Guerra e liberdade(s) de expressão

14 mar 2022, 19:21

Quando é que a mentira é disseminada de forma mais geral? Em tempo de guerra. E quando é que a tentação de restringir a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa é mais sentida? Em tempo de guerra. E quando é que temos de resistir para não imitarmos os regimes autoritários? Em tempo de crise grave ou de guerra.

O valor da informação, esse, damo-lo por pressuposto em situações de normalidade, reservando-nos o direito de a criticarmos a par e passo, pela simples razão de que vivemos em democracia. o nosso País, por outro lado, fica sistematicamente muito lá para cima em qualquer ranking da liberdade de imprensa. Em 2021, lá estamos no top 10 do Mundo (no nono lugar), e sempre a subir. Estas subidas, considerada a margem de erro, são sempre boas de ver, mas o mais importante é o resultado consolidado e estarmos no cocuruto. Não é futebol, é um campeonato bastante mais importante para a nossa saúde coletiva e para o saudável confronto de ideias e projetos de sociedade.

Poucos terão notado, também pelas virtudes de vivermos em liberdade, que houve canais russos excluídos dos nossos ecrãs. É de crer que o facto não afete a esmagadora maioria, porque a esmagadora maioria não os via.

Certo, contudo, é que uma decisão europeia destas estabelece um precedente, porque redefine uma regra geral a partir de um caso específico, e toma como alvos canais estatais russos: uma decisão que tem em conta “as ações da Rússia que desestabilizam a situação na Ucrânia” (Regulamento (UE) 2022/350 do Conselho, de 1 de março de 2022).

A argumentação a favor ou contra este tipo de medidas costuma situar-se em dois extremos, do achismo (acho que sim, ou acho que não, e a minha opinião vale tanto como a sua num País livre) ou do juridismo mais cerrado (com recensão sufocante de artigos e alíneas).

Não sendo muito fácil escapar a um ou outro destes fados, haverá duas ou três ideias que será importante expor.

À partida, não haverá nada a contender relativamente à inclusão da desinformação na categoria mais larga das ameaças híbridas. Não é pelo facto de não se ouvir o rufar dos tambores da guerra que a desinformação é irrelevante. Pelo contrário, sendo mais ou menos invisível, cada vez mais sofisticada e infinitamente propagável através de inúmeras plataformas, a desinformação sabota o pluralismo, baseando-se no engano, na meia-verdade ou na construção pura e simples da mentira.

Por outro lado, como explica Joan Barata naquele que considero o comentário sobre o assunto mais avisado até ao momento, é também indiscutível que os canais RT e Sputnik não são, como diz o povo, “flor que se cheire” e, pelos meios ao seu dispor e por serem indissociáveis do aparelho de poder de topo na Rússia, não são comparáveis aos piores meios de comunicação social que também existem entre nós – são ainda piores.

Depois, convirá ter presente que, não sendo a liberdade de expressão absoluta, os principais instrumentos internacionais tipificam os casos em que se admitem restrições. Veja-se, por exemplo, o art. 19, 3, c), do PIDCP, na parte em que que se refere à “salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas”. E, se o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem uma jurisprudência fortíssima em defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, não deixa de ser verdade que o art. 10, 2, CEDH admite restrições muito amplas e o art. 15 do mesmo instrumento, é certo que sob determinadas condições, aceita até a sua derrogação “em caso de guerra ou de outro perigo público que ameace a vida da nação”.

Sendo assim, porque é que incomoda esta medida de proibição dos tais canais russos, pré-anunciada pela Presidente da Comissão e depois formalizada no Regulamento acima mencionado? Por uma razão simples: primeiro, derrogou a competência para este efeito reconhecida pelo direito europeu às entidades reguladoras nacionais, para “auto-criar” esta competência por via regulamentar. Em segundo lugar, porque até poderia ser um facto óbvio para toda a gente que a RT e o Sputnik mereciam esta medida drástica de proibição. Até poderia ser. Mas não houve uma decisão fundamentada, não li a imputação de factos, alguns que fossem, que dessem corpo a algo que, espero, seja sempre considerado como medida excecional.

Poderá ser retorquido, concedo que com alguma pertinência, que a decisão foi pública, transparente, e descrita devidamente no Regulamento; ou que é abusiva e desproporcional qualquer comparação com medidas proibitivas e até destrutivas da liberdade de expressão que têm vindo a ser adotadas por Moscovo. Nós sabemos que é assim, assim como não ignoramos que a Rússia é o agressor e que estamos do lado certo da margem. Simplesmente, lendo os argumentos de cada “lado” (nós, eles) para cada uma destas medidas, será talvez uma questão de pura estética: mas não alcanço com facilidade diferenças fundamentais.

Toda esta discussão nos levaria muito longe e, nomeadamente, a um historial nos últimos anos de ingerências ilícitas da Rússia, seja em processos eleitorais (Estados Unidos, França, etc.), seja através de outras formas de atuação nas redes e, em geral, no espaço público, que se traduzem, sem dúvida, em violações do princípio de não intervenção.

Registo, ainda assim, que os Estados Unidos não acompanharam estas medidas europeias de proibição, mas que o Canadá o fez. Duas democracias maduras e sólidas, duas decisões opostas.

Já no plano nacional, sobretudo naqueles países europeus (como os do Báltico) com minorias russas ou russófonas relevantes (isto é, cidadãos de etnia russa ou outros cidadãos cuja segunda língua é o russo), este tipo de decisões acarreta mais consequências, e não é fácil de avaliar a justeza de medidas proibitivas. Na Letónia, por exemplo, cerca de 27% da população é de origem russa; e na Estónia esta percentagem é até superior. Ora, a Letónia, através do seu regulador dos média, logo no dia da invasão russa decidiu proibir a difusão no seu território de três canais russos; mas em fevereiro de 2021, já tinha proibido 16 outros canais, por falta de representação legal no país. Fica a pergunta atrevida: não será a altura de estes países, em vez de tanto proibirem, promoverem o “acolhimento” material destas minorias e, se necessário, apoiarem a difusão de conteúdos em língua russa a partir de dentro?

Há muitos anos que se ouve falar no desenvolvimento da literacia digital, na importância de dotar as pessoas, quaisquer pessoas, de ferramentas próprias para saberem “ouvir” melhor, “ler” melhor, “ver” melhor, para desmontarem de maneira mais eficaz a manipulação, a falta de rigor, a intenção deliberada de propagar falsidades e conteúdos descontextualizados. Talvez esta guerra nos faça compreender, mais uma vez, como este tipo de escolhas é sempre preferível às proibições.

Ainda nestes “territórios” da liberdade de expressão, descobriu a Reuters que a META (proprietária do FB, Instagram e Messenger) decidiu autorizar, temporariamente e apenas em alguns países, a difusão de mensagens de ódio contra o que tenha a ver com a Rússia e, em particular, com os soldados russos e com Vladimir Putin (também integra este pacote de ódio o líder da Bielorrússia). Os países onde o discurso do ódio “temporário” é permitido são os seguintes: Rússia, Ucrânia, Polónia, Hungria, Eslováquia, Letónia, Lituânia, Estónia, Roménia, Geórgia, Arménia e Azerbaijão.

Mas há mais: as mensagens de elogio e promoção do famoso “Batalhão Azov”, sim, aquelas mensagens carinhosamente neonazis, que normalmente seriam proibidas, beneficiam agora (também são filhos de Deus, não é?) de uma medida de autorização… temporária. Portanto, se alguém estiver, por exemplo, a residir na Geórgia e disparar no FB “Matem Putin!” ou uma qualquer porcaria neonazi, pode ser. Mas se for de fim-de-semana à República Checa, o FB dirá “Ai que horror!”, e suspende-o.

A medida, devidamente escondida até ser desnudada, é tão extraordinária que, como seria de esperar, causou escândalo. As Nações Unidas, através do porta-voz do Secretário-geral e do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, condenaram com veemência – e seria de esperar outra coisa? A Rússia, essa, invocou a sua indignação e aproveitou (com a razão que lhe deram) para proibir ainda mais.

As explicações vieram a seguir, quase tão desastradas como a decisão inicial. O Presidente dos Assuntos Globais da META Platforms, o britânico e antigo deputado Nick Clegg, tentou clarificar, mas digamos que não terá sido muito bem-sucedido. Com efeito, escolheu o Twitter (uma plataforma concorrente!) para comunicar e divulgar o seu texto. Numa perspetiva de mercado, não foi brilhante.

Afirmando querer ser totalmente claro, declarou que do que se tratava era de proteger a liberdade de opinião das pessoas, como “expressão de legítima defesa em resposta a uma invasão militar do seu país”. Em tantos países, perguntar-se-á? Não, era só na Ucrânia, mas afinal podia ser noutras paragens. E assim estamos.

O que isto de alguma forma lembra é aquele “argumento” que diz que, se autorizarmos de vez em quando as pessoas a serem violentas umas com as outras, as suas pulsões acalmam e ficam a ordem e paz sociais mais bem protegidas. Só que isto será um “argumento”, mas é de filme, e fraco. Se alguém viu “A Purga”, de 2013 (“The Purge”), assim como as diferentes sequelas (sempre a descer), saberá do que estou a falar.

No filme, uma vez por ano, e durante doze horas, as pessoas, quaisquer pessoas, têm carta-branca para fazerem o que quiserem, incluindo matar quem conseguirem. Os mais avisados, tentam blindar-se em casa. Mas só os mais abonados têm, em princípio, capacidade económica para instalarem sistemas de defesa eficientes contra a violência que, durante uma noite, devasta pessoas e valores. A película escorre sangue por todos os poros, como era de prever com este tipo de aperitivo.

Quanto à liberdade temporária para o discurso do ódio, é mais ou menos isto, mas sem mal nenhum, não é? É, deve ser isso. Liberta-nos.

 

Para o texto de Joan Barata, “La EU y la prohibición ‘ad hoc’ de los canales estatales rusos”, ver aqui.

Sobre o ranking mais recente da liberdade de imprensa, ver, da RSF, aqui.

Sobre o filme “The Purge”, ver o trailer:

 

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