"Chantagem nuclear" russa está a levar o mundo para uma nova corrida ao armamento

23 mai, 07:00

A explosiva combinação da queda de acordos de não-proliferação com a guerra na Ucrânia e a rápida expansão do programa nuclear chinês está a precipitar o mundo para uma nova corrida ao armamento

A incapacidade russa de atingir os seus objetivos militares na Ucrânia levou a um escalar da retórica nuclear. Os especialistas são claros e garantem que o objetivo do Kremlin é criar medo entre a opinião pública ocidental para travar o envio de apoio militar para Kiev. Tudo isto sob o olhar atento de algumas das maiores autocracias do mundo, que estão a tirar notas. Se a estratégia funcionar, os peritos não têm dúvidas de que será replicada no futuro para ajudar a cimentar conquistas territoriais e precipitar o mundo numa nova corrida ao armamento nuclear.

“A Rússia quer aumentar a perceção de que uma guerra nuclear é mais provável e que, ao ajudar a Ucrânia, os países ocidentais estão a aumentar ainda mais a probabilidade de uma guerra nuclear. Se os países ocidentais o permitirem, e a Rússia for bem-sucedida na sua estratégia, a chantagem nuclear vai ser normalizada como ferramenta diplomática e outros quererão fazer o mesmo”, alerta John Erath, diretor de políticas do Center for Arms Control and Non-Proliferation, em entrevista à CNN Portugal.

O presidente russo, Vladimir Putin, tem feito um esforço ativo ao longo dos últimos dois anos para garantir que a ameaça nuclear é um conceito que permanece na agenda mediática ocidental. Nos seus discursos, o líder russo insiste que a Rússia “está pronta” para uma guerra nuclear, mostra a movimentação de ogivas nucleares e anuncia exercícios com bombas nucleares táticas. Ao mesmo tempo, o Kremlin destaca várias armas nucleares táticas no território da Bielorrússia, uma decisão marcou a primeira vez que o Kremlin enviou armas nucleares para o estrangeiro desde a queda da União Soviética.

Mas a probabilidade de este armamento ser utilizado no campo de batalha ucraniano é baixa, uma vez que o seu uso teria pouco valor do ponto de vista militar. A frente de batalha na Ucrânia tem mais de mil quilómetros de extensão e os alvos militares estão quase todos bastante dispersos, o que faz com que a utilização de uma destas armas acabe por ter pouco impacto em travar a capacidade de lutar do outro lado. Por isso, os especialistas defendem que estas armas são mais úteis enquanto instrumento diplomático do Kremlin, para que os países que apoiam a Ucrânia parem de o fazer com receio de escalar a guerra para o patamar nuclear. Este cenário permitiria à Rússia atingir o objetivo de solidificar as suas conquistas territoriais.

“A Rússia está a tentar aumentar a perceção psicológica do perigo de uma guerra nuclear. E ao aproximar da Europa, mesmo que seja um pequeno número das suas armas, está a aproveitar-se dessa psicologia. Se os países da NATO cederem e deixarem de enviar ajuda à Ucrânia, isso provavelmente terminará no reconhecimento do controlo russo sobre partes significativas do território ucraniano”, reforça John Erath, que fez parte do Conselho de Segurança norte-americano, entre 2018 e 2020.

E o olhar atento dos líderes de algumas das principais ditaduras leva os peritos a temer que uma nova corrida ao armamento nuclear esteja apenas ao virar da esquina. E nenhum caso preocupa tanto como o da China. Ao contrário de países como os Estados Unidos ou a Rússia, que estão a modernizar os seus atuais stocks, Pequim está numa trajetória acelerada de construção de novas armas. De acordo com um relatório da Federação de Cientistas Americanos (FAS), a expansão do arsenal nuclear chinês é a maior e mais rápida de todos os nove países que têm este tipo de armamento. A FAS estima que Pequim tem aproximadamente 500 ogivas nucleares disponíveis, capazes de ser disparadas através da tríade nuclear terra, ar e mar.

Nada indica que o Exército de Libertação Popular chinês esteja prestes a abrandar o ritmo do seu programa nuclear. Um documento do Pentágono de 2023 sugere que o objetivo chinês é ter um arsenal de mil bombas nucleares “com elevado nível de prontidão” até 2030. Ao mesmo tempo, imagens de satélite revelam que Pequim está a acelerar a construção de silos de mísseis interbalísticos, capazes de transportar armas nucleares, na região ocidental e do centro-norte da China. Os oficiais norte-americanos responsáveis pelas forças nucleares adjetivaram o esforço nuclear chinês como sendo “de cortar a respiração”.

“A China seguiu, durante muitos anos, a política de Deng Xiaoping, de passar despercebido e fazer o seu caminho. Mas Xi Jinping percebeu que de nada vale invocar um lugar na arena internacional se não dispuser de capacidade para se impor. A China mergulhou de forma quase desalmada na globalização e percebeu que o elemento bélico é fundamental”, afirma José Filipe Pinto, professor especialista em Relações Internacionais.

O que preocupa as autoridades é o facto de não existir qualquer justificação pública do regime chinês para explicar o aumento acelerado do número de ogivas nucleares. Para John Erath, o início desse esforço está diretamente ligado às lições tiradas por Xi Jinping da ocupação russa da Crimeia, em 2014. Nessa altura, o Ocidente recusou reagir de forma mais assertiva com o receio de “provocar uma guerra nuclear”. A ausência de ação ocidental levou a que Putin conseguisse, de facto, conquistar e governar a península sem repercussões. Para Xi Jinping, as armas nucleares passaram a ser uma receita para impedir o envolvimento ocidental num possível ataque a Taiwan, a ilha que Pequim diz pertencer à China.

“A China começou a desenvolver e a modernizar o seu sistema nuclear há cerca de dez anos. Nessa altura, quando se falava de travar a ambição russa na Crimeia, sublinhava-se que era preciso ter cuidado porque a Rússia tem armas nucleares e não queremos provocar uma guerra nuclear. Penso que a China poderá ter prestado atenção a este facto”, explica o especialista.

Barril de pólvora prestes a explodir

Ao mesmo tempo que as principais potências nucleares do mundo, Estados Unidos e Rússia, continuam a modernizar as suas ogivas nucleares, outros países estão ativamente a procurar desenvolver o seu próprio programa nuclear. O caso mais grave é o do Irão. De acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica, o regime iraniano já é capaz de enriquecer urânio até 60% de pureza e já tem material suficiente para produzir duas armas nucleares, podendo fazê-lo em poucos dias ou semanas, caso assim entenda.

A situação tornou-se ainda mais complexa depois do ataque do Hamas a Israel no dia 7 de outubro, que desencadeou um conflito regional que não tem fim à vista. Kamal Kharrazi, conselheiro do líder supremo iraniano, disse que o país poderia rever a sua “doutrina nuclear” caso Israel continuasse a “ameaçar” o Irão, revertendo a proibição do desenvolvimento de armas nucleares imposta por Ali Khamanei no início dos anos 2000. Esta possibilidade levou o líder saudita, Mohammed bin Salman, a reafirmar que se o Irão obter “uma” bomba a Arábia Saudita fará o mesmo, multiplicando o número de potências nucleares.

“Enfrentamos um risco acrescido de proliferação nuclear a nível mundial. Este risco manifesta-se em duas tendências principais: a proliferação vertical entre as potências nucleares existentes, que estão a modernizar constantemente os seus arsenais, e o interesse acrescido na proliferação horizontal entre os Estados não nucleares, exemplificado nomeadamente pelo Irão”, argumenta Doreen Horschig, investigadora da área do nuclear do think thank Center for Strategic and Internacional Studies (CSIS).

Na península da Coreia, um cenário semelhante tem vindo a desenvolver-se ao longo dos últimos anos. O desenvolvimento de armas nucleares por parte do regime de Kim Jong-un está a preocupar Seul. Uma sondagem publicada recentemente demonstra que 72,8% dos sul-coreanos apoiam o desenvolvimento de armas nucleares como forma de dissuasão, embora o presidente tenha afastado essa ideia “para já”. Apesar de os EUA terem retirado as armas nucleares da península há mais de 30 anos, Washington mantém um acordo com o executivo sul-coreano que lhe garante essa proteção.

Para os especialistas, o aumento do número de Estados nucleares só é contido devido ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), assinado em 1968, e que conta com a adesão de 189 países. Mas a queda do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF) e a incerteza em torno do Novo Tratado START estão a corroer a confiança entre os principais países, numa altura em que o ambiente geopolítico é cada vez mais fragmentado.

“É crucial que tanto os Estados nucleares como os não nucleares se envolvam mais extensivamente uns com os outros para compreenderem as preocupações de segurança subjacentes que estão a impulsionar estes desenvolvimentos”, sublinha Horschig, que insiste que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas têm de “demonstrar liderança” e empenharem-se num esforço de redução nuclear.

Mas a tendência não é animadora. Um após outro, vários tratados que asseguram a estabilidade no continente europeu têm vindo a cair. O caso mais recente é do Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa, que estabelecia limites iguais para o número de tanques, veículos blindados de combate, artilharia pesada, aviões de combate e helicópteros aos países europeus. Em 2023, o presidente russo anunciou a suspensão do New START, que limitava o número de armas nucleares estratégicas ativas para 1.550.

Antes disso, já tinham caído por terra outros tratados que foram fundamentais para assegurar a paz entre as duas superpotências, EUA e União Soviética. Em 2018, Washington abandonou o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) que limitava o número de lançadores balísticos em terra, citando violações do tratado por parte da Rússia. Negociar novos acordos que estabeleçam limites e voltem a repor a confiança entre potências nucleares vai ser mais complicado.

“Não vai ser fácil. Foram necessários sete anos para negociar o tratado INF. Tendo isso como base, acredito que vão ser necessários mais do que sete anos para negociar a próxima geração de controlo de armas. Mas a recompensa é de tal forma grande que vale a pena fazer o esforço”, considera John Erath.

Paz é impossível

Mas na Europa a tensão atinge níveis difíceis que não eram vistos desde a Guerra Fria. A aproximação de armas nucleares russas da fronteira de países da NATO levou a Polónia, Estado-membro da Aliança, a abrir as portas às armas nucleares norte-americanas no seu território. “Estamos prontos para o fazer”, garantiu o presidente polaco, Andrzej Duda, em abril. Ao mesmo tempo, a possibilidade da eleição de Donald Trump está a deixar alguns líderes europeus céticos em relação à fiabilidade do aliado norte-americano em caso de ataque.  

O próprio presidente francês, Emmanuel Macron, disse mesmo que queria abrir o debate sobre a possibilidade de estender à Europa as capacidades nucleares francesas, de forma a criar uma “defesa credível” contra as ameaças russas. A proposta incluiria um sistema de defesa de mísseis, armas de longo alcance e armas nucleares francesas em solo de outros países europeus. Atualmente, França dispõe de cerca de 300 armas nucleares e é a única potência nuclear da União Europeia.

Para os especialistas, a criação de um sistema de dissuasão nuclear europeia enfrenta “desafios significativos”, incluindo obstáculos técnicos, políticos e económicos, bem como preocupações quanto à violação do TNP. Doreen Horschig defende que este debate arrisca desviar a atenção dos decisores políticos da necessidade de continuar a reforçar as capacidades convencionais das forças armadas europeias e atingir o compromisso da NATO de cada membro da Aliança gastar 2% do PIB em defesa.

“Os líderes da NATO devem dar prioridade ao reforço das forças convencionais para dissuadir eficazmente a agressão. O reforço das capacidades convencionais continua a ser fundamental para garantir a segurança e a estabilidade europeias, sublinhando a importância dos compromissos de defesa coletiva para enfrentar os desafios geopolíticos em evolução”, insiste a especialista do CSIS.

Mas a explosiva combinação da queda de acordos de não-proliferação com a guerra na Ucrânia e a rápida expansão do programa nuclear chinês precipita o mundo para uma nova corrida ao armamento. Em 2022, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, o número de armas nucleares aumentou. Embora o número de armas tenha reduzido drasticamente de cerca de 70 mil para “apenas” 9.576 mil ogivas nucleares, a tendência parece estar a alterar. O mundo vai investir mais defesa, mas isso não significa que será mais seguro.

“Há claramente o risco de regressar uma corrida às armas. Estamos num mundo de múltiplas ordens – com duas em confronto – que estão a voltar ao clima de Guerra Fria. Vamos assistir ao que eu defino como um 'Equilíbrio pelo Terror'. Viveremos um período de paz impossível e de guerra improvável”, frisa José Filipe Pinto.

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