Covid-19: dados confidenciais de crianças internadas em UCI partilhados em página negacionista (com Direito de Resposta)

23 dez 2021, 07:54

Página de Facebook partilhou dados de crianças internadas com covid-19 que deviam estar sob segredo nos hospitais. Na publicação constam doenças raras que podem permitir identificação dos menores. Ordem dos Médicos prepara-se para enviar caso para a CNPD, que não vê revelação de identidades. Profissionais falam de caso "gravíssimo", "inaceitável" e "deplorável".

Nota: notícia atualizada no dia 4 de maio de 2022 com a inclusão do texto do direito de resposta de Pedro Almeida Vieira

Há dados clínicos de crianças que estiveram internadas nas Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) do país por causa do Sars Cov-2 a serem partilhados numa página anti-vacinas no Facebook. O caso está a gerar mal-estar na comunidade médica. Vários profissionais e entidades de saúde contactadas pela CNN Portugal revelam indignação por estarem a ser divulgados dados clínicos que nunca deviam sair dos hospitais.

A Ordem dos Médicos já enviou o processo para a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD); sindicatos avisam que esta publicação reflete a falta de investimento na segurança dos sistemas de informação em saúde; e a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos Pediátricos adianta que a Direcção-Geral de Saúde já foi avisada do que se está a passar por uma médica destes serviços. 

Em causa está um documento com dados relativos a onze crianças, dos 5 aos 11 anos, que estiveram internadas nos UCI entre abril de 2020 e março de 2021. Nesta publicação, estão descritos os dias de internamento, a data precisa da alta, a idade, o sexo, o hospital em que as crianças ficaram internadas e, ainda, as doenças de que cada uma padecia.

Toda esta informação vinha incluída num post de uma página naquela rede social para questionar a eficácia da vacinação contra a covid-19 nas crianças. A CNN Portugal consultou a página de Facebook em causa, aqui não a identificando para não reproduzir a exposição dos dados das crianças. Contactado, o administrador da página de Facebook, devidamente identificado, justifica que os dados foram anonimizados e as crianças não foram prejudicadas, por não estarem identificadas. 

"Inaceitável", "gravíssimo", "deplorável"

Opinião diferente têm vários profissionais e entidades da área da saúde. “A divulgação dessa informação é inaceitável, pois com os dados disponíveis é possível identificar as crianças”, diz à CNN Portugal Alexandre Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. O responsável explica que o caso vai seguir para as entidades que podem averiguar se há algum crime na publicação dos dados, e investigar como saíram eles de várias unidades de saúde.

Cristina Camilo, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos Pediátricos, garante que a situação é “gravíssima” e que já foi dado o alerta à Direção-Geral da Saúde. Segundo explicou à CNN, uma médica que teve conhecimento do que se estava a passar informou a DGS da divulgação destes dados, que é suposto serem confidenciais. 

Para a médica, a informação que existe neste documento sobre os vários doentes é suficiente para identificá-los, mesmo não tendo os nomes escritos. "Isso não pode acontecer", diz, sublinhando que a situação é ainda mais grave pois a publicação sugere que se trata de um documento e informação oficial, existindo, além disso, alguns dados incorretos. “Tem de perceber-se quem anda a divulgar isto”, defende.

O mesmo defende o presidente do Sindicato Independente dos Médicos. Para Jorge Roque da Cunha "é urgente perceber o que se passou", por estarem em causa dados tão sensíveis, que deveriam ter o máximo de proteção.

“Este caso mostra aquilo que nós temos alertado, que é uma falta de investimento sério nos sistemas informáticos da saúde, não só em termos de proteção de ataques externos, como também naquilo que é básico”, acrescenta Jorge Roque da Cunha, apelando a que o investimento do Plano de Recuperação e Resiliência contemple a garantia de maior segurança na proteção de dados em saúde.

Segundo Roque da Cunha, toda a informação que consta naquele documento está abrangida pelo sigilo profissional. Por isso, garante, nunca poderia sair dos ficheiros das unidades de saúde. Por outro lado, o médico refere que o interesse desta publicação é o de “criar confusão” sobre a necessidade de se vacinarem as crianças e que a partilha destes dados não é comum. “Não é um comportamento que sequer seja habitual, nunca tinha visto nada do género”, diz.

Dados podem permitir identificação 

Na publicação, que já foi repartilhada pelo menos 580 vezes, estão explicitadas as doenças associadas a cada criança internada com covid-19. Entre estas patologias estão algumas consideradas raras, que são identificadas com detalhe. Tendo em conta o universo restrito e a informação pormenorizada, “não é muito difícil perceber de quem se trata”, diz o pediatra Manuel Magalhães, do Centro Materno-Infantil do Norte.

“Por serem doenças raras em Portugal, estas crianças são facilmente identificáveis. Esta publicação não fala dos internamentos de forma geral, transmite os dados caso a caso e permite que as crianças sejam expostas. Em termos éticos, é deplorável”, considera o pediatra.

Da mesma opinião é Filipe Almeida, diretor do Serviço de Humanização e Ética do Hospital de S. João, sublinhando que “não há qualquer justificação” para a publicação dos dados e que a sua partilha “serve intuitos que não perseguem o bem-estar da criança”.

“Isto serve apenas uma política do negacionismo, é um aproveitamento indevido do ponto de vista ético”, explica o professor, que é também membro da Comissão de Ética para a Investigação Clínica.

Mesmo em contexto de investigação, os cientistas precisam de ter cuidado no tratamento dos dados, para que não seja possível identificar os pacientes. Assim, como explica Filipe Almeida, evita-se que “qualquer dado passível de reversão seja divulgado”.

Para Roque da Cunha, a possibilidade de se identificarem as crianças que constam nos dados divulgados pela página anti-vacinação tem um perigo adicional: “O facto de estar numa rede social, que não é uma atenuante, faz com que as próprias seguradoras ou pessoas com mau fundo possam ter acesso a isso”.

CNPD diz que não há identidades reveladas

Apesar da posição dos médicos, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) afirma que a publicação em causa “não identifica de facto as crianças”.

“A informação, embora detalhada do ponto de vista clínico, não parece de per si permitir identificar os titulares dos dados. Nesse caso, não haverá tratamento de dados pessoais”, afirma a entidade, questionada sobre a legalidade da partilha - caso a caso - nas redes sociais de crianças internadas em Unidades de Cuidados Intensivos.

Confrontado com a resposta da CNPD, o professor Filipe Almeida diz ficar “espantado” com a posição da Comissão. “É espantoso, porque é relativamente fácil identificar as crianças com base nas doenças e no hospital em que foram internadas”.

“Imagine que tem um jardineiro a trabalhar num convento de freiras, se há apenas uma pessoa exposta, é claramente um dado de identificação”, argumenta o professor, destacando que a omissão dos nomes dos menores hospitalizados não é a questão: “A questão é poder ter elementos que permitem identificar as crianças”.

A página onde consta a publicação é feita por um jornalista com carteira profissional e pretende tornar-se num jornal digital sustentado por "crowdfunding", donativos. Desde o início da pandemia, tem lançado críticas a vários investigadores que falam publicamente sobre a covid-19.

 

Direito de resposta de Pedro Almeida Vieira

Publicado por determinação da Deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social n.º ERC/2022/78 (DR-TV), adotada em 9 de março de 2022, nos termos do disposto no art.º 69.º da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho

1.  Apesar de ostensivamente ser omitido na notícia da CNN Portugal "Covid-19: dados confidenciais de crianças internadas em UCI partilhados em página negacionista", da autoria do jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino, alvo posteriormente de comentários/entrevista de um médico em antena a partir das 9:12 horas no dia 23 de Dezembro de 2021, em causa está um trabalho jornalístico da minha autoria — jornalista com carteira profissional (CP 1786) — publicado num órgão de comunicação social registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social sob o número 127661. O site do PÁGINA UM encontrasse no sítio https://paginaum.pt, e o artigo em causa está no seguinte endereço: https://paginaum.pt/2021/12/10/covid-19-em-criancas-zero-mortes/. O PÁGINA UM, como outros órgãos de comunicação social, possui uma página específica na rede social Facebook.

2. Como jornalista trabalhei em órgãos de comunicação social como o semanário Expresso e Grande Reportagem, além de colaborações regulares no Diário de Notícias. Embora com um interregno de 10 anos, que agora reactivei, sempre pautei a minha actividade jornalística pelos mais elevados padrões éticos e deontológicas, e de isenção e rigor. O PÁGINA UM pauta-se por estritas regras deontológicas e de independência, tendo publicado no seu site um Código de Princípios e uma Declaração de Transparência. Possuo, além disso, e para além de formação académica diferenciada (três licenciaturas e um mestrado), formação na área em apreço, sendo até sócio aceite pela Associação Portuguesa de Epidemiologia.

3. Qualquer acusação, explícita ou implícita, de eu e/ou o PÁGINA UM seguirmos movimentos ou grupos ditos de negacionismo em redor da pandemia é profundamente difamatório e lesivo do meu nome e do jornalismo independente.

4. Fui, aliás, membro eleito no Sindicato dos Jornalista para o seu Conselho Deontológico no biénio 2007-2008. Conheço, reconheço e sempre coloquei em prática, com escrúpulo, todas as regras deontológicas e éticas, seguindo o interesse público. As informações que transmiti no artigo noticioso em causa são manifestamente de interesse público numa democracia.

5. A CNN Portugal, através do seu jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP886), contactou-me ontem pelo meu e-mail profissional pavieira@paginaum.pt, não podendo assim ignorar que o texto em causa era de um jornalista e de um órgão de comunicação social (PÁGINA UM), e jamais poderia, de forma difamatória e ultrajante, rotulá-la de "página negacionista". Não lhe fiz declarações formais.

6. A seu pedido, a jornalista da CNN Portugal Catarina Guerreiro teve também acesso, por um intermediário (que é jornalista), ao meu contacto telefónico, sabendo assim ela também que eu sou jornalista. Apesar disso, esta jornalista da CNN Portugal nunca me contactou.

7. Não há memória, na História recente da Imprensa Portuguesa, de um órgão de comunicação social claramente independente (sem publicidade e sem parecerias comerciais) ser atacado de forma tão vil, e apelidado de "página negacionista" por um órgão de comunicação social de um importante grupo empresarial. E ser ainda acusado de propalar alegada informação falsa, ademais omitindo, intencionalmente, elementos essenciais.

8. Como jornalista, a informação que revelei na notícia publicada agora no site do jornal PÁGINA UM é factual e fidedigna, anonimizada, cumprindo os preceitos de interesse público e de reserva da vida privada, cumprindo escrupulosamente o código deontológico dos jornalistas. Ademais, a própria Comissão Nacional de Protecção de Dados já admitiu, na notícia da CNN, que "a informação, embora detalhada do ponto de vista clínico, não parece de per si permitir identificar os titulares dos dados." Aliás, os dados em causa são oficiais, e chegaram-me já anonimizados, podendo (e devendo até) ser divulgados publicamente, por constituírem uma base de dados, cujo acesso é previsto pela Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.

9. A notícia da CNN destaca a opinião de cinco médicos que criticam a divulgação dos dados pelo PÁGINA UM, mesmo se anonimizados, entre os quais um dirigente da Ordem dos Médicos. Saliente-se que o PÁGINA UM está, neste momento, com uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos perante a recusa da Ordem dos Médicos em ceder informação sobre um donativo da farmacêutica Merck no valor de 380.000 euros. O PÁGINA UM tem estado, também, a preparar a publicação de uma investigação sobre o financiamento de mais de seis dezenas de sociedades médicas, sendo que todas o sabem, porquanto foram atempadamente contactadas para esclarecimentos.

10. O PÁGINA UM considera estranho que nenhum outro órgão de comunicação social, nem a Ordem dos Médicos, tenha criticado a Direcção-Geral da Saúde por revelar, na passada semana, dados clínicos sigilosos (situação vacinal) de uma jovem de Braga, esta sim perfeitamente identificada pelo nome, que sofreria de síndrome de Dravet, e que morreu com covid-19. Isso sim foi uma revelação de dados clínicos sigilosos por uma entidade estatal. O PÁGINA UM nunca revelou qualquer nome nem local de residência de crianças internadas em cuidados intensivos.

11. Informo ainda que irei entrar com processos de difamação — crime neste caso agravado por ser cometido através da Imprensa — contra o senhor Henrique Magalhães Claudino, jornalista-estagiário da CNN Portugal, e contra os directores de informação da CNN Portugal, senhores Nuno Santos, Pedro Santos Guerreiro e Frederico Roque de Pinho.

12. Alerto ainda que qualquer órgão de comunicação social e/ou pessoa que divulgue os artigos acima referidos, ou que faça referências difamatórias contra mim e/ou contra o PÁGINA UM — numa tentativa vergonhosa de condicionar a liberdade de imprensa constitucionalmente defendida —, colocando em causa a minha honra e bom nome, poderá vir a ser alvo de similares processos judiciais.

 

Lisboa, 23 de dezembro de 2021

Pedro Almeida Vieira

Diretor do PÁGINA UM

 

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