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"O ANC já se esqueceu da sua identidade histórica". A África do Sul vai a votos e os resultados podem ser inéditos desde o fim do Apartheid

28 mai, 08:00
Cartaz eleições África do Sul presidente Cyril Ramaphosa ANC (Themba Hadebe/AP)

Nas eleições de 29 de maio, é esperado que o histórico partido fundado por Nelson Mandela, que negociou o fim do regime de segregação branca na África do Sul, em 1994, perca a maioria que detinha há 30 anos. E o mosaico de possibilidades de coligação é só mais uma faceta do caos que se instalou num país onde, hoje, a maioria da população está disposta a abdicar de eleições se lhes forem dadas garantias de segurança e estabilidade económica

Há duas grandes probabilidades no quadro das importantes eleições de 29 de maio na África do Sul, exatamente 30 anos após o fim do Apartheid. A primeira é que não deverão trazer o tão apregoado “ponto de viragem” no deslize progressivo do país, como alguns analistas e media têm sugerido nos últimos meses; a segunda é que o histórico Congresso Nacional Africano (ANC) vai muito provavelmente perder a maioria que detém desde 1994, quando os fundadores do movimento, à cabeça Nelson Mandela, puseram fim ao regime segregacionista por via de negociações com a minoria branca.

“No seu conjunto, os possíveis resultados das eleições têm em comum que não haverá alterações de fundo, a futura inclusão de representantes minoritários na grande família do ANC não significará nem a redução do alto nível de corrupção, nem um melhoramento da capacidade de gestão na administração e nas empresas públicas”, defende André Thomashausen, professor emérito de Direito na Universidade da África do Sul, em Pretória. “Porém, podemos antecipar que as negociações para a coligação pós-29 de maio vão ser difíceis.”

Num artigo publicado há uma semana, intitulado “Como salvar a África do Sul”, a revista Economist já invocava a ideia consensual de que “a nação arco-íris precisa de uma alternativa ao declínio sob o ANC”, sublinhando que, “quando votarem a 29 de maio, [os sul-africanos] deveriam expulsar um partido que se tem provado incapaz de governar – mas isso parece improvável”.

Depois de uma primeira década de governação positiva, o novo milénio trouxe estagnação económica, criminalidade desenfreada, um falhanço dos serviços públicos e corrupção a um nível endémico. O mais recente afrobarómetro mostrava que mais de 70% da população sul-africana está insatisfeita com o atual regime democrático e que uma grande faixa da população estaria disposta a abdicar de eleições se um governo não-eleito lhes garantisse segurança, emprego e habitação.

Cyril Ramaphosa (esquerda) foi vice-presidente do governo de Jacob Zuma (direita) e substituiu-o após um escândalo de corrupção envolvendo o então presidente, que foi proibido de se candidatar a estas eleições (Sydney Seshibedi/Getty Images)

Em fevereiro, no seu discurso sobre o estado da nação, Cyril Ramaphosa – que integrou o núcleo duro da transição pós-apartheid e que foi eleito presidente em 2019 após o antecessor, Jacob Zuma, ter sido forçado a demitir-se na sequência de (mais) um escândalo de corrupção – referiu que a taxa de pobreza no país caiu de 71% em 1993 para 55% em 2020. Mas números do Banco Mundial apontam para uma taxa estagnada pouco superior a 60% desde 2008.

A pobreza atinge não apenas, mas sobretudo os mais jovens – no primeiro trimestre deste ano, a taxa de desemprego no país situava-se nos 32,9% e os jovens representavam mais de metade do total. “Nos últimos 25 anos, o PIB per capita da África do Sul baixou de 8 mil para 6.500 dólares, uma queda brutal da riqueza dos sul-africanos”, destaca Thomashausen.

“Metade da população adulta encontra-se desempregada e sobrevive na base de um subsídio equivalente a 35 euros por mês, financiado com empréstimos que já absorvem 35% das despesas do Estado. Todos os índices de desenvolvimento na África do Sul estão em declínio acelerado e o aumento da criminalidade já entregou muitas zonas urbanas à anarquia”, acrescenta o professor emérito de Direito.

Referendo ao futuro do país

O fraco desempenho governativo explica a sustentada perda de popularidade do ANC, que, apesar de ainda ser recordado como o movimento que libertou a maioria negra do país há três décadas, angaria cada vez menos apoio da população – nos meses que antecederam estas eleições, as sondagens previram sempre que deverá conquistar menos de 50% dos votos, algo inédito desde 1994.

“O ANC, na realidade, já se esqueceu da sua identidade histórica de movimento de libertação”, defende Thomashausen. “É um movimento político largamente social-democrata que acarinha a ideia da solidariedade dos seus membros, duma cultura de tipo missionária, e do orgulho de raça, em confrontação com as percepções da ‘supremacia dos brancos”, [que] está integrado na vida de uma burguesia liberal.”

Por esse motivo, os analistas preveem que as eleições gerais desta semana são, acima de tudo, “um referendo ao futuro do país”, como referido há alguns dias por Adriaan Basson, diretor do canal News24 da África do Sul, com sede na Cidade do Cabo.

As eleições de 2019 ficaram marcadas por uma baixa participação eleitoral, num país já desiludido com o fraco desempenho dos partidos no poder, em particular desde o início do milénio. Este ano, cerca de 27,79 milhões de pessoas estão recenseadas para votar, de um total de 59,89 milhões de cidadãos (Mlungisi Mbele/AP)

Com 52 partidos a concurso, os próximos cinco anos – e, no imediato, os equilíbrios de poder que forem alcançados se se confirmar a perda de maioria do ANC – serão cruciais para perceber se as instituições sul-africanas conseguem sobreviver ao panorama lúgubre das últimas décadas e se quer os partidos no poder quer a oposição conseguem reinventar-se.

Os inquéritos de opinião indicam que, do total de partidos, os votos vão concentrar-se sobretudo em quatro, nomeadamente ANC, Aliança Democrática (DA), Combatentes pela Liberdade Económica (EFF) e uMkhonto we Sizwe (MK), antecipando-se ainda cerca de 5% dos votos para o Inkhata, graças à sua forte implantação na província de KwaZulu Natal.

“Pelas sondagens e análises, parece certo que a lista do ANC não voltará a alcançar uma maioria absoluta, o que obrigará à governação na base de coligações, tal como já desde há muitos anos é a realidade na Europa, mas um ‘grande compromisso’ está a ser vislumbrado”, diz André Thomashausen, que ressalta o facto de já estar “decidido o afastamento da atual ministra dos Negócios Estrangeiros, Naledi Pandor, para quem o Comité Nacional Executivo [do ANC] prevê o lugar de executiva da província do Cabo Ocidental pós-29 de maio”.

O chavismo de Malema vs. a aposta económica na DA

Atualmente, o ANC detém 230 dos 400 assentos parlamentares (57,5%), enquanto a DA, o principal partido da oposição, detém 84, e o EFF 44. A votos na quarta-feira estarão esses 400 assentos da Assembleia Nacional e os deputados das assembleias das nove províncias do país – o presidente e os primeiros-ministros de cada província serão depois escolhidos pelos legisladores eleitos.

As tendências para a formação de uma coligação governamental dão algumas pistas sobre o que se pode esperar após 29 de maio. “A chefia do ANC, institucionalizada no seu Comité Nacional Executivo de 87 membros, será a mesma antes e depois do ato eleitoral [e] a preferência ideológica do ANC favorece claramente uma coligação de esquerda”, explica Thomashausen. “Muitos dos membros do ANC consideram abertamente Julius Malema, presidente do EFF, como o candidato natural para o papel de ‘segundo Nelson Mandela’, para quem o modelo para o futuro da África do Sul é o ‘chavismo’, com os seus membros a distinguirem-se com bonés vermelhos ao estilo da Venezuela.”

Comício do partido Combatentes da Liberdade Económica (EFF), de Julius Malema, em Polokwane (anteriormente conhecida como Petersburgo), na província de Limpopo (Themba Hadebe/AP)

Contudo, há uma fação no ANC que teme uma queda brutal do valor da moeda e a perda de estabilidade económica caso Malema venha a ser escolhido como vice-presidente de um governo minoritário. Essa fação, “que representa a nova burguesia afável de negros da África do Sul – onde as vendas da Aston Martin, da Rolls Royce e da Maserati ultrapassam as de qualquer outro país – favorece uma coligação com um número de partidos marginais que poderão reunir-se com o ANC para cumprir a percentagem requerida de 51%” – ou, em alternativa, “uma coligação com o DA, predominantemente o partido da oposição dos brancos da África do Sul”.

Uma possível coligação ANC-DA, antecipa o analista, poderá “resultar numa rápida recuperação da economia da África do Sul”, numa altura em que a taxa de crescimento abaixo dos 2% é bastante inferior à dos países vizinhos. “Tudo indica que a economia da África do Sul está a ser ultrapassada no continente africano por Nigéria, Quénia, Ruanda e Egito. Mas o desaparecimento sucessivo dos ‘antigos’ do ANC, que já ultrapassaram todos os 70 anos (tendo Ramaphosa completado 72), vai deixar a próxima geração tomar cargo da economia e da gestão do país.”

Enquanto isso não acontece, “a grande esperança para a reabilitação da África do Sul reside nas novas perspetivas energéticas, onde o desenvolvimento de uma indústria do hidrogénio é central”, diz Thomashausen. “E podemos considerar seguro que a Europa, os EUA e a Grã-Bretanha não vão abandonar o seu parceiro histórico em África – cujo posicionamento é fundamental para travar as ambições russas, chinesas e da Índia neste continente.”

Ocidente não deverá abandonar o parceiro sul-africano face à crescente influência da Rússia de Putin (na foto) e da China no continente (AP)

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