António tentou os choques elétricos para deixar de ser gay: há 50 anos um manifesto mostrou que a liberdade não nasceu para todos

15 mai, 07:00

INVESTIGAÇÃO “NÃO TEM DEDICATÓRIA, MAS É PARA TI” #1/4. Na ditadura, o regime tratava os homossexuais com dois pesos e duas medidas. Aos de classe alta protegia, aos de classe baixa perseguia, pelos seus crimes “de vício contra a natureza” e “atos imorais”. Mesmo após a Revolução, foram precisos oito anos até que a homossexualidade deixasse de ser crime. Este é o primeiro capítulo de uma investigação da CNN Portugal que mostra como era vivida a homossexualidade durante o Estado Novo. Com visitas aos arquivos e relatos na primeira pessoa da primeira geração a viver abertamente a velhice fora do armário

É difícil esquecer a primeira vez em que nos sentimos atraídos por alguém. É ainda mais difícil esquecer quando se tem a sensação de que é pecado. “Comecei a perceber que estava errado, que não estava bem”. António Serzedelo, hoje com 79 anos, cedo descobriu que gostava de outros homens.

Contudo, procurou aquilo a que muitos chamavam uma vida normal: ter uma namorada e casar. Afeiçoou-se a uma rapariga, mas revelou-lhe o seu segredo: gostava dela, mas também sentia uma atração por outros homens.

“Ela disse-me: ‘não te preocupes, porque há um médico que trata disso’”. O médico trabalhava no hospital psiquiátrico Júlio de Matos, em Lisboa. E António submeteu-se, de livre vontade, à terapêutica: choques elétricos.

Eram mostradas imagens de relações entre casais. Quando eram homem-mulher, a sensação era agradável, “um mel doce”. Quando eram dois homens, “um gajo tinha de dar um salto”. “Sentia-me francamente maldisposto com os choques que levava”.

Meses depois, na hora de reavaliar, António confessou ao médico que continuava a sentir-se atraído por outros homens. “Tu não tens cura”, respondeu-lhe o médico.

A casa de António Serzedelo está recheada de autorretratos. Em cada um deles, uma história (DR)

“Um dos dias mais felizes”

António Serzedelo já tinha tido pistas de que uma revolução estaria em marcha. Trabalhava nos serviços de informação e contrainformação do Estado-Maior-General d​as Forças Armada. Chegou a receber a indicação para colocar um papel muito fino nas secretárias dos militares afetos ao regime. Para ver o que eles lá escreviam: “um dos generais estava apaixonado pela secretária”.

Mas nada nos prepara para uma revolução como a de 25 de Abril de 1974. “Posso dizer que é um dos dias mais felizes da minha vida. Embora naquele dia não tivesse tido consciência”. Era o ponto de partida para uma vida de luta, por direitos iguais, incluindo para os homossexuais como António.

A 13 de maio, poucos dias depois da revolução, é publicado no Diário de Lisboa o manifesto ‘Liberdade para as Minorias Sexuais’. Nele pedia-se o fim das “chantagens e das perseguições” e exigia-se uma “educação sexual que não discrimine as práticas homossexuais”.

Detalhe do manifesto publicado a 13 de maio de 1974 (Hemeroteca Municipal de Lisboa)

António Serzedelo é o único dos cinco autores do manifesto que ainda está vivo. Inspiraram-se nas ideias e nos valores que descobriram nas viagens ao estrangeiro. Mas, apesar da liberdade que se tinha instalado no país, a resposta não foi a esperada.

Poucos dias depois, Galvão de Melo, da Junta de Salvação Nacional, reagia ao manifesto na RTP: “Isto é permitir-se a ignóbil transcrição, em jornais que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de amoralidade sem precedentes em qualquer país em que a família e a moral existem ainda como valores”.

“Queríamos que houvesse uma remodelação das leis. Mas não sabíamos qual era a fórmula. Queríamos era que as pessoas não fossem presas, perseguidas”, recorda António.

Uma revolução em câmara lenta

Instalou-se o silêncio. E foi preciso esperar até 1982 para o rasgar. É desse ano a nova Constituição da República Portuguesa, na qual a homossexualidade é descriminalizada. Oito anos de espera para que amar alguém do mesmo sexo deixasse de ser crime.

Antes disso, o Código Penal – que o Estado Novo manteve - previa o “internamento” dos homossexuais em “manicómio”, “casa de trabalho” ou “colónia agrícola” – ou mesmo a “interdição do exercício de profissão”. Eram identificados como pessoas que se entregam “habitualmente à prática de vícios contra a natureza”.

Registo de detenção (Cortesia: Polícia Judiciária)

Os registos de detenção dessa altura utilizavam expressões como estas: “ter pegado no membro viril”, “preso por praticar atos de sodomia”, acusado de “desencaminhar os rapazes” que distribuíam telegramas e os marinheiros, “crime de vício contra a natureza”, “atos imorais”.

Fotografia usada como prova na detenção de homossexuais (Cortesia: Polícia Judiciária)

O cabelo rapado era o mais simples que podia acontecer. Em Lisboa, tornou-se célebre o Asilo da Mitra, criado para acolher mendigos, onde homossexuais da classe mais baixa eram internados.

Antigo Asilo da Mitra (Estúdio Mário Novais / Arquivo Municipal de Lisboa)
Vista aérea atual da área onde funcionava o Asilo da Mitra (DR)

Mapa relacional de uma Lisboa clandestinamente gay

Na ditadura, a homossexualidade sempre foi clandestina. Ainda assim, estava à vista de todos. Basta pegar num mapa de Lisboa e apontar os vários locais que vão sendo referidos por quem viveu esses tempos ou pelas investigações que se dedicam à recuperação desta história.

Café Monte Carlo na década de 1970 (Photographia Vasques / Arquivo Municipal de Lisboa)

“Havia certas zonas de Lisboa onde se sabia que isso podia acontecer. Na Baixa, à noite, ao fim da tarde, com o pretexto de não se ter o isqueiro para o cigarro. Ou com o pretexto de perguntar as horas”, recorda António Serzedelo. E só havia uma forma de confirmar se o interesse era mútuo: “o troco que a pessoa dava ou não”.

Os encontros davam-se em cafés como o Monte Carlo, o Monumental ou a Brasileira. “Na Brasileira do Chiado encontravam-se muitos intelectuais, no meio dos quais havia alguns homossexuais”.

Brasileira em 1966 (Casa Fotográfica Garcia Nunes / Arquivo Municipal de Lisboa)

A lista de locais de referência para esta geração de homossexuais inclui estabelecimentos como o Reimar, o Tony dos Bifes, a Pastelaria Paraíso, a Suíça, o Ad-Lib, o Barbarella, o Gato Verde, o Marygold ou o Bric à Bar.

Mas eram locais sobretudo para as elites. Para os restantes, sobretudo das classes mais baixas, o engate desenrolava-se noutros locais. Nos cinemas, nos jardins, nas zonas de passagem de marinheiros e soldados, nos urinóis públicos. “Combinava-se para outro sítio ou em casa, se se quisesse ir mais longe”.

O mesmo regime, tratamentos diferentes

Urinóis da Faculdade de Medicina (Artur João Goulart/Arquivo Municipal de Lisboa)

A polícia atuava em força nos urinóis, encarados como lugares de “atos imorais” e de “vícios contra a natureza”. Contudo, mostram os relatos e a investigação académica, o Estado Novo tinha formas muito diferentes de lidar com os processos. Tudo dependia da classe social de quem era apanhado.

“Quem tinha dinheiro, dava dinheiro ao polícia que guardava o processo. E se estava em cima, passava para baixo. Até cair no esquecimento. Quem não tinha dinheiro estava lixado, ou ia preso ou ia para a Mitra”, lembra António.

Registo de Detenção (Cortesia: Polícia Judiciária)

Os homossexuais das classes mais baixas eram humilhados e espancados em público, postos a lavar o chão. Na classe artística e cultural, a permissividade era maior. Já aqueles que pertenciam a famílias de elite acabavam protegidos pelo regime: alguns faziam inclusive parte da equipa de Oliveira Salazar.

António Serzedelo nunca foi apanhado pela polícia. “Tinha boas pernas para correr”. Mas não conseguiu escapar às mãos dos “arrebentas”, grupos de jovens que atuavam com autorização das forças de autoridade. “Faziam o trabalho sujo que os polícias não queriam fazer”.

Fica a ressalva de que esta realidade de perseguição se aplicava aos homens gay. As mulheres eram vistas como seres de segunda pelo regime: serem lésbicas era algo que não lembrava a ninguém, mesmo quando viviam com uma “amiga” - como veremos no terceiro capítulo desta reportagem.

António regressou à Brasileira, local de muitas memórias, para esta reportagem (DR)

Acreditar no amor

Passaram-se 50 anos desde aquele dia que mudou tudo. As palavras, outrora insulto, já não têm o “valor depreciativo que tinham antigamente”. Foram adotadas pela própria comunidade LGBTQIA+. O movimento ganhou sigla, em constante mutação.

A geração de António Serzedelo é a primeira a chegar à velhice fora do armário, a viver a sua identidade em pleno. Mas há desafios: “Há a ideia de que o idoso perde a sua sexualidade”.

Múltiplos estudos, dentro e fora de Portugal, tem procurado entender se a chegada a esta etapa da vida pode representar um regresso da sensação de discriminação em função de orientação sexual. Há quem volte para o “armário”.

Aos 79 anos, António ainda acredita no amor. “Uma coisa é sentir-se desejado, mimado. Outra é passar como e ser visto como uma andorinha ou um pombo, sem que ninguém nos ligue nenhuma”. António tem é uma exigência: o pretendente não pode ser “conservador”.

Pormenor de um dos únicos urinóis públicos que restam dessa época, localizado no Beato, em Lisboa (DR)

Pode consultar toda a investigação aqui:

Capítulo 1. António tentou os choques elétricos para deixar de ser gay: há 50 anos um manifesto mostrou que a liberdade não nasceu para todos

Capítulo 2: "Durou mais do que a ditadura". Jorge e Eduardo conheceram-se por causa da guerra colonial: amaram-se 51 anos

Capítulo 3: "O descaramento era ousar não precisar de um homem". Teresa correu o mundo para se soltar das amarras da ditadura: ser mulher e lésbica

Capítulo 4: Valentim viveu quase 50 anos num hospital psiquiátrico. Botto morreu no exílio: como a ditadura prendeu a arte dos homossexuais

Artigo-síntese: Não tem Dedicatória, mas é para Ti: cinco histórias sobre amar quem a ditadura proibiu

Versão Televisiva: ‘Não tem dedicatória, mas é para Ti’. Era assim que a ditadura perseguia os homossexuais: com choques elétricos e lobotomias

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