INVESTIGAÇÃO "NÃO TEM DEDICATÓRIA, MAS É PARA TI" #3/4. Para a ditadura portuguesa, as mulheres eram vistas como figuras de segunda. Invisíveis, mesmo. Foi dentro de portas, tirando partido dessa invisibilidade, que as lésbicas aproveitaram para explorar a sua sexualidade. Muitas, como Teresa, tiveram de encontrar formas criativas para não dependerem de um homem. Este é o terceiro capítulo de uma investigação da CNN Portugal que mostra como era vivida a homossexualidade durante o Estado Novo. Com visitas aos arquivos e relatos na primeira pessoa da primeira geração a viver abertamente a velhice fora do armário
Teresa Lacerda, 76 anos, tem sempre um bule de chá preparado para as visitas. Gosta de receber, de conversar. “O que detesto é falar em público”. Decidiu abrir uma exceção para esta entrevista. “Começo a achar que é preciso reavivar a memória de Portugal. Já ninguém se lembra do terror que era viver nessa altura, o medo da polícia”.
Essa altura era o Estado Novo. A polícia era a PIDE. “As coisas eram completamente diferentes do que são hoje”. Amar alguém do mesmo sexo, mais do que pecado, era crime. Mas há coisas que não se conseguem evitar.
“Quando isso acontece, nem sequer pensamos se está certo ou errado. Acontece, é fortíssimo”. Quando os olhares não se resistem, o toque vem como complemento.
Invisibilidade: como as mulheres lésbicas tiraram partido dela
Mais do que por ser lésbica, para Teresa o peso vinha (e ainda vem, décadas depois) do facto de ser mulher. Vários estudos que se têm debruçado sobre a homossexualidade durante o Estado Novo vincam isso mesmo: às mulheres cabia o papel de mães, esposas, donas de casa; eram uma figura de segunda, sem autodeterminação ou sexualidade.
As mulheres lésbicas da altura acabaram por tirar partido desta visão para se protegerem. O foco da polícia dos costumes estava nos homens homossexuais - como vimos no primeiro capítulo desta investigação. As mulheres, encaradas como seres menores, nunca poderiam ser verdadeiramente seres sexuais. Delas não se esperava isso.
“Os homens, os rapazes, tinham muito medo de serem apanhados pela polícia. Lembro-me de estarmos em festas de adolescentes e alguém tocar à porta. Muitas vezes eram os vizinhos, porque estávamos a fazer barulho. Mas o terror era a polícia. Viver assim é uma coisa horrível”, conta Teresa.
“Já para as raparigas, era o não dito, o viver no armário, não podermos ser nós próprias, não poder ter um gesto natural em público. Nada disso. Era horrível”. Se os homens gay usavam as ruas para o engate, as mulheres lésbicas não se aventuravam nesse campo: tiravam antes partido da privacidade dos “interiores das casas” para se irem conhecendo através de amigos em comum. “Era sempre uma coisa menos pública”.
Afinal, quem as via como seres de segunda não equacionaria o que se fazia entre quatro paredes. Havia ‘amigas’ que, aos olhos da sociedade, apenas partilhavam casa. O que a sociedade se recusava a imaginar era que elas também partilhavam cama. Mesmo existindo termos pejorativos como ‘fufas’ e ‘fressureiras’ para falar desse tipo de relações.
A paixão tornada profissão
Durante o Estado Novo, mostram os estudos académicos, muitas mulheres acabavam por entrar em relacionamentos ditos heterossexuais para cumprirem o papel social que delas se esperava. Era, para muitas, a única forma de sair da alçada dos pais.
Teresa fez diferente para atingir o mesmo objetivo: encontrou uma paixão, as viagens pelo mundo, e transformou-a numa profissão. O pai tinha-se recusado a pagar-lhes os estudos, dando esse apoio apenas ao irmão.
“O descaramento era ousar não precisar de um homem. As mulheres pensavam sempre em casar, ter filhos, tudo isso”. Mesmo aquelas que tinham consciência plena de que se sentiam atraídas por outras mulheres. “Havia quem se casasse, principalmente com rapazes da TAP, para poderem ter viagens de borla, para tornar o casamento útil”.
“Não escolhendo o casamento, tinha de fazer pela minha vida. Não tinha heranças. Então juntei o meu gosto pela arte ao meu gosto pelas viagens. Resolvi tentar abrir uma loja onde pudesse trazer objetos das minhas viagens”. A porta esteve aberta, no Bairro Alto, durante 50 anos. “Isso deu-me uma maneira de viver”.
Traumas do passado a moldar o presente
Com o avançar da idade, Teresa redescobriu-se na arte. Continua a ser uma coletora: vai juntando o que encontra na rua, o que lhe chama a atenção, para criar as suas obras de arte. Dedica longas horas ao ateliê, onde a música clássica lhe embala a inspiração. Aí tem também organizada a larga coleção de arte africana que foi construindo ao longo dos anos.
“Perceberem que uma mulher queria fazer o seu caminho sem precisar de um homem era quase uma ofensa ao status quo. Não se usava, não se percebia o que era. Éramos sempre olhadas um bocadinho com uma certa interrogação”.
Cinquenta anos de liberdade depois, muitas foram as mulheres em relacionamentos lésbicos, da mesma geração, que recusaram partilhar o seu testemunho com a CNN Portugal. Teresa encontra uma justificação: “isso vem de trás, logicamente. As pessoas habituaram-se a não falar no assunto, mesmo nas famílias. As mães apercebiam-se do que as filhas sentiam, mas não se falava nisso. E não se falando, estava tudo certo”.
Um estudo dedicado ao “coming out e envelhecimento bem-sucedido em mulheres lésbicas, homens gays e bissexuais com 55+ anos em Portugal” reitera essas dificuldades de assumir publicamente a orientação sexual por medo de rejeição e perseguição, lembrando que a adolescência foi vivida durante o Estado Novo.
O dia incompleto
Teresa Lacerda sabe bem onde estava a 25 de Abril de 1974. Tinha acabado de voltar a Portugal, depois de passagens por Londres e Paris. “Tinha aberto a primeira loja há 20 dias quando aconteceu o 25 de Abril”. Para quem como ela vinha de fora, compara, foi “uma bomba”.
“Uma revolução de excitação, toda a gente na rua, toda a gente a querer saber o que se passava. A aflição dos bancos estarem fechados, as corridas aos bancos. Lembro-me de vir para a Baixa e aquelas multidões todas de um lado para o outro”. Teresa, que passou a vida a recolher memórias de todo o mundo, não tem uma única fotografia dessa altura.
Uma revolução nunca se faz só num dia. Leva tempo, muito tempo a materializar-se. Em Portugal, foi preciso esperar até 1982 para que a homossexualidade deixasse de ser crime. Foi preciso esperar até 1990 para ver a Organização Mundial de Saúde deixar de classificá-la como doença. Foi preciso esperar até 2010 para a aprovação do casamento.
A (homos)sexualidade tornou-se algo “normal, assumido, livre, alegre, bom”. Ainda assim, 50 anos depois, há receios: “Nada é seguro, não é? Depende dos regimes de cada país. A repressão pode voltar”.
“Pode voltar, claro. Pode voltar, perigosamente. Como estamos então agora, com a extrema-direita a subir, a subir, a subir, a subir, nunca se sabe o que é que daí vem. Mas poderá não ser nada de bom. Não só no que diz respeito à homossexualidade, mas a tantas outras coisas que atentam à liberdade”.
Falta “consolidar”, falta deixar de olhar para as mulheres como um “ser de segunda”. Sem isso, para Teresa, “nunca chegaremos a ser completamente livres”.
Pode consultar toda a investigação aqui:
Artigo-síntese: Não tem Dedicatória, mas é para Ti: cinco histórias sobre amar quem a ditadura proibiu
Versão Televisiva: ‘Não tem dedicatória, mas é para Ti’. Era assim que a ditadura perseguia os homossexuais: com choques elétricos e lobotomias