Como 11 palavras improvisadas de Biden podem afetar a guerra na Ucrânia (análise)

CNN , Análise de Stephen Collinson
28 mar 2022, 11:35

"Por amor de Deus, este homem não pode permanecer no poder". Estas palavras improvisadas colocam um mundo já nervoso novamente no limite. Antes, Biden já chamara Putin de “criminoso de guerra”, “carniceiro”, “bandido” e “ditador assassino”. Presentes para a propaganda russa?

A sugestão feita este sábado na Polónia pelo presidente norte-americano, Joe Biden, de que o ataque de Vladimir Putin à Ucrânia deveria desqualificá-lo do poder desencadeou uma tempestade política internacional.

De volta a Washington no domingo à noite, Biden disse aos jornalistas que não estava a pedir uma mudança de regime na Rússia – dando eco a uma mensagem repetida várias vezes pelos seus subordinados, mesmo antes de ele regressar aos EUA.

Mas as reverberações globais dos comentários deixam a administração norte-americana a enfrentar questões graves. Algumas são estratégicas e podem ter impacto no curso futuro da guerra e nas esperanças, até agora ilusórias, de um cessar-fogo. Outras são políticas e relacionam-se com a posição de Biden no seu país, no meio de uma torrente de críticas republicanas, e internacionalmente, enquanto ele procura manter a coligação ocidental unida.

Essas questões incluem:

  • Fez o comentário do presidente Biden escalar perigosamente as já altas tensões naquela que é a pior confrontação em décadas entre o Ocidente e a Rússia?
     
  • Biden abalou a confiança internacional na sua liderança, até agora forte em reunir a aliança da NATO numa frente unida contra Moscovo? E será Putin capaz de explorar a inquietação gerada pelos comentários de Biden nas capitais europeias?
     
  • A noção de que Biden espera derrubar Putin - mesmo que os EUA digam que isso não é verdade - fortalecerá a determinação do líder russo contra as negociações, ou fará com que ele aumente ainda mais uma guerra já impiedosa contra civis?
     
  • A retórica agora pungente de Biden sobre Putin descartou de facto qualquer futura diplomacia direta ou reuniões entre as principais potências nucleares do mundo – e poderá isso ameaçar a paz global, se eles não puderem comunicar numa crise futura que ameace a humanidade?
     
  • Ou irá a reação humana de Biden, depois de estar com refugiados ucranianos, ser depressa superada pelo horror diário da guerra, ou ser vista como uma postura moral forte que mudou a maneira como o mundo vê o líder russo? Afinal, o apelo do ex-presidente Ronald Reagan ao então líder soviético Mikhail Gorbachev para “derrubar este muro”, em Berlim, foi inicialmente contestado por alguns de seus próprios assessores por ser demasiado provocador.
     
  • E, finalmente, uma vez que Moscovo já vê as sanções ocidentais extraordinariamente duras como sendo uma guerra económica, e dada a visão profundamente conspirativa de Putin sobre o Ocidente e o seu papel no desaparecimento da União Soviética, podem algumas palavras soltas presidenciais, que irritam todos em Washington, realmente piorar as coisas?

Um esforço rápido de lavagem

A velocidade com que os funcionários da Administração norte-americana agiram para esclarecer o comentário de Biden deixou claro que eles sabiam que ele poderia criar um grande problema, que poderia tornar o confronto geopolítico europeu ainda pior.

Num golpe que não estava escrito no guião, Biden disse: "Por amor de Deus, este homem não pode permanecer no poder", referindo-se a Putin. Um funcionário da Casa Branca disse depois que o que Biden quis dizer foi que "Putin não pode ser autorizado a exercer poder sobre os seus vizinhos ou sobre a região", acrescentando que Biden não se estava a referir a uma mudança de regime. O secretário de Estado Antony Blinken foi ainda mais categórico durante uma viagem a Jerusalém no domingo:

"Não temos uma estratégia de mudança de regime na Rússia, ou em qualquer outro lugar", disse Blinken. "Neste caso, como em qualquer outro caso, isso cabe ao povo do país em questão. Isso cabe ao povo russo."

A linguagem de lavagem foi pouco convincente, dado o contexto claro da citação original. Mas um comentário com estas implicações num momento de alta tensão precisava claramente de voltar atrás. E rapidamente.

Qualquer ideia de que os EUA veriam o conflito como uma tentativa de derrubar Putin seria perigosa, pois elevaria o choque a uma confrontação direta entre os Estados Unidos e a Rússia.

Biden tentou evitar esse cenário escrupulosamente - bloqueando visivelmente um plano polaco de enviar caças de fabrico soviético para a Ucrânia, para evitar a interpretação de que a NATO está a assumir um papel mais direto na guerra. A situação já está no limite, uma vez que enormes carregamentos ocidentais de mísseis antiaéreos e antitanque estão a alimentar a forte resistência da Ucrânia, e aparentemente a causar pesadas baixas russas.

Um presente de propaganda para Putin

Não há dúvida de que Biden deu a Putin um presente de propaganda que poderá minar o trabalho árduo do próprio presidente dos EUA em manter o foco na Ucrânia. O aparelho de informações de Moscovo apresentará certamente a guerra ao povo russo como um impulso hostil do Ocidente para obscurecer ainda mais a verdade sobre o ataque não provocado à Ucrânia. Isso pode aliviar a pressão política, que o Ocidente espera que seja construída por sanções severas destinadas a mudar as contas de Putin.

Mas os esforços iniciais de Biden para evitar personalizar o conflito com Putin e caracterizar a guerra como um confronto direto EUA-Rússia foram prejudicados pela sua própria retórica dura dos últimos dias sobre o líder russo. Biden fez saber no início deste mês que acredita que Putin é um criminoso de guerra, após os ataques implacáveis ​​a cidades e civis ucranianos que desencadearam um êxodo maciço de refugiados.

O comentário de Biden sobre o mandato do líder russo no poder não foi a única retórica marcante de sua viagem. Depois de conhecer refugiados no sábado, Biden chamou Putin de "carniceiro". Antes, Biden tinha-o chamado de “bandido” e de “ditador assassino”. E o próprio guião escrito, de que Biden descolou para fazer a observação agora tão notória, era já em si mesmo agressivo, antecipando o que Biden disse ser uma longa luta, o que soou bastante como uma nova Guerra Fria.

Dado que Biden está provavelmente a sentir o peso da paz mundial sobre os seus ombros, e uma empatia aguçada por aqueles que visitou numa tragédia indescritível na Ucrânia, os seus desabafos na viagem à Europa podem ser compreendidos como uma reação humana em face de um grande sofrimento.

Joe Biden com refugiados ucranianos na Polónia (AP Photo/Evan Vucci)

"Ele foi ao Estádio Nacional de Varsóvia e encontrou-se literalmente com centenas de ucranianos", disse Julianne Smith, embaixadora dos EUA na NATO, a Dana Bash, da CNN, no programa "State of the Union" no domingo.

"Naquele momento, acho que foi uma reação humana de princípios às histórias que ele ouviu naquele dia", disse Smith, ressaltando novamente que os EUA não têm uma política de mudança de regime na Rússia.

Mas as palavras de um presidente também devem ser cuidadosamente escolhidas. Como a dramatização de sábado mostrou, basta apenas um momento para criar uma perigosa crise diplomática.

Republicanos pedem a Biden que se mantenha fiel ao guião

Biden teve um grande sucesso em reverter a sua propensão para gafes na candidatura às eleições de 2020, numa campanha a que pandemia da covid-19 roubou momentos espontâneos. Foi uma pena que os seus velhos hábitos, de dizer tudo o que pensa em momentos inoportunos, ressurgissem agora.

Os republicanos aproveitaram os comentários francos do presidente no domingo, procurando pôr em causa a perceção de que Biden respondeu bem às provocações de Putin até agora na crise da Ucrânia. Claramente, eles não estavam a pensar apenas na segurança nacional, mas também em política, antes das eleições de meio de mandato, que estão a ser marcadas pelos baixos índices de aprovação do presidente. Em algumas das críticas, havia uma sensação de que os republicanos estavam a insinuar junto dos órgãos de comunicação conservadores que Biden está velho, que não está no controlo total e que pode conduzir os EUA a uma guerra. Esta posição esquece convenientemente a tolerância dos comentadores de direita em relação à retórica vulcânica do ex-presidente Donald Trump, mas ela tem influência nas bases do Partido Republicano.

Presente no programa "State of the Union", da CNN, o senador do Idaho, Jim Risch, que é o republicano mais importante no comité de Negócios Estrangeiros do Senado, pareceu estar tanto a sublinhar a mensagem da Administração de opor-se à mudança de regime em Moscovo, como a encontrar uma maneira de questionar a capacidade de Biden de liderar.

Ao elogiar o discurso de Biden na Polónia, o republicano de Idaho disse: "Houve uma gafe horrível mesmo no final. Eu gostava só que ele se mantivesse fiel ao guião". "Esta Administração fez tudo o que podia fazer para parar a escalada", disse Risch. Mas acrescentou: "Não há muito mais que se possa fazer para escalar do que pedir uma mudança de regime".

O senador republicano de Ohio, Rob Portman, foi um pouco mais moderado, mas não menos crítico. "Primeiro, acho que todos acreditamos que o mundo seria um lugar melhor sem Vladimir Putin. Mas, segundo, essa não é a política oficial dos EUA. E ao dizer isso, que essa mudança de regime é a nossa estratégia, isso de facto ajuda as mãos dos propagandistas russos e as mãos de Vladimir Putin", disse Portman no programa “Meet the Press”, da NBC.

Os comentários de Biden provocaram ondas de choque na Europa e em Washington. E pareceram irritar o presidente francês, Emmanuel Macron, que tem sido uma figura-chave na tentativa, de pouco sucesso, de fazer Putin concordar com um cessar-fogo.

"Eu não usaria termos como esse porque ainda estou em negociações com o presidente Putin", disse Macron ao canal de televisão France 3, quando questionado sobre o comentário de Biden de que o líder russo era um "carniceiro".

Qualquer acordo de cessar-fogo futuro com o qual Putin concorde provavelmente não sairá da diplomacia dos EUA, dada a profunda e mútua hostilidade entre Moscovo e Washington.

Mas qualquer acordo final - e de facto o objetivo de longo prazo de evitar uma escalada perigosa entre as duas maiores potências nucleares do mundo - depende de eles conversarem entre si. Era já difícil ver como Biden poderia encontrar-se com um líder russo a quem chamou de criminoso de guerra. Os acontecimentos deste fim de semana tornaram isso ainda mais difícil. E embora o objetivo dos EUA em Moscovo não seja a mudança de regime, é difícil ver qualquer diálogo substancial enquanto Putin ainda estiver no comando.

Europa

Mais Europa

Patrocinados