"O verão vai ser caótico, ainda mais do que no ano passado". Ginecologistas e obstetras lamentam falta de plano e acusam Governo de dar "migalhas"

14 jun, 07:00
Ginecologista/obstetra a fazer ecografia

Médicos estão “cansados” e acusam Governo de falta de planeamento e de não apresentar medidas para fixar profissionais de ginecologia e obstetrícia no Serviço Nacional de Saúde

Sem um plano para as maternidades, sem médicos para preencher as escalas e com os problemas do costume nas urgências que estão longe de serem sazonais: o verão está à porta e os especialistas em ginecologia e obstetrícia preveem meses difíceis, ainda mais “do que no ano passado”. E acusam o atual Governo de “dar migalhas” com os incentivos anunciados, ao invés de tentar fixar médicos no Serviço Nacional de Saúde.

O verão vai ser caótico, ainda mais do que no ano passado. As pessoas estão cansadas, já têm 200 e 300 horas a mais por ano, querem é mais pessoas a trabalhar com elas”, atira Sara Proença, médica especialista em ginecologia e obstetrícia e dirigente da Federação Nacional dos Médicos.

A médica critica a falta de planeamento para os próximos meses, já eles difíceis por causa das férias dos médicos, mas também pela recusa às horas extraordinárias para lá das estipuladas por lei, algo que diz que em breve será notório. “As medidas que nos foram transmitidas visam apenas parar feridas pontuais, não há medidas para fixar médicos no SNS, para fazer escalas, e isso é o problema que não é apenas do verão. Estas medidas não trazem nada de bom, apresentam apenas migalhas para fazer mais horas extra”, vinca.

Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, também é rápido a responder quando questionado se vamos ter um verão tão caótico como os dois últimos: “Penso que sim, não vejo uma grande diferença em relação ao verão do passado”. E olhando para as propostas do Governo no plano de emergência apresentado há dias, “as mudanças não são assim tantas”. E muitas delas, se já existem, não são ainda conhecidas, adianta Fernando Cirurgião, diretor do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier.

Fernando Cirurgião mostra-se preocupado com a falta de planeamento e comunicação para as semanas que se avizinham, assim como com a falta de estratégia para fazer frente à falta de especialistas nestas áreas no setor público. “Estamos na mesma”, lamenta. “Do que vimos até agora, não está nada consolidado sob o ponto de vista da formação de equipas e de encerramentos que vão acontecer”, lamenta o médico, que receia “a acumulação de horas extra”, admitindo que o que se vai assistir é à falta de desejo de fazer “mais hora extra”. 

É previsível que continuemos a assistir ao encerramento noturno das urgências, a ter dificuldades de internamento”, afirma Fernando Cirurgião, adiantando que este é também um problema sobre o qual nada se tem feito. “Numa urgência de Obstetrícia, quando se tem lotação esgotada isso é mesmo inultrapassável, é uma cama para a mãe e para o bebé, não há como está a acrescentar macas ou beliches”.

O acesso das grávidas aos serviços de urgência tem sido difícil nos últimos anos e os médicos lamentam que o cenário se mantenha, mesmo com mudanças em vigor. O Governo acabou com a divulgação online dos mapas e calendários das urgências de Ginecologia/Obstetrícia que estão ou não abertas, devendo a grávida pedir essa informação por telefone através da Linha SNS Grávida, que usa o mesmo número da Linha SNS24 (808 24 24 24) e que permite um atendimento dedicado à gravidez. Para Fernando Cirurgião “é preciso que [esta extensão para a grávida] funcione melhor que a Linha SNS24, pois acaba por não traduzir no momento do telefonema a realidade das maternidades”. 

Rui Nunes, professor catedrático da faculdade Medicina da Universidade do Porto, especialista em Política da Saúde, diz que “é de louvar que exista um plano de emergência”, defendendo que “é melhor ter este tipo de iniciativas do que não ter nenhuma, mas não deixo de ter preocupado”, pois, “não se consegue perspetivar uma evolução de fundo do sistema de saúde. Mesmo que [estas medidas] tenham agora um resultado positivo, a minha pergunta é: como serão os meses seguintes e o inverno?”.

Continuam a faltar médicos para completar as escalas de urgência

A falta de médicos para preencher escalas de urgências é transversal a todas as especialidades médicas - como já alertou o movimento Médicos em Luta - mas no caso da ginecologia e obstetrícia torna-se ainda mais crítico. Segundo os dados facultados pela Ordem dos Médicos, existem atualmente 1.913 médicos de ginecologia e obstetrícia, apenas mais três do que no final do ano passado. Mas nem todos eles trabalham no SNS, muito menos apenas no SNS. Olhando para os dados disponíveis online, referentes a dezembro de 2023, mais de 60% têm mais de 56 anos, idade a partir da qual podem rejeitar fazer parte da escala do serviço de urgência. E este, assegura quem está no terreno, é o grande calcanhar de Aquiles do SNS e aquele que faz com que muitos fujam para o privado.

“Na margem Sul, no Garcia Orta, temos dez especialistas, muitos deles nem fazem noite, assim não dá para colmatar [as escalas de] urgências, muito menos no verão”, diz Sara Proença, atirando: “enquanto não houver medidas para fixar profissionais [no SNS], para aumentar salários e garantir a progressão, as pessoas não querem” fazer urgência. “Em Lisboa e Vale do Tejo não é possível fazer mais”, continua a médica. “Em Setúbal, há quatro ou cinco especialistas para a urgência, como é que se mantém uma urgência sete dias aberta? É impossível”.

A médica acrescenta que a urgência nos hospitais públicos “está superpesada, há muita responsabilidade e os utentes confiam menos, vêm desconfiados e irritados”, o que faz com que muitos médicos ginecologistas e obstetras não a queiram fazer (se a idade assim o permitir) ou optem por “estar no privado”. E a fuga para o privado acontece também pela falta de opção no público: “tenho colegas que já acabaram a especialidade em março e ainda não saíram concursos [para o SNS], então vão para o privado”, revela a dirigente sindical. 

Sobre os concursos, Rui Nunes diz que estes deveriam ter sido incluídos no plano de emergência apresentado pelo Governo. “Já passaram algumas semanas, o estado de graça [do Governo] está paulatinamente a agravar-se, é fundamental um plano estratégico para o sistema de saúde, sobretudo da mulher e da criança”, diz o professor e antigo candidato à Ordem dos Médicos. 

Apresentou-se este plano e deixou-se as medidas de fundo para uma data incerta e devia ter sido tudo ao mesmo tempo, devia-se ter aberto vagas para o imediato e ter um plano estratégico para os recursos humanos nos SNS. Não podemos ficar semana após semana sem rumo nesta matéria”, atira Rui Nunes.

Mas se faltam médicos de Ginecologia e Obstetrícia para as urgências, faltam também para as consultas e cirurgias. Os profissionais estão a ser desviados para as situações emergentes, aumentando outros problemas crónicos do SNS, que vão do aumento de tempo de espera para exame, consulta e cirurgia, à dificuldade de acesso a esses mesmos procedimentos. “Temos ainda todo o resto da atividade assistencial, a ecografia obstétrica é das situações potencialmente desprezadas por se centralizar os recursos médico nas urgências, o que facilmente acontece”, explica Fernando Cirurgião, reconhecendo que, “na prática, não notamos medidas tão apelativas para que haja um aumento de disponibilidade para fazer urgências”.

Sobre este ponto, Sara Proença, da FNAM, bate na tecla da contratação e da melhoria de salários, dois aspetos que, diz, estão a travar a fixação de profissionais no Serviço Nacional de Saúde e que, até agora, não tem tido desenvolvimentos positivos, até porque a grelha salarial não foi um tema na última reunião entre a Ministra da Saúde, Ana Paula Martins (já depois de ter dito que não teria “limites à priori” nesta matéria), e os sindicatos médicos, que já afirmaram querer lutar pelos 30% de aumento

Incentivo para partos “é irrisório” e vai aumentar fuga para o privado, acusam médicos

Na semana passada, o Governo liderado por Luís Montenegro apresentou o Plano de Emergência e Transformação na Saúde, aprovado em Conselho de Ministros a 29 de maio de 2024, plano esse que os profissionais destas especialidades consideram fraco para a realidade atual, sobretudo no que respeita às urgências. E nem mesmo o incentivo para a realização de partos convence.

Sobre o incentivo para os partos, Fernando Cirurgião diz que esta é uma medida “nada atrativa”, cujo valor é “irrisório”, até porque, explica, é a “dividir por toda uma equipa que envolve umas 30 e tal pessoas, desde médicos, enfermeiros e auxiliares”. “Incluindo a senhora da limpeza”, acrescenta Sara Proença.

Fernando Cirurgião avisa que muitos hospitais “não irão ultrapassar” a média de partos realizados nos últimos três anos, requisito para que haja o pagamento deste incentivo, dizendo que “não é de todo isso o que vai fazer com que se façam mais partos”. Além do mais, adianta, “estando ainda previsto que quando há falta de vagas a grávida é transferida para o privado, será mais apelativo - muitos médicos têm esta sobreposição de trabalho entre público e privado - estar num privado do que no público, onde irá receber o valor total do parto”.

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