Há mais de 500 milhões de anos, surgiram na Terra criaturas estranhas e complexas. Agora, os cientistas acreditam ter descoberto porquê

CNN , Katie Hunt
22 jun, 15:00
Ilustração das criaturas que existiam no fundo do mar durante o período Ediacarano, quando começou a surgir vida complexa na Terra (Michael Osadciw/Universidade de Rochester)

O campo magnético da Terra desempenha um papel-chave em tornar o nosso planeta habitável. A bolha protetora sobre a atmosfera protege o planeta da radiação solar, ventos, raios cósmicos e grandes oscilações de temperatura.

Contudo, há 591 milhões de anos o campo magnético da Terra quase colapsou e esta mudança, paradoxalmente, poderá ter desempenhado um papel crucial no surgimento de vida complexa, apurou uma nova investigação.

“No geral, o campo é protetor. Se não tivéssemos este campo bem cedo na história da Terra a água teria desaparecido do planeta graças ao vento solar [uma corrente de partículas energizadas que fluem do sol em direção à Terra]”, diz John Tarduno, professor de geofísica na Universidade de Rochester, em Nova Iorque, e um dos principais autores do novo estudo.

“Contudo, no Ediacarano, tivemos um período fascinante de desenvolvimento da Terra profunda em que os processos que criam o campo magnético se tornaram tão ineficientes após milhares de milhões de anos que o campo colapsou quase completamente.”

O estudo, publicado na revista especializada Communications Earth & Environment a 2 de maio, apurou que o campo magnético da Terra, que foi criado pela movimentação do ferro fundido no núcleo externo da Terra, foi significativamente mais fraco do que hoje durante um período de pelo menos 26 milhões de anos. A descoberta do enfraquecimento sustentado do campo magnético da Terra também ajudou a resolver um mistério geológico de longa data sobre como é que o núcleo interno sólido da Terra se formou.

Este período coincide com um período conhecido como Ediacarano, quando os primeiros animais complexos surgiram no fundo do mar à medida que a percentagem de oxigénio na atmosfera e no oceano foi aumentando.

Estes animais estranhos tinham poucas semelhanças com a vida atual – leques moles, tubos e donuts, e discos como a Dickinsonia, que crescia até 1,4 metros de altura, e a Kimberella, uma criatura parecida com uma lesma.

Antes desse período, a vida era em grande parte unicelular e microscópica. Os investigadores acreditam que um campo magnético fraco pode ter levado a um aumento do oxigénio na atmosfera, permitindo a evolução de vida complexa primordial.

Imagem mostra o molde de um fóssil com 560 milhões de anos de uma costata Dickinsonia encontrado no sul da Austrália. Com mais de um metro de comprimento, a criatura é o maior animal conhecido daquele período. (Shuhai Xiao/Virginia Tech)

Desvendar o quase colapso do campo magnético

A intensidade do campo magnético da Terra é conhecida por flutuar ao longo do tempo, e os cristais preservados nas rochas contêm minúsculas partículas magnéticas que guardam um registo da intensidade do campo magnético da Terra.

A primeira prova de que o campo magnético da Terra enfraqueceu significativamente durante este período surgiu em 2019, num estudo de rochas com 565 milhões de anos no Quebeque, que sugeria que à data o campo era 10 vezes mais fraco do que hoje.

O mais recente estudo reuniu mais evidências geológicas que indicam que o campo magnético enfraqueceu dramaticamente, com informações contidas em rochas com 591 milhões de anos recolhidas de um local no sul do Brasil, sugerindo que o campo era 30 vezes mais fraco do que hoje.

O campo magnético nem sempre foi fraco: a equipa examinou rochas semelhantes da África do Sul que datam de há mais de 2 mil milhões de anos e descobriu que, naquela altura, o campo magnético da Terra era tão forte como é hoje.

Ao contrário de agora, explica Tarduno, naquela época a parte mais interna da Terra era líquida, não sólida, influenciando a forma como o campo magnético era gerado.

“Ao longo de milhares de milhões de anos, esse processo foi-se tornando cada vez menos eficiente”, diz.

“E quando chegamos ao Ediacarano, o campo está no limite. Está quase a desmoronar-se. Mas então, felizmente para nós, arrefeceu o suficiente para que se começasse a gerar o núcleo interno [fortalecendo o campo magnético].”

O surgimento da primeira vida complexa que teria flutuado ao longo do fundo do mar nesta época está associado a um aumento dos níveis de oxigénio. Alguns animais podem sobreviver com baixos níveis de oxigénio, como esponjas e animais microscópicos, mas animais maiores, com corpos mais complexos e que se movem, precisam de mais oxigénio, indica Tarduno.

Tradicionalmente, o aumento do oxigénio durante este período tem sido atribuído a organismos fotossintéticos como as cianobactérias, que produzem oxigénio, permitindo-lhes acumular-se na água de forma constante ao longo do tempo, explica o co-autor do estudo Shuhai Xiao, professor de geobiologia na Virginia Tech.

No entanto, a nova investigação sugere uma hipótese alternativa, ou complementar, envolvendo um aumento da perda de hidrogénio para o espaço quando o campo geomagnético era fraco.

“A magnetosfera protege a Terra do vento solar, prendendo assim a atmosfera à Terra. Assim, uma magnetosfera mais fraca significa que gases mais leves, como o hidrogénio, seriam perdidos da atmosfera da Terra”, acrescenta Xiao por e-mail.

Tarduno diz que vários processos poderão ter ocorrido ao mesmo tempo.

“Não contestamos que um ou mais desses processos estivessem a acontecer simultaneamente. Mas o campo fraco pode ter permitido que a oxigenação ultrapassasse um limite, auxiliando a radiação animal [evolução]”, diz Tarduno.

Peter Driscoll, cientista do Laboratório de Terra e Planetas do Carnegie Institution for Science em Washington D.C. – que não esteve envolvido no estudo – diz concordar com as descobertas do estudo sobre a fraqueza do campo magnético da Terra, mas adianta que a alegação de que o campo magnético fraco poderia ter afetado o oxigénio atmosférico e a evolução biológica é difícil de avaliar.

“É difícil para mim avaliar a veracidade desta afirmação porque a influência que os campos magnéticos planetários podem ter no clima não é muito bem compreendida”, diz por e-mail.

Tarduno adianta que a sua hipótese é “sólida”, mas que provar uma ligação causal pode levar décadas de trabalho desafiante, dado o quão pouco se sabe sobre os animais que viveram nesta época.

Um fóssil com 565 milgões de anos de um animal do Ediacarano, chamado misrai Fractofusus, foi encontrado na formação Mistaken Point em Newfoundland, no Canadá. (Shuhai Xiao/Virginia Tech)

Mistério do núcleo interno

A análise geológica também forneceu detalhes reveladores sobre a parte mais interna do centro da Terra.

As estimativas sobre quando o núcleo interno do planeta pode ter-se solidificado – quando o ferro se cristalizou pela primeira vez no centro do planeta – variam entre 500 milhões e 2,5 mil milhões de anos atrás.

A investigação sobre a intensidade do campo magnético da Terra sugere que a idade do núcleo interno da Terra está no extremo mais jovem dessa escala de tempo, solidificando-se após 565 milhões de anos e permitindo que o escudo magnético da Terra recuperasse.

“As observações parecem apoiar a afirmação de que o núcleo interno se formou pela primeira vez pouco depois deste período, empurrando o geodínamo [o mecanismo que cria o campo magnético] de um estado fraco e instável para um campo dipolar forte e estável”, diz Driscoll.

Tarduno adianta que a recuperação da força do campo após o Ediacarano, com o crescimento do núcleo interno, foi provavelmente importante para evitar a secagem da Terra rica em água.

Quanto aos animais bizarros do Ediacarano, todos desapareceram no Período Cambriano seguinte, quando a diversidade da vida explodiu e os ramos da árvore da vida que hoje nos é familiar se formaram num tempo relativamente curto.

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