A pouco mais de um mês do verão, ainda não foi apresentado o plano de saúde para esta época crítica do ano. Ministério da Saúde diz que "ainda não há datas" para a apresentação do programa e médicos estão "preocupados"
O Ministério da Saúde entrou em contrarrelógio para apresentar um plano de saúde para o verão. A pouco mais de um mês da entrada numa das épocas mais críticas do ano para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), o gabinete liderado por Ana Paula Martins diz à CNN Portugal que "ainda não há datas" para apresentar o plano para os meses de verão. Os profissionais e administradores de hospitais continuam, por isso, sem saber como vão ser as próximas semanas e temem que o plano seja apresentado e colocado em prática tarde mais, pedindo celeridade na apresentação de uma estratégia.
A polémica falta de um plano para os meses de verão começou depois de o agora demissionário diretor-executivo Fernando Araújo ter recusado delinear o plano. A ministra da Saúde Ana Paula Martins acabou por entregar a tarefa ao grupo liderado por Eurico Castro Alves, que estará também responsável pela criação do plano de emergência para o SNS. Pelo meio falou-se da existência de um plano de verão da Direção-Geral da Saúde, mas a Tutela já explicou que esse terá apenas questões técnicas e que será diferente do que pediu ao Fernando Araújo e agora e depois a Castro Alves e que irá determinar, entre outros aspetos, os serviços que irão encerrar nos meses de verão.
Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos, olha para a falta de um plano “com uma grande preocupação” e diz que nem é preciso esperar pela chegada do verão dentro de seis semanas para perceber que o cenário será “dramático”. "Basta olharmos para o encerramento de urgências de ginecologia e obstetrícia e pediatria, sobretudo no sul e em Lisboa e Vale do Tejo, agora em maio, que não é período de férias”, acrescenta a dirigente sindical, lembrando que “já temos a experiência do ano passado e nada foi feito de diferente”.
Tal como aconteceu no inverno passado, a entrega de escusas à realização de mais horas extraordinárias para lá das 150 horas anuais poderá também ser um fator determinante para a instabilidade no SNS durante o verão. Apesar de, para já, o número de escusas entregues ser “residual” e os profissionais estarem à espera de um acordo nas negociações com o Governo, Joana Bordalo e Sá adianta que “muitos colegas já atingiram o limite das 150 horas extras anuais e isso poderá mesmo ser um drama” no preenchimento de escalas de urgência, causando ainda mais constrangimentos, sobretudo nas urgências gerais, de pediatria e obstetrícia.
Susana Costa, porta-voz do movimento Médicos em Luta, diz que, enquanto está “a ser desenhada uma estratégia, não há ainda nenhum motivo para pensarmos avançar com nenhum protesto” semelhante ao do ano passado, em que os médicos entregaram em massa minutas de recusa a mais horas extras. A médica diz que, para já, são “pontuais” as recusas ao trabalho extraordinário nesta fase, mas não descarta uma mudança de cenário se o plano de verão tardar mais do que o suposto ou não trouxer melhorias à situação. Ainda assim mostra-se otimista: “Tivemos uma primeira reunião com o Executivo e vamos voltar a reunir no mês de maio. Acreditamos que haja uma vontade de recuperar o SNS”.
Menos otimista está Joana Bordalo e Sá. Em tom de crítica, a presidente da FNAM apressa-se a dizer que o plano para este verão já vem tarde - seja na apresentação de medidas como na capacidade de as levar a cabo em tempo útil - e que “já devíamos estar a preparar o plano de inverno”, instando o novo Executivo a acelerar a resolução do maior problema do SNS: a falta de médicos. “É preciso conseguir fixar médicos no SNS, é o que está a faltar, não apenas no verão, é todos os dias”, atira, lembrando que a falta de clínicos torna-se ainda mais crítica e notória no período de férias, muitas vezes colmatado com o recurso a médicos internos, como aconteceu no ano passado.
E as férias poderão mesmo ser um problema para as próximas semanas. Os entrevistados pela CNN Portugal esperam que o descanso dos profissionais de saúde seja respeitado, mas não se lançam em certezas quanto ao cumprimento das férias, preferindo esperar para ver o que vai acontecer e o que vai ser apresentado pela ministra Ana Paula Martins. O certo é que não será a primeira vez que as férias serão uma dor de cabeça em serviços com poucos recursos, mesmo quando há aquilo a que Susana Costa chama de “espírito de equipa” nestas alturas críticas, em que os médicos procuram preencher as escalas para que todos consigam ter as férias marcadas. Em 2022, por exemplo, médicos e enfermeiros do Centro Hospitalar do Algarve foram aliciados a trocar as suas férias por uma remuneração extra, numa tentativa de fazer frente à crise nas urgências. Nesse mesmo ano, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) denunciou uma alegada tentativa do Ministério da Saúde, à data tutelado por Marta Temido, de cancelar as férias de médicos durante o verão.
Plano deverá ser semelhante ao do ano passado
O plano de verão foi pedido ao diretor-executivo demissionário Fernando Araújo, que rejeitou o pedido de Ana Paula Martins por ter sido feito já depois de a sua demissão ter sido aprovada pelo Executivo, como noticiou o Expresso. Cabe agora a Eurico Castro Alves, antigo presidente do Infarmed, juntamente com uma equipa composta por vários médicos, a criação de um plano sazonal ao mesmo tempo que é delineado um plano de emergência para o SNS, o mesmo que o Executivo de Luís Montenegro prometeu apresentar nos primeiros 60 dias de governação.
O verão passado ficou marcado pelo encerramento de algumas maternidades e salas de parto e, para Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, face ao estado atual do SNS e às “limitações” que ainda apresenta, “o plano deste verão não pode ser muito diferente do ano passado”.
À falta de um plano vindo do Ministério da Saúde, cabe aos hospitais ir gerindo a sua situação dentro do possível. “Os hospitais podem sempre gerir [os recursos e serviços] e estão sempre a fazer isso, como - parece algo óbvio, mas é mesmo assim - garantir que os profissionais não marcam todos férias no mesmo período, para não prejudicar em demasia o serviço e a organização do serviço”, adianta Xavier Barreto.
O representante dos administradores hospitalares sugere que seria mais vantajoso adotar um sistema em rede para uma melhor gestão hospitalar e também para um acesso mais facilitado por parte dos utentes, sobretudo por parte de grávidas, que acabaram por ser as mais penalizadas no último verão. “Não considerando riscos políticos, em termos de organização de atividade para hospitais e doentes, é sempre melhor funcionar com mais previsibilidade, com uma rede fixa ao invés de uma rotativa. Por exemplo, era melhor assumir que em Lisboa e Vale do Tejo se iria encerrar duas ou três maternidades, garantido que essas equipas seriam concentradas noutros [hospitais] e que as grávidas teriam acesso rápido e ágil”, sugere Xavier Barreto, dizendo ainda que “a questão que se coloca é se devia ser rotativo ou de forma fixa, ou seja, encerrar uns serviços por meses ou anos”.
Já Joana Bordalo e Sá diz que o encerramento de serviços e urgências não deve ser a solução, sobretudo numa “área sensível” como a materno-infantil. “As grávidas têm o direito a ser assistidas no serviço de urgência da sua área de residência, algumas até estão a ser desviadas para o privado quando não for a sua escolha”, critica a médica, apesar de reconhecer que o mais certo é que o plano a ser apresentado seja semelhante aos do verão e inverno do ano passado, até porque, volta a dizer, há urgências encerradas ainda antes do verão (em pleno 13 de maio, por exemplo, o Centro Hospitalar de Leiria, o mais próximo de Fátima, esteve com constrangimentos nas urgências).
Quanto a uma nova possível onda de encerramentos de serviço de especialidade e de urgência, a médica Susana Costa diz que “certamente” este será um cenário durante o verão e que este não será apenas um cenário da ginecologia e pediatria, uma vez que, justifica, “há cada vez mais falta de médicos especialistas em todas as especialidades, vai ser transversal”. “Isso vai agravar-se”, avisa.
Recurso aos privados não é prioridade
Para Xavier Barreto, o facto de termos um Governo minoritário e de os partidos não se sentarem para conversar pode complicar ainda mais a criação de um plano estratégico para o SNS, seja ele de curto, médio ou lono prazo. Ainda assim, crê que os privados não serão a primeira cartada deste Executivo para fazer frente aos problemas do setor público da saúde.
Do que os administradores hospitalares já falaram com o Governo, o que foi dito é que “primeiro” está a necessidade de “rentabilizar ao máximo o SNS, aumentar a eficiência e profissionais”, confidencia Barreto Xavier. “Acredito que possa surgir a necessidade de alguma colaboração com o privado”, como já aconteceu com os partos de baixo risco, exemplifica, mas “não estamos perante uma mudança disruptiva com o privado”, garante o representante dos administradores hospitalares, dizendo que a falta de diálogo e entendimento entre os partidos é, de momento, o maior calcanhar de Aquiles para o planeamento do SNS.
“Em termos políticos, o ideal seria os partidos entenderem-se sobre estas mudanças. Se é necessária uma reforma da rede materno-infantil, o ideal era os três principais partidos se sentarem e se entenderem”, diz, embora reconheça que “obviamente, um Governo com apoio minoritário tem dificuldade em fazer reformas estruturais por serem mal percepcionadas”, sobretudo pelos municípios e numa época pré-eleitoral: “sabendo que no próximo ano haverá autárquicas, estes encerramentos serão usados como arma de arremesso político”, o que, a seu ver, “dificulta a ação” de qualquer partido, sobretudo “aquele que assuma estas consequências sozinho”.