Deputados gozam de poder especial, tal como os humoristas, e dificilmente podem perder o mandato por insultos no Parlamento

22 mai, 20:00

Conflito entre direitos fundamentais dá aos 230 representantes imunidade. Isso pode ser resolvido, mas nunca no Parlamento

Isabel Moreira diz que lhe chamaram “vaca” ou imitaram o som de mugidos e que deputados homossexuais são alvo de insultos em pleno Parlamento; Romualda Fernandes descreveu um episódio que classificou de racista – disseram-lhe “boa noite” a meio do dia. São comportamentos que deputados socialistas apontam à bancada do Chega e que Isabel Moreira descreveu à CNN Portugal como parte de um “quotidiano infernal, ingerível”.

Embora ainda não tenham sido formalizadas queixas sobre estes comportamentos, que alegadamente vêm da legislatura anterior, o PAN já pediu que declarações do género fiquem escritas em ata. Isto para intervenções em plenário que não são captadas pelos microfones, que estão desligados nesse momento.

É que, caso se ouvissem os tais insultos, isso poderia servir de prova para uma queixa-crime da parte dos visados, sendo essa a única forma de responsabilizar os deputados. O constitucionalista Jorge Pereira da Silva explica à CNN Portugal que, como um humorista ou um jornalista, as funções de deputado trazem questões que fazem com que a atuação dentro da liberdade de expressão possa ser mais ampla.

“No humor é combinável com a liberdade de criação”, diz, falando em direitos fundamentais concomitantes, pelo que um quase que anula o outro. Com os deputados é o mesmo: “A Constituição isenta os deputados de responsabilidade criminal, civil e disciplinar pelos seus votos e opiniões no mandato.”

E é mesmo isso que diz o Estatuto dos Deputados. A questão é perceber qual o tamanho do chapéu da liberdade de expressão, uma vez que há “diferentes comprimentos de onda” e uma “geometria variável” que depois se combina e confunde com outros direitos fundamentais, segundo o especialista.

Mesmo assim, será diferente se houver deputados a insultar outros nos corredores, nas comissões ou mesmo em plenário. Aí é “uma questão criminal”, sublinha Jorge Pereira da Silva, mas que vai sempre depender de quem se sentir ofendido, que terá a única e exclusiva responsabilidade de apresentar queixa-crime.

O mesmo é dizer que não há nada previsto nos regimentos da Assembleia da República que possa punir um deputado pelo que este diz, independentemente do que diz. No máximo haverá uma advertência do Presidente da República ou certas sanções acessórias, como quando o Chega foi proibido de uma deslocação ao estrangeiro após a polémica com o presidente do Brasil, Lula da Silva, nos 49 anos do 25 de Abril.

Mas aí são questões acessórias e da ordem de trabalhos ou de representação da Assembleia da República. Diferente é uma responsabilização crónica ou até uma responsabilização criminal.

De resto, das cinco razões que podem levar à perda do mandato de deputado, apenas duas dizem respeito à atividade parlamentar: a ausência de tomada de posse ou o exceder do número de faltas e a inscrição noutro partido que não aquele em que estava quando foi eleito.

Teria, portanto, de haver uma queixa dos visados para que se abrisse um processo criminal, que depois poderia, no limite, levar ao levantamento da imunidade parlamentar e, posteriormente, em caso de condenação, à perda de mandato.

Como se faz a prova

Inês de Sousa Real pediu o registo em ata talvez a pensar nisso. Um processo de injúria ou difamação de um deputado a outro, mesmo que na Assembleia da República, funciona como qualquer outro.

Há uma queixa e ambas as partes apresentam os seus argumentos e testemunhas, se as houver. Quanto às provas, nenhuma delas pode ser baseada na gravação de áudios ou imagens não consentidas.

O mesmo é dizer que, fora as gravações de plenário que até são transmitidas na AR TV, não há provas a apresentar no Parlamento, nem mesmo gravações feitas nos corredores ou em comissões. “É uma questão básica de privacidade”, refere Jorge Pereira da Silva, lembrando que também é assim com o cidadão comum.

“Ou há prova testemunhal… não podemos andar a gravar à socapa. Vale para o Parlamento e para qualquer sítio”, reforça o constitucionalista, voltando a vincar o regime de excecionalidade conferido ao deputado na prática da liberdade de expressão.

Diferente já será a avaliação de uma afirmação ser, ou não, insultuosa. Jorge Pereira da Silva lembra que “chamar nomes a um deputado não é um ato praticado no exercício da função”, que é o que está consagrado no Estatuto dos Deputados.

“O insulto não é uma forma de liberdade de expressão”, acrescenta, frisando que ser ou não ser um insulto também vai ser sempre algo muito individual. É por isso que André Ventura tem legitimidade para dizer que o apelidam de racista e fascista - disse inclusive que é o deputado mais insultado da Assembleia da República -, porque pode entender isso como um insulto tão grave como chamarem “vaca” a Isabel Moreira. Nesse caso, diz o constitucionalista, pode haver “mais ou menos educação”, mas “não é a lei que vai julgar isso”.

Independentemente das nuances, Jorge Pereira da Silva entende que o presidente da Assembleia da República dificilmente tem margem para agir mais do que aquilo que faz, uma vez que “não se pode colocar na posição de investigar a prática de um crime e aplicar sanções”.

Uma das poucas provas que podem ser utilizadas ou mencionadas pelos deputados está na rede social X. Foi lá que Pedro Frazão, que vai na segunda legislatura como deputado do Chega, sugeriu que Isabel Moreira tinha uma "enorme e dura inveja fálica", na sequência do debate de alegada traição à pátria do Presidente da República.

Não sei se isto é uma enorme e dura inveja fálica da Isabel Lima Mayer Moreira @IsabelLMMoreira… mas o que eu sei é que este discurso faria chorar de muita vergonha tanto o Senhor seu pai Prof. Adriano Moreira, antigo Ministro do Ultramar, como também o seu irmão Nuno, grande… https://t.co/VkbobLbUMO

— Pedro dos Santos Frazão (@Pedro_Frazao_) May 20, 2024

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