Dulce tem 96 anos e fez 'match' com Leonor, de 21, para viverem juntas e fugirem à solidão e aos custos da habitação

16 jun, 08:00
Avó e neta de mãos dadas

Dulce vivia sozinha há 20 anos, Leonor fazia todos os dias a viagem Évora-Lisboa para estudar porque não conseguia arranjar quarto para viver. Juntas são um dos casos de “sucesso” da iniciativa que promove a partilha de alojamento entre seniores e jovens estudantes universitários para combater dois problemas em simultâneo

Dulce Roselhó tem 96 anos e vive sozinha há 20 anos, desde que o marido morreu. Trabalhou até aos 83 anos como gestora de uma empresa familiar. Na altura, reformou-se porque “ainda havia muita coisa que queria fazer” além do trabalho, conta à CNN Portugal. “Queria ouvir muita música, queria ler muitos livros”, recorda. Foi nessa altura que abriu o coração a uma nova paixão: a arte têxtil, apostando em cursos e workshops sobre o ofício e lançando exposições da sua autoria.

“Procurei sempre nunca ter uma vida muito isolada, gostei sempre muito de conviver”, conta. Mas aos 90 anos admite que começou a sentir-se “um bocadinho mais cansada”. “As noites davam-me um sobressalto muito grande”, diz, recordando situações de “pânico” durante a madrugada.

Foi através do filho - que vive a poucos quilómetros e sempre que pode faz uma visita, mas "tem a vida dele", diz - que teve conhecimento da associação Une.Idades, uma das plataformas que integra o programa Partilha Casa promovido pelo MEO e lançado em dezembro passado. Tal como o nome indica, a associação trabalha para “unir duas gerações” na mesma casa - seniores que tenham um quarto a mais em casa e jovens universitários que procuram um quarto para residir enquanto estudam. 

Foi a solução encontrada para resolver dois problemas de uma só vez. É que o preço médio por quarto destinado a estudantes ronda agora os 386 euros, de acordo com o mais recente relatório do Observatório do Alojamento Estudantil, divulgado em maio passado. No total, foram identificados 5.346 quartos disponíveis para estudantes, segundo a análise daquele observatório a mais de 20 plataformas de alojamento privado, designadamente sites imobiliários e de agências do setor. Lisboa é, sem surpresas, a região de Portugal Continental onde os preços dos quartos para estudantes são mais elevados, em comparação com as restantes. Na capital, onde atua a Une.Idades, o preço médio de um quarto destinado a estudantes ronda os 455 euros, variando entre os 700 euros máximos e os 250 euros mínimos, tendo sido identificados 2.2782 quartos disponíveis (sendo também a região com o maior número de quartos disponíveis).

Segundo dados do Observatório da Solidão, divulgados em 2022, 70% dos idosos em Portugal dizem sentir-se sós. Os Censos 2021 revelam que 1.750 milhões de idosos vivem sozinhos em Portugal.

O processo de candidatura decorreu de forma natural, conta Dulce. Depois de preencher um formulário online, recebeu a visita de duas responsáveis da associação que a queriam conhecer melhor, bem como as condições da casa e do quarto. Dulce fez questão de deixar claro que preferia receber uma estudante na sua casa, critério que foi respeitado pela associação. Em pouco tempo, já tinha três candidatas para conhecer. “Mas assim que conheci a primeira disse logo que não queria ver mais ninguém. Estava decidida com a primeira pessoa que me apresentaram”, recorda.

"Ia e vinha todos os dias de Évora para Lisboa durante o primeiro semestre"

A candidata era Leonor Vila-Viçosa, de 21 anos, uma jovem universitária que viajava todos os dias de Évora para Lisboa para estudar num mestrado em Finanças. “[A Leonor] Vinha de manhã [para Lisboa] e ia embora ao fim da tarde. Isso chocou-me imenso”, conta Dulce, admitindo que essa questão “teve influência” na sua escolha.

Natural de Évora, onde concluiu uma licenciatura em Gestão, Leonor conta à CNN Portugal que resolveu continuar o percurso académico especializando-se numa área cujo mestrado só estava disponível em Lisboa. “Sabia que era um mestrado bastante dispendioso - como, aliás, são todos os da minha área - e sabia que os meus pais não conseguiriam pagar as propinas e uma casa em Lisboa”, admite. 

Na altura, Leonor, que ainda para mais trabalhava num restaurante em Évora, arranjou uma solução. “De início ia e vinha todos os dias de Évora para Lisboa. Apanhava o autocarro que partia mais cedo, às 06:00”, recorda. Acabava por chegar à universidade pelas 08:00, mas só depois de apanhar um metro e novamente um autocarro até ao campus. “Foi isto que acabei por fazer durante o primeiro semestre, de setembro a janeiro”, resume, acrescentando que, durante este período, ainda trabalhava em part-time no restaurante.

“Mas chegou a uma altura em que já não dava mais”, desabafa, admitindo que estava muito difícil conciliar os horários de forma sustentável. “Estava a ser cansativo andar para cima e para baixo a toda a hora, estava sempre preocupada se ia chegar a horas nos dias dos exames, ou se ia haver algum acidente com o autocarro… tudo isto causava-me um transtorno enorme ao nível psicológico”, confessa.

Foi então que viu o anúncio sobre o programa Partilha Casa e resolveu candidatar-se ao programa Une.Idades “Pensei que nunca iriam responder-me, mas duas ou três semanas depois recebi uma resposta”, conta. Depois disso, ainda teve de preencher um formulário destinado a perceber os seus gostos, interesses e hábitos do quotidiano, e ainda fez uma entrevista online com as responsáveis daquela associação.

Concluída esta fase, a equipa da associação - que inclui, entre outros especialistas, uma psicóloga - faz uma triagem das candidaturas, traçando os perfis de cada pessoa e, consoante os seus interesses em comum, gostos e hábitos, selecionam possíveis pares com o objetivo de fazer um verdadeiro “match”.

“Fizeram uma ligação muito boa entre mim e a Leonor”, elogia Dulce. Afinal, ambas têm interesse pela área das finanças, dão primazia à família e tiveram logo uma boa primeira impressão uma da outra. “Gostei do ar dela, simples, muito limpo, arranjado, simpática e fiquei agradada porque a mãe dela também veio para eu a conhecer, e eu associei a Leonor a uma família, senti que ela também vivia muito a família”, confessa.

“Achei que ela tinha o perfil certo para poder estar comigo”, resume. E foi assim, logo num primeiro encontro, que Dulce e Leonor fizeram ‘match’ na plataforma. Duas semanas depois, já estavam a viver juntas e Dulce comprovou que fez a escolha certa. “Dou-me muito bem com ela, ela tem muitas qualidades, é muito estudiosa, prepara-se muito bem para os testes, é muito arrumada, tem sempre o quarto muito arrumado”, diz, enumerando outras qualidades que revê agora na nova companheira de casa.

Leonor retribui os elogios: “A dona Dulce é uma pessoa incrível. É completamente à frente do seu tempo em tudo. Ela sempre soube reinventar-se imenso na vida, tem trabalhos de arte muito bonitos. E é muito bom saber que, ao contrário de outras pessoas, que tentam rentabilizar os quartos que têm disponíveis em casa, o objetivo dela nunca foi esse. Foi mesmo ter uma companhia, alguém que a ajudasse no dia-a-dia e com quem pudesse conversar.”

Projeto demarca-se de "plataformas imobiliárias": objetivo é criar "o par ideal" mas há quem não esteja "disposto a isso"

Esta sensibilidade e o espírito de entreajuda entre ambas as partes é o que distingue este programa das demais plataformas de arrendamento de quartos a estudantes. Pelo menos, é assim que Leonor entende o projeto e justifica o sucesso do seu ‘match’ com Dulce: “O estudante que vem para casa de um idoso [no âmbito do Partilha Casa] tem de perceber que não está a alugar um quarto numa casa. Eu não venho comer para o meu quarto, por exemplo. Eu não saio de casa e quando volto enfio-me logo no quarto. Se fosse para isso, a dona Dulce não precisava de mim aqui em casa.”

Mas “nem toda a gente tem essa sensibilidade”, prossegue a estudante, referindo-se não só aos jovens universitários, mas também aos idosos que se candidatam ao programa sem ter o mesmo espírito de abertura e compreensão. “A dona Dulce nunca me impôs nenhum entrave de horários, como ‘tens de chegar a x horas a casa’, mas há que ter bom senso, tenho de perceber que eu é que estou em casa dela. E há jovens que não estão dispostos a isto”, argumenta.

É isso mesmo que explica António Rodrigues, da direção de Marca e Comunicação do MEO, empresa que criou o programa Partilha Casa e atua como “agregador” e promotor das diferentes associações que nele desejam participar, através do site oficial criado com essa finalidade. “Este é um projeto totalmente estruturado numa perspetiva de impacto social, ou seja, não estamos a falar de uma plataforma transacional entre a disponibilidade de quartos ou casas e a procura pelos mesmos”, começa por explicar à CNN Portugal o responsável, demarcando-se assim da ideia de que o programa atua como se de “um Idealista ou qualquer outra plataforma imobiliária” se tratasse.

“Estamos a falar de uma partilha de habitação que é feita não de uma perspetiva transacional, até porque os valores envolvidos tipicamente são muito reduzidos, mas sim de pessoas que se vão conhecer, mediante um processo prévio de perfilagem e de conhecimento, até que se faça o tal ‘match’. É quase como um namoro”, compara o responsável, entre risos, ilustrando assim o “cuidado” das associações ao longo de todo o processo para garantir que as duas partes formam mesmo “o par ideal” para conviver uma com a outra.

O dia a dia de Leonor é bastante corrido, ocupado pelo frenesim da universidade, pelo que geralmente só costumam estar juntas da parte da tarde. “Jantamos sempre à mesma hora. Conversamos, o ambiente é bom, ela está sempre pronta a ajudar-me”, relata Dulce, que conta que está agora a fazer um curso de Informática para o qual muito tem ajudado a nova companheira de casa.

Além disso, Leonor costuma acompanhar Dulce noutras atividades de lazer, como idas ao cabeleireiro ou aos centros comerciais para fazer compras. De resto, Dulce “é bastante independente”, descreve Leonor, que admite que acaba por ser Dulce quem a ajuda “muito mais” a ela do que ao contrário. “Acabei por ganhar muito carinho, muita admiração e muito respeito pela história de vida dela. O 'match' que a Une.Idades fez foi muito bem feito. É mesmo uma situação win-win” para ambas, salienta.

Dulce e Leonor vivem assim há três meses e têm outros três pela frente, até que o contrato celebrado entre as partes chegue ao fim. Mas ambas estão confiantes de que não ficarão por aqui, até porque se trata de um contrato renovável automaticamente. "É até quando ela quiser e precisar e até quando eu também quiser e estivermos de boas relações", estima Dulce, gracejando.

Tanto uma como outra não desvendam mais detalhes sobre o contrato, até por uma questão de sigilo. "Sei que há idosos que se inscrevem para rentabilizar o quarto [que têm disponível], outros querem companhia e aceitam apenas compartilhar despesas. Mas mesmo aqueles que querem rentabilizar o quarto, sei que os preços [que praticam] são sempre abaixo do preço de mercado, o que acaba por ser vantajoso", indica Leonor.

Plataforma já criou "dezenas" de 'matches' entre jovens e idosos - e promete novidades

Desde o seu lançamento, em dezembro, o programa Partilha Casa já juntou “dezenas” de pares entre as “mais de 1.000 candidaturas” que recebeu desde então. Só a Une.Idades, uma das associações envolvidas no projeto, que atua na região de Lisboa, já ajudou a criar dez ‘matches’ entre seniores e jovens estudantes universitários deslocados.

Na altura do lançamento do programa, Inês Schmidt, fundadora do Une.Idades, tinha estabelecido como objetivo chegar a setembro deste ano com 100 matches - uma meta que, admite agora, poderá ser difícil de alcançar, mas não impossível. “Não sei se chegaremos [aos 100 'matches']”, confessa à CNN Portugal, lembrando que o processo depende de um conjunto de questões, desde logo da garantia de que há efetivamente seniores interessados em abrir as suas casas a jovens universitários.

“No caso dos seniores, muitas vezes ligamos aos candidatos e [percebemos] que não estão aptos para o programa por variadíssimas razões - ou porque não querem para já, ou porque foi o filho que inscreveu e a pessoa não quer, ou porque a casa ainda tem de ser arranjada, ou porque afinal não moram em Lisboa, há muitas pessoas que se inscrevem por engano e não cumprem os requisitos, ou não estão ainda totalmente interessadas”, enumera. 

Já do lado dos estudantes, a procura é efetivamente maior mas, assim que são contactados para preencher “um formulário muito extenso”, de modo a que as associações os possam “conhecer melhor” e fazer eventualmente um ‘match’, “há muitos que não chegam a preencher o formulário”, ficando a sua candidatura por ali.

Ainda assim, Inês Schmidt mostra-se confiante com a aproximação de um novo ano letivo, que começa já em setembro, para estabelecer mais ‘matches’ entre gerações, mantendo que os 100 pares seriam “o número ideal” a atingir.

Salientando que o balanço dos últimos seis meses é “bastante positivo”, os responsáveis do MEO e da Une.Idades já olham em frente para o próximo ano letivo.

Do lado da empresa de telecomunicações, há dois objetivos traçados, um para curto prazo e outro de longo prazo, sendo que este projeto foi desenhado para vigorar “no mínimo três anos ou mais”, indica António Rodrigues. Para o próximo ano letivo, o MEO tem como objetivo chegar a mais três distritos - sem revelar quais, embora o Porto seja um deles, tendo em conta que o distrito já está incluído no mapa da atuação do projeto desde o seu lançamento - aumentando assim a amplitude geográfica da linha de atuação do programa. 

Mais a longo prazo, o responsável traça outro objetivo, mais ambicioso: “Porque não cobrir todos os distritos onde existem pólos universitários?”, equaciona, argumentando que nestas zonas “naturalmente existirão seniores” que, tal como em Lisboa e Coimbra, também vivem sozinhos e se sentem sós, pelo que também ali a linha de atuação do Partilha Casa poderia fazer a diferença no combate à solidão dos idosos.

Relacionados

País

Mais País

Patrocinados