"Durou mais do que a ditadura". Jorge e Eduardo conheceram-se por causa da guerra colonial: amaram-se 51 anos

16 mai 2024, 08:00

INVESTIGAÇÃO "NÃO TEM DEDICATÓRIA, MAS É PARA TI" #2/4. Nas colónias, a sensação era de maior liberdade nos costumes. Ainda assim, a PIDE sabia bem da existência de homossexuais no Exército, que classificava como “aberrações”. Na lista estava Eduardo, o homem por quem Jorge se apaixonou em Moçambique. Este é o segundo capítulo de uma investigação da CNN Portugal que mostra como era vivida a homossexualidade durante o Estado Novo. Com visitas aos arquivos e relatos na primeira pessoa da primeira geração a viver abertamente a velhice fora do armário

“E se tudo, de repente?”. E se o amor acontecesse, assim, de repente? Jorge e Eduardo aconteceram de repente. Em bom rigor, Jorge Neves e Eduardo Pitta conheceram-se ainda antes de os seus olhares se terem cruzado. Havia um amigo comum. “Falava-me muito do Eduardo. Falava-me de uma certa alegria que ele transmitia”.

O momento do primeiro encontro está fresco na memória. “Combinou-se em casa desse tal amigo fazermos uma festa para receber o Eduardo”. Eduardo tinha acabado o serviço militar e, como muitos outros soldados, passava pela capital. “Saímos mais cedo da festa. Assim que tivemos a oportunidade, saímos. Começou ali a nossa vida juntos”.

No encontro seguinte, Eduardo chegou com um papel de seda, muito fino, datilografado. “Disse-me ‘não tem dedicatória, mas é para ti’. O poema é muito bonito”. Chama-se ‘Entre Acácias e Jacarandás’, título roubado ao último verso.

soletrados a compasso
meticulosos
acontecemos por acaso
entre acácias e jacarandás

E nada desta história deveria gerar espanto, não fosse o seu contexto: Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique. Julho de 1972. O início de um ‘de repente’ que durou 51 anos. “Durou mais tempo do que a ditadura. E só durou esse tempo porque o Eduardo morreu no ano passado”.

Fotografias guardadas na casa do casal em Lisboa (DR)

O que pode um livro

Jorge Neves, hoje com 70 anos, é filho de pai militar. Enquanto vivia em Portugal, “na metrópole”, até 1971, os amores foram sempre platónicos. Platónicos e por outros rapazes. Em segredo, como exigia a ditadura. Era errado, era pecado. “Sentia, sim, essa dúvida. Havia uma dúvida no meu espírito”.

A ida para a colónia tornou-se libertadora. “Senti uma liberdade, que vinha do ambiente que se vivia”. Os amores deixaram de ser platónicos, passaram a ser físicos. E havia muitas estratégias para iniciá-los. “Estava no Café Djambu a ler. E houve um homem, mais velho do que eu, que me abordou. Ficámos a conversar sobre o livro e sobre outros livros”.

Jorge junto a um mural de homenagem ao marido, em Alvalade, Lisboa (DR)

O processo: “prática de aberrações homossexuais”

Enquanto Jorge descobria a sua identidade, já Eduardo servia no Exército como soldado. Nessa altura, Eduardo foi alvo de uma investigação da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) devido à sua homossexualidade. O relatório, classificado como ‘secreto’, data de 24 de abril de 1971. Eduardo Pitta só havia de ter acesso ao documento no início do novo milénio, já em Portugal, há muito em liberdade, no Centro de Documentação 25 de Abril.

Detalhe da investigação em que Eduardo Pitta esteve envolvido (Cortesia: Centro de Documentação 25 de Abril)

Nele dá-se conta das suspeitas da “prática de aberrações homossexuais” por parte de elementos das Forças Armadas, admitindo-se mesmo a “existência de elevado índice de homossexuais nos quadros militares”.

Referências no processo a homossexuais no Exército (Cortesia: Centro de Documentação 25 de Abril)

É apresentada uma lista de militares “comprovadamente homossexuais” e outra sobre os quais existiam suspeitas, mas não provas suficientes. Praticamente uma centena de nomes. E, diz agora Jorge Neves, faltavam muitos outros que seriam óbvios.

São anexadas fotografias ao relatório. Eduardo Pitta aparece em várias. Em algumas, vestido de mulher. À frente do seu nome, surge sempre outra referência: Guida. Era o nome feminino, de código, que à época os homens homossexuais utilizavam para não serem apanhados pela polícia política na sua correspondência.

Uma das fotografias, onde é apontado o nome de código de Eduardo Pitta (Cortesia: Centro de Documentação 25 de Abril)

Para a PIDE era claro: havia que “impedir a ação nefasta que a homossexualidade e a droga representavam para a eficiência das Forças Armadas”. Era frequente a associação entre as duas realidades.

“Quando conheci o Eduardo, o processo estava a acabar, mas havia um medo. Porque as coisas não acabam num dia. Havia um medo das consequências, daquilo que podia acontecer”, recorda Jorge.

Don’t ask, don’t tell

Quando Eduardo termina a vida militar, Jorge começa a sua. “A lógica, nesse meio, era ‘don’t ask, don’t tell’ [não se pergunta, não se diz]”. Mesmo quando as evidências estão à vista de todos. “Nunca escondi o Eduardo. Quando fui para Nampula, e depois para Nacala, o Eduardo veio ter comigo. Nunca o escondi, nem ao comandante militar nem às pessoas com quem tinha de conviver. Saía do quartel para poder estar com ele no hotel. Esteve lá comigo dois meses e pouco”.

“As coisas não eram como são hoje. Não se apresentava o marido nem o namorado. Mas o não dito, percebia-se também”.

Jorge admite que a vida nas colónias seria algo mais permissiva, mais “liberal nos costumes” do que na metrópole. “A polícia política, a PIDE, estava mais focada na subversão, na guerra”. Logo, nos negros.

Guerra colonial em Moçambique (David Hume Kennerly/Getty Images)

Havia, no meio da ditadura, uma réstia de liberdade. E eles aproveitaram-na como puderam para alimentarem o amor que tinha nascido. “Se não houvesse liberdade, fazíamos de conta que havia”. Fazer de conta. Até se tornar real.

Jorge Neves conversou com a CNN Portugal na casa do casal (DR)

Uma casa vazia

A casa mergulhada em silêncio desde 25 de julho de 2023. Eduardo morreu. Para trás ficaram as estantes cheias de livros e fotografias que foram tirando um ao outro, a comprovar a passagem do tempo. As pastas repletas de correspondência trocada com amigos. A cadeira, onde tantas horas passou a escrever, está vazia. Eduardo foi responsável pela edição, por exemplo, dos poemas de António Botto – poeta perseguido durante o Estado Novo e cuja história vamos contar-lhe no quarto capítulo.

Jorge nunca se habituará a esta ausência. “E se tudo, de repente?”. Uma das frases mais marcantes dos escritos de Eduardo. Como tudo muda, assim, de repente. Fica uma garantia: “o meu casamento com o Eduardo durou mais do que a ditadura”. Uma história rara, de amor entre dois homens, aqui contada porque, quando o regime caiu, a revolução não chegou para todos.

Só em 1982 é que a Constituição da República Portuguesa descriminalizou a homossexualidade. Só em 2010 o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornou uma realidade no país. Jorge e Eduardo casaram nesse mesmo ano. No papel e perante a lei, porque sempre se sentiram ligados dessa forma.

Registo do casamento entre Eduardo e Jorge em 2010 (DR)

“Em 1978, num trabalho já em Portugal, dirigi-me a um diretor. Sentia que estava a ser mal-enquadrado nas funções. E ele fez-me ver que a minha vida familiar não era adequada. E ainda hoje há preconceito. Quando, às vezes, vejo rapazes de mão dada e vejo olhares... olhares... vejo... enfim... isso ainda se sente”.

“Não podemos ficar parados e sentir-nos confortáveis com o que adquirimos”. Falta muito por cumprir. Jorge faz parte da primeira geração LGBTQIA+ que pode viver a velhice fora das amarras do "armário", afirmando a sua identidade. Mas ainda há muitos que, à custa de uma herança invisível da ditadura, não querem dar a cara.

Jorge insiste que devia ter sido Eduardo a dar a entrevista. A voz treme-lhe, os nervos muitas vezes falam mais alto. Falta-lhe o apoio de sempre. A casa está vazia. “É a parte mais difícil. Tive uma vida feliz com o Eduardo, tive sim”.

A máquina de escrever comprada no Rio de Janeiro, no período em que viveram no Brasil (DR)

O dia da liberdade

“O Eduardo apanhou o último avião, sem saber, a 24 de abril, para Lourenço Marques”. No dia seguinte, Portugal tinha amanhecido em liberdade. Portugal metrópole. Porque, nas colónias, as notícias só chegaram depois.

“A 25 de abril nada se passou, a não ser um rádio que apanhava a frequência da África do Sul. Alguns de nós ouvimos, para tentar perceber. Não havia notícias”, recorda Jorge.

No dia seguinte, sim, os sinais tornaram-se evidentes. “Havia um silêncio, uma tensão na parada. O comandante do batalhão virou as costas antes de iniciar as palavras de ordem. Saiu. Era um sinal de que a autoridade tinha tombado”.

Os tempos que se seguiram foram de dúvida. Em 1975, Jorge regressa a Portugal. Eduardo vem com ele para um país que sempre vira como seu, apesar de ter nascido em Moçambique. “O nosso amor também teve a ver com a liberdade que tivemos. A forma como o vivemos teve a ver com a liberdade que tivemos para fazer. Liberdade porque éramos livres da cabeça. E também porque vivemos em meios que nos foram fáceis”.

'E se tudo, de repente?' é uma das frases mais marcantes da obra de Eduardo Pitta (DR)

Pode consultar toda a investigação aqui:

Capítulo 1. António tentou os choques elétricos para deixar de ser gay: há 50 anos um manifesto mostrou que a liberdade não nasceu para todos

Capítulo 2: "Durou mais do que a ditadura". Jorge e Eduardo conheceram-se por causa da guerra colonial: amaram-se 51 anos

Capítulo 3: "O descaramento era ousar não precisar de um homem". Teresa correu o mundo para se soltar das amarras da ditadura: ser mulher e lésbica

Capítulo 4: Valentim viveu quase 50 anos num hospital psiquiátrico. Botto morreu no exílio: como a ditadura prendeu a arte dos homossexuais

Artigo-síntese: Não tem Dedicatória, mas é para Ti: cinco histórias sobre amar quem a ditadura proibiu

Versão Televisiva: ‘Não tem dedicatória, mas é para Ti’. Era assim que a ditadura perseguia os homossexuais: com choques elétricos e lobotomias

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