Queda de Avdiivka, falta de soldados e cada vez menos munições: Ucrânia atravessa "o momento mais difícil da guerra"

4 mar, 07:00
Soldados ucranianos à porta de um abrigo, no interior da cidade de Bakhmut, no final de março (Getty Images)

Falta de linhas defensivas sólidas, soldados exaustos e sem rotação e um exército cada vez mais limitado está a criar uma mistura explosiva que pode ter consequências catastróficas para a Ucrânia

Foi o bastião da defesa ucraniana no Donbass, desde que a guerra começou, em 2014. Avdiivka tinha sido preparada com uma complexa rede de fortificações que permitia aos seus defensores aguentar algumas das mais intensas ofensivas russas. Mas, depois de meses de intensos combates, a pequena cidade industrial caiu e as forças russas estão a avançar a uma velocidade que preocupa os comandantes ucranianos. Ao mesmo tempo, a indecisão política nos Estados Unidos e na União Europeia, bem como a falta de soldados e munições, leva os especialistas a alertar que este é mesmo o momento mais complexo da guerra para Kiev.

“Este é de longe o momento mais difícil da guerra, logo a seguir ao choque inicial, quando duvidámos de que a Ucrânia fosse capaz de aguentar o impacto inicial das forças russas. Há falta de munições e os soldados estão exaustos. Há muito que deviam ter terminado a sua presença na frente”, explica o professor José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais.

Corria o dia 17 de fevereiro, quando o recém-nomeado comandante-chefe das forças armadas ucranianas, o general Oleksandr Syrski, anunciou que tinha dado ordem aos soldados que defendiam Avdiivka para recuar para “linhas de defesa mais favoráveis” para evitar ficarem cercados no interior da cidade. Desde então, as forças ucranianas têm demonstrado alguma incapacidade em travar os avanços russos nas novas posições. Apenas nos últimos dias, o exército russo foi capaz de capturar as localidades de Sjeverno, Lastochkyne e Stepove. Atualmente, Orlivka e Berdychi estão a ser palco de violentos combates.

Um oficial ucraniano na reserva dá conta de que, no terreno, existem “notáveis deficiências” no que toca à existência de fortificações de betão ou de madeira, por parte das forças de Kiev. Em muitos casos, garante o militar, a construção destas posições defensivas é ordenada a unidades que estão ativamente envolvidas em combate. Ao contrário do que aconteceu com os russos no verão, os ucranianos não construíram as suas “linhas Surovikin”, com várias camadas de trincheiras. Para resolver este problema é necessário um esforço conjunto entre civis e militares.

“Ao contrário dos russos, que defendem em linha, nós no Ocidente defendemos em posições defensivas. E é isso que a Ucrânia tem tentado fazer, tem utilizado as povoações como estruturas defensivas. No entanto, os russos têm conseguido ultrapassar estas defesas porque têm utilizado uma arma que permite desequilibrar completamente as defesas ucranianas”, explica o major-general Agostinho Costa.

Ruínas de uma estátua de homenagem aos soldados soviéticos em Avdiivka (Kostya Liberov / Libkos via Getty Images)

As armas em causa são as bombas FAB-1500, lançadas pelos bombardeiros Su-34. Uma bomba com 1.500 quilos de explosivos equipada com um kit GPS e asas que permitem à munição atingir alvos com precisão. A explosão destas munições é de tal forma potente que tem sido utilizada pelas forças russas para destruir bunkers. Só que, nas últimas semanas, a frequência com que têm sido empregues tem vindo a aumentar significativamente, com a força aérea russa a conduzir dezenas de missões por dia na região.

Pela primeira vez, desde que começou a invasão russa, Moscovo tem destacado a sua força aérea em números significativos. No entanto, isso expõe as aeronaves russas a uma maior taxa de atrição. De acordo com o Ministério da Defesa da Ucrânia, apenas no mês de fevereiro 13 aeronaves russas foram destruídas em combate. Entre as aeronaves alegadamente abatidas estão 10 caças-bombardeiros Su-34, dois caças Su-35 e um Beriev A-50 equipado com radares de longo alcance.

“O grande desafio para os ucranianos é anular a vantagem aérea russa. Estamos a assistir àquilo que nunca verificámos ao longo destes dois anos, que foi a chegada à frente dos Su-34. Isto só está a acontecer porque os ucranianos estão com muita falta de mísseis antiaéreos e os russos têm tentado atingir as defesas antiaéreas ucranianas”, explica o major-general Agostinho Costa.

O próprio presidente ucraniano afirmou que a falta de capacidades de defesa aérea junto à linha da frente está a fazer com que os russos adquiram a vantagem em várias partes da linha da frente. Mas as carências ucranianas vão muito além dos mísseis antiaéreos. Munições de todos os calibres têm de ser racionadas e utilizadas criteriosamente por parte da infantaria ucraniana. “Estamos a assistir a um esgotamento e desmilitarização das capacidades ocidentais. A capacidade de produção ocidental é manifestamente insuficiente”, sublinha Agostinho Costa.

Um blindado de fabrico americano Bradley nos arredores de Avdiivka, na região de Donetsk (Vitalii Nosach/Global Images Ukraine via Getty Images)

Parte do problema é político. A União Europeia ainda não conseguiu entregar metade do milhão de munições que prometeu há mais de um ano e os Estados Unidos da América continuam presos numa luta política que tem travado a aprovação de um pacote de apoio à Ucrânia no valor de 61 mil milhões de dólares, desde dezembro. O líder da diplomacia europeia, Josep Borrell, admitiu este mês que parte do problema não é só a incapacidade da indústria militar europeia, mas sim o facto de parte do armamento produzido na Europa continuar a ser exportado para outros países.

Apesar de a produção militar ocidental ter aumentado cerca de 40% desde que começou a guerra, Borrell diz que, no final deste ano, o bloco deve atingir uma produção de 1,4 milhões de munições de 155 mm por ano. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos esperam chegar ao 1,2 milhões de munições por ano em 2024. Um número muito abaixo das necessidades ucranianas no terreno e que pode chegar tarde demais.

“O apoio ocidental tem chegado sempre atrasado, apesar de haver quase consenso. Temos de perceber que as palavras e promessas não ganham guerras. O que ganha guerra é o apoio em termos militares”, garante José Filipe Pinto.

Outro dos principais problemas da Ucrânia é o número de soldados. A guerra não para e batalhas como as de Avdiivka são lições caras para o exército ucraniano. Durante muitos meses, a Ucrânia escondeu o número de militares mortos. Recentemente, Zelensky admitiu que 31 mil perderam a vida, desde 24 de fevereiro de 2022. No entanto, o líder não quis confirmar o número de feridos para não ajudar o planeamento militar russo, mas o número é significativo.

O tema da falta de soldados não é novo para a Ucrânia. No passado, o então líder das forças armadas ucranianas, Valerii Zaluzhnyi, e o chefe dos serviços de informações militares, Kyrylo Budanov, alertaram para a necessidade de recrutar meio milhão de novo soldados. Mas o assunto é politicamente controverso no país. No dia 17 de fevereiro, várias associações de comércio fizeram chegar ao parlamento um pedido para reformar a lei da mobilização, para que não aconteça uma paralisação total da economia. “É necessário um equilíbrio entre a frente militar e a economia”, apelam as organizações.

“É um equilíbrio difícil, mas a mobilização vai acabar por acontecer. A Ucrânia padece das mesmas virtudes e defeitos das democracias ocidentais. Este tipo de legislação tem de ser amplamente debatido no parlamento, não é como na Rússia, que Putin quer, pode e manda”, relembra o major-general Isidro de Morais Pereira.

Soldado ucraniano observa o pôr do sol na vila de Karlivka, nos arredores de Avdiivka (Narciso Contreras/Anadolu via Getty Images)

Neste campo, a Rússia tem uma larga vantagem face à Ucrânia. De acordo com um estudo publicado pela organização Meduza, que analisou os dados do registo de heranças na Rússia, o número de militares russos mortos na Ucrânia é de 83 mil militares. Este valor indica que Moscovo está a perder 3.900 soldados por mês, um número de vidas que Vladimir Putin demonstra estar confortável a perder. O blogger militar russo Andrei Morozov alega que, só na batalha de Avdiivka, o exército russo perdeu 16 mil soldados. Além disso, mais de 600 veículos blindados foram destruídos em mais de quatro meses de combates nesta cidade.

Depois de dois anos da invasão russa de larga escala, o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla inglesa) diz que a situação na Ucrânia é "grave, mas está longe da desesperança". Os avanços russos no leste ucraniano têm tido um elevado custo, adianta o ISW. "Mais soldados russos terão provavelmente morrido na captura de Avdiivka do que em toda a guerra União Soviética-Afeganistão."

"A Ucrânia não perdeu e não há razão para a Ucrânia perder [a guerra]. Os russos estão a adaptar-se para um esforço de guerra longa na Ucrânia, mas não correspondem às hordas do Exército Vermelho envoltas em bandeiras de triunfo na II Guerra Mundial como Putin e os seus propagandistas fingem que são."

Para os especialistas, isso pode indicar que Vladimir Putin está disposto a aproveitar este momento de fraqueza da Ucrânia, que pode vir a ser mortífero no campo de batalha. “Este é o momento mais difícil da guerra para a Ucrânia. Se não forem tomadas medidas, pode vir a acontecer uma catástrofe”, frisa Isidro de Morais Pereira.

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