"Se o Governo de Kiev cair e ficar lá um governo fantoche, tudo isto volta atrás": o que pode correr bem, mal ou não correr de todo com o pedido da Ucrânia para aderir à UE

1 mar 2022, 01:09
Ucrânia e União Europeia (Getty Images)

A Ucrânia pediu formalmente - e em plena guerra - a adesão à UE. Ponto número 1 sobre isso: "O que o presidente Zelensky terá pretendido ao assinar este pedido é vincular a Ucrânia politicamente a um processo sem retorno". Ponto número 2: e se Zelensky cair? Ponto número 3: como é que isto muda o curso da guerra?

O quinto dia de guerra ficou marcada por um "momento histórico". O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky assinou formalmente o pedido de adesão à União Europeia (UE). No Instagram, pediu uma integração "sem demora", mas, como a história nos tem provado, este é um processo tudo menos simples e tudo menos rápido. Basta imaginar-se o seguinte: um país que queira aderir à UE tem de alterar toda a sua legislação e adaptá-la à que existe. Ora, isto não é um processo de dias nem de semanas nem de meses. 

Azeredo Lopes, comentador da CNN Portugal, sublinha que é "impossível dizer" o que aconteceria caso a Ucrânia entrasse na UE "porque não vai aderir imediatamente". "Há um processo que envolve a vontade unânime dos outros Estados-membros. Sinceramente, não vejo como, de um dia para o outro, todos os Estados se pronunciem dessa maneira." 

O comentador concorda com Josep Borrell, alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, quando este disse esta segunda-feira que o processo de adesão da Ucrânia demorará pelo menos dois anos. Já Jean-Claude Juncker, durante a sua presidência da Comissão Europeia, tinha dito que esperava que em 2030 a Ucrânia de juntasse à UE e à NATO. 

Azeredo Lopes considera, no entanto, a tomada de posição de Volodymyr Zelensky "muito forte" por ser em "pleno conflito" e por "demonstrar não ter receio do opositor russo". Além disso, entende que o presidente da Ucrânia "está a jogar muito bem" e que, se conseguir que a UE "se comprometa a olhar a sério para a candidatura ucraniana, já consegue um passo gigantesco em direção aos objetivos do país". "O que o presidente Zelensky terá pretendido ao assinar este pedido é vincular a Ucrânia politicamente a um processo sem retorno. Algo que não se confunda, por exemplo, com o processo da Turquia, que já acabou, morreu. Mas, quando morreu, tínhamos ferido gravemente a Turquia. Neste momento, no meio de uma situação emocionalmente tremenda, como estarmos a assistir à luta de um povo contra um agressor, é bem jogado da parte do presidente ucraniano, que pretende obter, de uma vez por todas, uma decisão sobre se vai entrar ou não e evitar respostas mistas."

"Se o Governo de Kiev cair e ficar lá um governo fantoche, tudo isto volta atrás"

Além das alterações à legislação, um país que se queira juntar aos 27 tem de cumprir com os Critérios de Copenhaga: 

  • A estabilidade das instituições que garantem a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos e o respeito pelas minorias e a sua proteção;

  • Uma economia de mercado que funcione efetivamente e a capacidade de fazer face à pressão concorrencial e às forças de mercado da UE;
     
  • A capacidade para assumir as obrigações decorrentes da adesão, incluindo a capacidade de aplicar eficazmente as regras, normas e políticas que compõem o corpo legislativo da UE (o "acervo") e a adesão aos objetivos de união política, económica e monetária.

Por tudo isto, Henrique Burnay, especialista em assuntos europeus, defende que "não há nenhuma hipótese prática de uma adesão rápida" e considera ser "extraordinário" que Ursula Von der Leyen diga que a Ucrânia "faz sentido aqui [na União Europeia]". Mas deixa um alerta: "Se o Governo de Kiev cair e ficar lá um governo fantoche, tudo isto volta atrás". "É muito simbólico Ursula Von der Leyen ter dito aquilo e há uma outra coisa que é curiosa: se pensarmos que há uma semana o que se dizia era que não havia capacidade de alargamento, e que havia países em lista de espera porque não cumpriam os critérios - países que se candidataram em 2004 -, de repente voltámos a 1989/90, à atitude que tivemos com os países de leste." 

Precisamente porque há uma guerra em curso, não há nada que Volodymyr Zelensky faça "que não seja uma estratégia", sublinha Henrique Burnay. "O calculismo aqui não é uma coisa hipócrita." Ou seja, o presidente da Ucrânia quer aproveitar "esta onda de 1989/90" e, "já que a porta está aberta, aproveita e mete já o pé na porta".  "Eu acho que isto é mais uma questão de ancorar a Ucrânia no lado de cá. É mais um escudo militar."

Aos olhos de Putin, o especialista acredita que esta é uma "ameaça muito maior do que a Letónia, a Lituânia ou a Estónia", porque a democratização e ocidentalização da Ucrânia "incomoda muito mais". "O facto de a Ucrânia estar tão inteiramente ligada à história da Rússia, e depois o facto de ter pessoas russas a viver lá, significa que o chamado risco de contaminação democrática é grande." 

"A oportunidade do pedido de adesão à UE não foi o melhor"

Se há quem olhe para o momento deste processo de adesão como algo positivo, também há quem considere que o timing não foi melhor. O major-general Carlos Branco entende que o pedido não devia ter acontecido agora, uma vez que estavam a decorrer negociações entre a Ucrânia e a Rússia na Bielorrússia. "O facto de o pedido ter sido coincidente com as negociações não foi positivo para que estas terminassem da melhor forma. A oportunidade do pedido de adesão à União Europeia não foi o melhor."

Carlos Branco , também não acredita que seja aberta qualquer exceção que possibilite uma entrada mais rápida da Ucrânia no grupo dos 27. O major-general refere que, para existir esta adesão em tempo recorde, seria necessário um consenso entre todos os Estados-membros.  "O melhor melhor é não fazermos cenários hipotéticos que não vão acontecer, uma entrada imediata da Ucrânia nunca aconteceria. A Ucrânia está muito longe de cumprir todos os requisitos da União Europeia", dados os intrínsecos problemas ao nível da democracia e da corrupção. 

Carlos Branco desassocia, no entanto, a União Europeia da NATO, lembrando que Putin "nunca teve qualquer problema com a Finlândia ou Suécia", países com fronteira direta com a Rússia e que pertencem à aliança económica mas não à aliança militar. "Nem a Ucrânia nem a Geórgia alguma vez vão entrar para a NATO: no dia em que isso acontecer, teremos a Terceira Guerra Mundial. Putin não está num processo de loucura: temos de olhar para os factos já consumados - o problema principal é a Ucrânia, que é um pivot estratégico para a Rússia."

Numa entrevista à Euronews no domingo, a presidente da Comissão Europeia manifestou o seu interesse em integrar a Ucrânia após a aprovação de um pacote de 450 milhões de euros para armar o exército de Zelensky. Ursula von der Leyen garantiu estar a trabalhar com o país "em estreita colaboração".  Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, também anunciou a sua intenção de convidar Volodymyr Zelensky a participar "regularmente" nas cimeiras dos líderes europeus.

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados