falar com João Rocha, disse-lhe que agradecia muito, mas que não podia ser. O João Rocha era um presidente excecional, sempre me respeitou de forma especial, por isso estava-lhe grato por isso, mas queria voltar ao FC Porto, queria voltar ao norte e a casa.

Mas depois só fez mais três anos no FC Porto...

Sim, e saio com um ano de contrato ainda para cumprir. Foi por causa daquela célebre frase da ‘limpeza de balneário’. Foi das coisas que mais magoou uma geração de jogadores que deu todos aqueles títulos ao clube.

Essa frase foi de quem?

Nessa altura o treinador era o Artur Jorge e o adjunto era o Octávio. Saíam na imprensa muitas notícias a denegrir um grupo de jogadores que deu tudo pelo clube. Era muito melhor fazer como eu fiz: quando saí para o Sporting, fui a casa de Pinto da Costa e disse ‘olhe, eu assinei contrato com o Sporting e vou para o Sporting’. Ter essa hombridade. O Artur Jorge nem falou connosco. Era muito melhor os dirigentes falarem connosco e dizerem que não nos queriam ali mais, do que andar a meter na imprensa que éramos os mais insurretos à face da terra. Custou-me muito a mim, ao Gomes, ao Frasco, ao Lima, ao Sousa, entre outros, que estivemos ali oito anos em que o clube fez muito por nós, mas nós também demos tudo pelo clube. Era uma saída mais airosa, com mais dignidade. Tinha mais um ano de contrato e saí sem querer um único tostão.

E é então que vai para Setúbal.

É engraçado, o Boavista queria-me, mas o clube só me deixava ir para Setúbal ou para Chaves. Eu podia ter dito que não, que se me queriam mandar embora tinham de me pagar e eu ia para onde queria. Mas não, não quis dinheiro e fui para Setúbal. Tinha direito a um ano de contrato e a ir para onde quisesse. Mas não quis complicar. O Manuel Fernandes queria-me e fui para Setúbal.

Ai foi para Setúbal por causa do Manuel Fernandes?

Exatamente. Tinha sido meu colega no Sporting. Eu também gostava do V. Setúbal, desde que ouvia os relatos da equipa do Cardoso, Zé Maria e Vagner na Taça das Cidades com Feira.

O Manuel Fernandes que também é uma pessoa que o Jaime considera muito...

Muito, muito. Há pessoas que não gostam de ouvir isto, mas o Manuel Fernandes foi o melhor capitão que tive. Trabalhei em várias equipas e o melhor capitão foi o Manuel Fernandes.

Porquê?

Pelo ser humano que era, pela forma como referenciava a vida, o futebol, o futuro. Tinha sempre uma palavra amiga ou um conselho. Era um irmão mais velho em quem confiávamos.

Depois vai para o P. Ferreira e é aí que se torna treinador...

Sim. No primeiro ano, com o Vítor Oliveira, o clube passou por muitas, muitas dificuldades. Mas apesar disso mantivemo-nos na I Divisão. No final da época o Vítor Oliveira saiu, entrou o Prof. Neca, o clube estava numa situação difícil e despediram o Neca. Eu era o capitão e fiquei ali um jogo ou outro como treinador, à espera que arranjassem alternativa. Fomos jogando, perdendo, ganhando, e eles queriam que continuasse. Eu não queria, porque queria continuar a jogar, só tinha 31 anos. Insistiram comigo e então fizemos uma reunião em que os jogadores todos me pediram para ficar. E eu assumi meia época como jogador-treinador. Jogava sempre. Era eu que mandava na equipa, jogava sempre [risos]. Fizemos uma segunda volta excecional e passámos de penúltimos para nonos. Foi engraçado. Havia dois ou três jogadores que estavam na lista de dispensas, o Padrão, o Valtinho e outro qualquer, eu evitei que eles saíssem. Nós reagrupámo-nos, unimo-nos e trabalhámos. Foi uma experiência muito boa que me lançou para a carreira de treinador.

E como é que acaba a carreira de jogador?

Não foi nada planeado. Eu fui substituir o Abel Braga no Rio Ave. Estávamos em 13º lugar e saltámos para os cinco primeiros. Íamos jogar com o P. Ferreira e se ganhássemos entrávamos nos três primeiros. Estávamos na luta pela subida, mas o clube não pagava, o pai do Daniel Ramos queria que eu pusesse a jogar uns jogadores e após esse jogo com o P. Ferreira saí. Até tínhamos bons jogadores, mas o clube estava com muitos problemas. Depois ainda fiz oito ou nove jogos no União de Paredes. O meu pai tinha falecido, ia a Lordelo fazer companhia à minha mãe e o treinador do Paredes tinha sido meu colega no Rebordosa. À quarta-feira havia treino de conjunto, às vezes faltavam jogadores, ele ligava-me, jogava pelas reservas e ganhávamos sempre. Então convidaram-me para ficar. Eu gostava de jogar e joguei no Paredes, até que apareceu o convite para treinar o União de Lamas.

E aí que começa verdadeiramente a carreira que o levou a ser campeão pelo Boavista...

Sim, depois do União de Lamas fui para o V. Guimarães, fomos campeões da segunda volta e é nessa altura que aparece o Zahovic, que estava para ser dispensado. Tinha uma equipa fabulosa. Depois na segunda época estava em segundo lugar e fui despedido, porque o presidente queria que jogasse determinado jogador e eu não aceitei. É nessa altura que o Boavista despede o Mário Reis e me contrata, começando aí o trajeto que toda a gente conhece.

Um trajeto ao qual não é dado o devido valor?

Isso é normal e natural. Também não quero que estejam sempre a falar disso. Mas eu era naquela altura no Boavista o que o Sérgio Conceição é hoje no FC Porto e o Ruben Amorim é no Sporting: eu mandava. E hoje isso é difícil acontecer. Mas o FC Porto e o Sporting estão como estão porque os treinadores é que mandam.

E no ano em que foi campeão esteve muito perto de sair para o Sporting.

E para o Benfica. O Sporting e o Benfica convidaram-me. Só que eu entendia que não era o timing certo, não estava preparado. Porquê? Porque eu tinha ainda aquela coisa de jogador, queria treinar com os jogadores e correr com os jogadores, e num clube como o Benfica, o Sporting ou o FC Porto isso não seria bem visto. Na altura o Boavista era a minha casa, era o meu clube e eu exigia tanto aos jogadores que não me sentia no direito de abandoná-los.

Só faltou ser convidado pelo seu FC Porto...

Nunca fui. Infelizmente nunca fui. Mas pode ser que aconteça. Ainda sou muito novo.

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