INVESTIGAÇÃO "NÃO TEM DEDICATÓRIA, MAS É PARA TI" #4/4. É o reflexo de um tempo, onde a homossexualidade era doença. A ciência tirou partido dos homossexuais internados, como o bailarino Valentim, para testar os limites do próprio cérebro. O regime sabia, aceitava e apoiava essas práticas. Portugal, um país conservador, onde António tentou vergar-se às regras do jogo, mas onde nunca conseguiu a desejada aceitação. Este é o quarto e último capítulo de uma investigação da CNN Portugal que mostra como era vivida a homossexualidade durante o Estado Novo. Com visitas aos arquivos e relatos na primeira pessoa da primeira geração a viver abertamente a velhice fora do armário
Quando se esticam os braços, toma-se consciência de quão pequena era a cela onde Valentim de Barros passou grande parte da sua vida. Uma cama de ferro branco, uma mesa de apoio com os utensílios para as necessidades, uma cadeira. E uma janela, sem margem para escapar, onde a luz praticamente não entra. A única vista é através de um óculo na porta. Dá para o pátio do Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, pensado para uma vigilância permanente dos utentes. Diagnóstico: “psicopatia homossexual e pederastia passiva”. Quase 50 anos de internamento num hospital psiquiátrico.
Valentim sempre foi apaixonado pelo mundo das artes. A mãe, Ana, destacava o jeito para os arranjos da casa e para os trabalhos “femininos”. Rendas e bordados eram algumas das suas especialidades. Durante o internamento no hospital psiquiátrico, era comum vê-lo agarrado à máquina de costura, hoje abandonada numa das celas. Fez inúmeras bonecas de trapos. Era também apaixonado pela pintura: pintou retratos de colegas, paisagens e telões para as festas de Natal que tanto o motivavam.
Contudo, para perceber o percurso de Valentim, é preciso falar de outra arte: a dança. Foi com ela que se tornou, concordam vários investigadores, o primeiro bailarino português com uma carreira internacional. Atuou em Espanha e na Alemanha. Na última, segundo registos do próprio, terá dançado em festas onde Hitler estaria presente.
É também da Alemanha que Valentim de Barros acaba por ser expulso em 1939, aos 22 anos. As circunstâncias para a sua detenção naquele país, segundo os registos da PIDE, não são claras. Valentim havia de contar, numa entrevista, ao Diário de Lisboa em 1968, que a comida que lhe davam “nem para porcos servia”.
O processo segue com muitas outras pistas para perceber o destino deste homem. Valentim de Barros tinha falsificado um passaporte para viajar para o estrangeiro, roubando a identidade a António Gonçalves Monteiro. Na chegada ao Porto, a bordo do vapor S. Miguel, dava “indícios de alienação mental” e apresentava-se “cabisbaixo, de braços cruzados no peito”. Estava “desorientado no espaço e no tempo”, não sabia dizer que dia era. Os agentes da PIDE consideravam ser uma “simulada loucura”.
O processo dá conta ainda de uma mala encontrada no estrangeiro, onde “tinha nela os vestuários necessários ao seu modo de vida”, numa referência à homossexualidade de Valentim.
“Quando o preso souber que estamos no conhecimento da sua odisseia, ou se convencer que vai ser internado num hospital de doidos, donde só sairá para voltar à polícia, talvez se resolva a falar”, lê-se.
Havia de ser submetido a uma avaliação psicológica, sendo-lhe diagnosticada “esquizofrenia”. “O crime de que é acusado foi praticado sob a influência da sua psicose”, “não lhe cabe responsabilidade criminal”, concluiu-se então. Valentim acabou entregue à família, em Lisboa. Três meses depois da detenção.
Uma vida numa cela
O regresso a Lisboa não foi pacífico. Vários episódios de violência levaram a família a internar Valentim de Barros no Miguel Bombarda, um dos hospitais psiquiátricos da capital. Era junho de 1939.
“Cumprimenta-me à entrada, senta-se quando lhe ordeno. Modos afeminados, melífluos, dengosos, denunciantes da sua inversão sexual. Perfeitamente calmo, humor natural. Respostas adaptadas, longas, circunstanciadas, voz afeminada”, podia ler-se no relatório do exame a que foi sujeito.
O percurso de Valentim no hospital psiquiátrico é feito de várias entradas e saídas. Cá fora, repetem-se os episódios de violência. Em 1949, a estada torna-se definitiva. Até à sua morte, a 3 de fevereiro de 1986, com 69 anos.
Com a Revolução dos Cravos, o fim da ditadura tinha permitido que casos como o de Valentim pudessem ter alta. Mas, cá fora, ninguém o queria. Era impossível recomeçar uma vida no ponto em que a dele estava.
Uma lobotomia forçada
Valentim de Barros chegou ao Pavilhão de Segurança em 1951. Nessa ala estavam os criminosos considerados inimputáveis ou doentes extremamente violentos. Tal aconteceu três anos depois de ter sido submetido a uma leucotomia – renomeada depois como lobotomia, a técnica que valeu a Egas Moniz o Nobel da Medicina e que intervinha nas vias do lobo frontal do cérebro. A técnica destinava-se ao tratamento da esquizofrenia. Contudo, a intenção de apagar aquilo que à altura também era doença, a homossexualidade, também estaria presente.
Além da lobotomia, feita à revelia da família, o bailarino foi também sujeito a choques elétricos. As duas técnicas eram muito utilizadas pelo regime, na tentativa de contrariar quadros de esquizofrenia, mas também de homossexualidade.
“O amor heterossexual é atributo geral da nossa espécie, mas a homossexualidade é vício que pertence a todos os graus da escala social”, defendia Egas Moniz no livro “A Vida Sexual”.
A homossexualidade só seria excluída da lista de doenças mentais da Organização Mundial da Saúde em 1990.
Botto, o poeta maldito
A treze de Maio
Na cova da Iria
Do céu aparece
A virgem Maria
Vestida de branco
E manto real
Falou do amor
Do bem e do mal
Provavelmente reconhece estas palavras. Provavelmente ouviu a melodia na sua cabeça. Mas as palavras acima, como as leu, pertencem a um homossexual: o poeta António Botto.
Mesmo entre os homossexuais, sempre houve quem procurasse cair nas boas graças do regime. Botto foi um deles: dedicou vários sonetos a Salazar, louvando os seus feitos e carácter. Como este, de 1938, que está guardado no Arquivo Salazar da Torre do Tombo.
Tanta coisa se diz na biografia
D’esse ministro de alta envergadura
Que tudo o que recorda essa figura
Até encanta a própria fantasia
E lembro um grande gesto na ternura
Da mais límpida e nobre simpatia
Que fica como eterna melodia
Nas almas onde o bem sempre perdura
Foi aquele da esmola a uma criança
Que lhe bateu à porta sem saber
Se recebia o prémio da lembrança…
E não só lhe deu pão e a acarinhou
Como a ensina a ler e a escrever
À mesma luz que a fronte lhe doirou
Neste poema é notório um dos traços de Botto: o estilo popular. Contudo, a sua obra havia de ficar marcada por uma outra característica: foi o primeiro a admitir, sem rodeios ou mensagens codificadas, nos seus escritos, a atração por alguém do mesmo sexo e pelo corpo masculino.
“Canções”, assim se chamava o livro, foi uma das obras na mira da Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, movimento católico conservador criado em 1923, que consegue a censura de livros de poesia homossexual de Botto, Judith Teixeira e Raul Leal – um momento conhecido como “Literatura de Sodoma”, apoiado pelo Governo Civil de Lisboa. Deste movimento faziam parte Pedro Theotónio Pereira e Marcello Caetano – dois nomes fortemente ligados ao Estado Novo, que nasceria anos depois. Fernando Pessoa, um dos amigos próximos de Botto, demonstra publicamente a sua solidariedade.
O conservadorismo nunca permitiu que a carreira de Botto prosperasse como ele desejava. Botto desmoralizava a cada dia que passava com a ostracização a que estava condenado. Na década de 1940, acaba despedido da função pública, por assediar um colega de serviço e recitar versos na hora do expediente. “Agora sou o único homossexual reconhecido em Portugal”, ironizou na reação ao anúncio público da sua saída. Ainda assim, foi registando feitos, como o “Livro das Crianças”, adotado nas escolas irlandesas.
Botto acaba por decidir exilar-se no Brasil em 1947, acompanhado pela mulher, Carminda Rodrigues – sim, apesar da homossexualidade, era comum o casamento 'tradicional'. À festa de despedida em Lisboa, no Teatro São Luiz, que serviu para angariar fundos, foram nomes como Amália Rodrigues, João Villaret, Palmira Bastos, Aquilino Ribeiro. Juntou-se depois um apoio de 40 contos do banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva.
Vivia de direitos de autor e da escrita. Acabou por cair na miséria. Em 1954, requereu na embaixada portuguesa o seu repatriamento. O pedido foi negado. Sem meios para pagar a viagem, Botto entra naquilo a que os académicos designam uma crise de fé. No ano seguinte, publica, com um soneto dedicado ao Cardeal Cerejeira, “Fátima – Poema do Mundo”. Dele consta um poema muito semelhante ao hino de Fátima, uma nova versão do cântico religioso conhecido por todos. Encarado como uma tentativa de agradar ao regime, angariar algum dinheiro e voltar à pátria.
A saúde deteriorou-se. Quase surdo, morreu na sequência de um atropelamento na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1959, aos 61 anos.
Os restos mortais só foram transladados para Portugal seis anos depois, cumprindo a sua última vontade.
A obra de António Botto havia de ser recuperada, já em liberdade, por Eduardo Pitta, um dos protagonistas do segundo capítulo desta reportagem.
Pode consultar toda a investigação aqui:
Artigo-síntese: Não tem Dedicatória, mas é para Ti: cinco histórias sobre amar quem a ditadura proibiu
Versão Televisiva: ‘Não tem dedicatória, mas é para Ti’. Era assim que a ditadura perseguia os homossexuais: com choques elétricos e lobotomias