Não tem Dedicatória, mas é para Ti: cinco histórias sobre amar quem a ditadura proibiu

19 mai, 22:00

INVESTIGAÇÃO "NÃO TEM DEDICATÓRIA, MAS É PARA TI". Este artigo resume a investigação da CNN Portugal que mostra como era vivida a homossexualidade durante o Estado Novo. Com visitas aos arquivos e relatos na primeira pessoa da primeira geração a viver abertamente a velhice fora do armário

1.Jorge e Eduardo: 51 anos é pouco tempo

Há amores daqueles, para a vida, que só a morte é capaz de separar. Foi assim com Jorge Neves e Eduardo Pitta quando os seus olhares se cruzaram pela primeira vez em Moçambique. Eduardo tinha acabado o serviço militar, Jorge – filho de militar – preparava-se para essa etapa da vida. Apaixonaram-se em Moçambique, em plena guerra colonial. E um dos primeiros encontros está bem guardado na memória.

“O Eduardo trazia um papel de seda, muito fininho, que se usava na altura, datilografado. E disse: não tem dedicatória, mas é para ti. E era um poema que ele depois publicou mais tarde no seu livro de poesia”, conta Jorge.

“A nossa relação durou 51 anos. Durou mais do que a ditadura. E só durou esse tempo porque o Eduardo morreu no ano passado”. A relação resistiu à ditadura, aos preconceitos do meio militar. E floresceu depois na liberdade. Jorge nunca falou do relacionamento com Eduardo, mas também nunca o escondeu.

Fotografia de Jorge e Eduardo (DR)

“Ele foi ter comigo. Nunca escondi. Nem ao comandante militar de Nacala, nem a quem tinha de conviver. Saía do quartel para poder estar com ele no hotel. Ele ainda esteve dois meses e pouco lá comigo. Se não houvesse liberdade, fazíamos de conta que havia”, recorda Jorge.

Apesar de uma maior sensação de liberdade nos costumes na antiga colónia, a PIDE não ignorava a homossexualidade. Estava mais concentrada na guerra, na perseguição aos negros, mas não ignorava o amor entre pessoas do mesmo sexo.

É o que prova uma investigação da polícia política, de 1972, ano em que o casal se conheceu, e de que Eduardo também foi alvo. No processo fala-se em “aberrações” e admite-se um “elevado índice de homossexuais no Exército”. A lista de suspeitos tinha mais de 80 nomes. Segundo Jorge, alguns dos nomes mais óbvios nem figuravam no documento.

“Havia um medo, porque as coisas não acabam num dia. Um medo das consequências, daquilo que pode acontecer”. O medo não acaba num dia. Nem o preconceito. Cinquenta anos de liberdade depois, ainda há muito por conquistar. “Quando às vezes vejo rapazes de mão dada, isso ainda se sente. É preciso continuar a lutar”.

Jorge Neves junto ao mural que presta homenagem ao marido (DR)

2.Botto: o poeta que nem Fátima salvou

Havia de ser Eduardo Pitta, marido de Jorge, a recuperar, já em contexto de liberdade, a obra de um dos poetas perseguidos pelo regime: António Botto. O escritor é a prova de que, mesmo entre os homossexuais, havia quem procurasse cair nas boas graças do regime e ganhar a sua proteção.

Antes de referir que Botto dedicou vários sonetos a Salazar, é preciso dizer também que foi o primeiro poeta a admitir a atração por outros homens na sua escrita. Botto procurou, através de pessoas que conhecia, como o banqueiro Ricardo do Espírito Santo Silva, que os escritos chegassem ao ditador.

Em 1947, também desapontado pela forma como a sua obra foi perseguida pelo conservadorismo em Portugal, Botto exila-se no Brasil. Com o passar dos anos, acaba por cair na miséria. Em 1954, pediu para ser repatriado. O regime nunca aceitou. Nem mesmo tendo oferecido, no ano seguinte, ao Cardeal Cerejeira um livro dedicado a Fátima, “Fátima-Poema do Mundo”, onde consta uma nova versão do hino cantado a 13 de maio.

Fotografia de António Botto no Brasil (Arquivo Nacional Torre do Tombo)

3. António: o manifesto que mostrou a revolução incompleta

13 de maio de 1974. O dia que prova que uma revolução nunca se faz num dia. No Diário de Lisboa é publicado o manifesto ‘Liberdade para as Minorias Sexuais’, considerado o momento de arranque desta forma de ativismo em Portugal.

Nele pede-se o fim das “chantagens” e das perseguições”. E sugere-se mesmo uma educação sexual que não discrimine orientações. António Serzedelo é o único dos cinco fundadores desse movimento que ainda está vivo. Inspiraram-se todos em ideias que descobriram no estrangeiro.

“Esperávamos que houvesse uma remodelação das leis. Queríamos que houvesse uma remodelação das leis. Mas não sabíamos ainda qual era a fórmula. Queríamos era que as pessoas não forem presas, perseguidas”, recorda António. Foi preciso esperar oito anos, até 1982, quando a revisão constitucional fez com que a homossexualidade deixasse de ser crime em Portugal.

Excerto do primeiro manifesto gay em Portugal (Hemeroteca Municipal de Lisboa)

Ser homossexual era “errado”, pecado mesmo. Daí que o engate entre homens acabasse por acontecer de uma forma clandestina, embora à vista de todos. “Havia certas zonas de Lisboa onde se sabia que isso podia acontecer. Na Baixa, à noite, ao fim da tarde, com o pretexto de não se ter o isqueiro para o cigarro. Ou com o pretexto de perguntar as horas”. Nas classes mais altas, em cafés como o Monte Carlo, o Monumental ou a Brasileira. Para todos, nas ruas e nos urinóis públicos.

A polícia atuava, em força, nesses lugares de “atos imorais” e “vícios contra a natureza”, como mostram registos de detenção da altura. “Quem tinha dinheiro, dava dinheiro ao polícia que guardava isso. E se estava em cima, passava para baixo. Até cair no esquecimento. Quem não tinha dinheiro estava lixado, ou ia preso ou ia para a Mitra [um asilo para mendigos em Lisboa]”, explica António Serzedelo.

António Serzedelo na varanda de casa (DR)

4. Valentim: e os castigos pelo que era crime - prisões, choques elétricos e lobotomias

Na ditadura, o Código Penal previa o “internamento” dos homossexuais em “casa de trabalho”, “colónia agrícola” ou “manicómio” para quem, como os homossexuais, atentasse “contra a natureza”. Foi o que aconteceu a Valentim de Barros, que viveu quase 50 anos num hospital psiquiátrico, o Miguel Bombarda, em Lisboa. O diagnóstico: psicopatia homossexual.

Mas é preciso recordar o percurso de Valentim até esse primeiro internamento. Era bailarino, profissão que fazia questão de destacar, inclusive nas assinaturas dos quadros que pintou no cativeiro. Teve uma carreira internacional, acabou repatriado da Alemanha. O registo da PIDE refere que falsificou um passaporte para voltar ao estrangeiro. Nesse documento são feitas múltiplas referências à sua homossexualidade.

Registo de Valentim de Barros na PIDE (Arquivo Nacional Torre do Tombo)

Com 22 anos apenas, e depois de uma perícia que lhe diagnosticou esquizofrenia, acabou entregue à família. Contudo, alegados episódios de violência terão levado a mãe a interná-lo no Miguel Bombarda. Com a Revolução dos Cravos, teve ordem de soltura. Mas, cá fora, não havia ninguém que o quisesse acolher.

Valentim passou uma grande parte da vida no Pavilhão de Segurança. Nunca deixou de se dedicar à arte. Nem mesmo depois da lobotomia forçada, uma técnica que se destinava ao tratamento da esquizofrenia, mas sobre a qual também recaíam esperanças na cura da homossexualidade.

Outra das técnicas recorrentes na ditadura eram os choques elétricos. António Serzedelo, que chegou a ter uma namorada com quem queria casar, submeteu-se. “Essa namorada disse-me para não me preocupar, porque havia um médico que trata disso” Nas sessões, eram mostradas imagens de casais. Quando eram homem-mulher, a sensação era suave. Quando eram dois homens, a pessoa “sentia-se francamente maldisposta com os choques que levava”.

Pavilhão de Segurança do Miguel Bombarda (DR)

5. Teresa: a invisibilidade de ser-se mulher

Se os homens gay aproveitavam as ruas para se conhecerem, sujeitando-se à perseguição, o cenário era diferente para as mulheres lésbicas. “O descaramento era ousar não precisar de um homem. Perceberem que uma mulher queria fazer o seu caminho sem precisar de um homem, era uma ofensa ao status quo. Não se usava”, conta Teresa Lacerda.

A ditadura olha para as mulheres como “seres de segunda”, invisíveis. O espaço delas era o lar. E essa visão do regime importa particularmente para contar a história das mulheres lésbicas em Portugal: porque foi aproveitando essa invisibilidade, esse recato do lar, que elas se organizavam, conheciam e apaixonavam.

“Não podermos ser nós próprios, não poder ter um gesto natural em público. Nada. Isso era horrível”. Contudo, hoje, cinquenta anos depois da revolução, há males que ainda custa a cortar pela raiz. Na geração de Teresa, ainda há quem não queira falar sobre ser-se lésbica. “Isso vem de trás, logicamente, porque havia medo. E as pessoas habituaram-se a não falar no assunto. Mesmo nas famílias. As mães apercebiam-se do que as mães do que as filhas sentiam. Mas não falando nisso estava tudo certo”.

Teresa recusou depender de um homem, como a sociedade da altura esperava que ela fizesse. Esta artista foi correr o mundo, recolher objetos que a marcassem, para com eles abrir o seu próprio negócio: uma loja no Bairro Alto. Juntou duas paixões. E, com elas, começou a criar a sua própria liberdade.

Ainda assim, fica o aviso: “Nada é seguro. A repressão pode voltar. Perigosamente”. Cinquenta anos depois, ainda há muito para construir e consolidar.

Teresa adora estar na varanda (DR)

Pode consultar toda a investigação aqui:

Capítulo 1. António tentou os choques elétricos para deixar de ser gay: há 50 anos um manifesto mostrou que a liberdade não nasceu para todos

Capítulo 2: "Durou mais do que a ditadura". Jorge e Eduardo conheceram-se por causa da guerra colonial: amaram-se 51 anos

Capítulo 3: "O descaramento era ousar não precisar de um homem". Teresa correu o mundo para se soltar das amarras da ditadura: ser mulher e lésbica

Capítulo 4: Valentim viveu quase 50 anos num hospital psiquiátrico. Botto morreu no exílio: como a ditadura prendeu a arte dos homossexuais

Artigo-síntese: Não tem Dedicatória, mas é para Ti: cinco histórias sobre amar quem a ditadura proibiu

Versão Televisiva: ‘Não tem dedicatória, mas é para Ti’. Era assim que a ditadura perseguia os homossexuais: com choques elétricos e lobotomias

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