Escolha de um tecnocrata da área da economia para chefiar o ministério mais importante do Kremlin fornece algumas pistas acerca dos planos de Vladimir Putin para a Ucrânia, e não só
A remodelação do governo russo que ditou o afastamento de Sergei Shoigu, um dos mais antigos e leais aliados do presidente Vladimir Putin, por Andrey Belousov, um tecnocrata da área da economia, apanhou muitos observadores de surpresa. Para os especialistas, esta mudança, que é descrita como a vitória da competência sobre a lealdade, revela que o Kremlin se está a preparar para uma guerra de longo prazo, não só com a Ucrânia, mas com o Ocidente.
“Com esta escolha, Vladimir Putin deu um sinal claro de que quer preparar a economia russa para um conflito de longa duração que pode não acabar na Ucrânia. Isto significa que está muitíssimo preocupado com a economia russa e que esta terá de aguentar todos os esforços necessários”, alerta o major-general Isidro de Morais Pereira.
Andrey Belousov, de 65 anos, é um economista de formação que entrou relativamente tarde no aparelho estatal russo, mas que subiu de forma galopante na estrutura política russa por demonstrar duas das características mais desejadas pelo presidente russo: lealdade e competência. Ocupou diversos cargos de conselheiro económico, chegando mesmo a ser nomeado pelo então presidente Medvedev para ministro do Desenvolvimento Económico.
No cargo, Belousov demonstrou bastante abertura para abrir a Rússia a uma maior modernização. Além disso, é visto como alguém que não é corrupto. Estes atributos fizeram com que fosse chamado para bem perto de Vladimir Putin, entre 2013 a 2017, para ser um dos seus principais conselheiros para a área da economia. Quem trabalhou com ele descreve-o como sendo “muito direto, profissional e um tecnocrata” e que não gosta de “esconder a verdade”.
“Putin está muitíssimo preocupado com a economia russa. Neste momento, um terço do seu Produto Interno Bruto é aplicado em Defesa, ele sabe que o colapso da União Soviética se deveu ao colapso económico, por ter posto todas as fichas no campo militar, esquecendo-se das outras vertentes da economia”, defende Isidro de Morais Pereira.
Uma guerra sem fim
Nos últimos anos, o orçamento da Defesa russa disparou. De acordo com o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, a Rússia está a gastar 6,4% do PIB em Defesa, superando os gastos em apoios sociais. E o impacto destes gastos não se sente apenas no campo de batalha. O forte investimento que está a ser feito por Moscovo, num país fortemente afetado por sanções económicas, significa que a Defesa é o principal motor do crescimento económico russo.
Para os analistas do Institute for the Study of War (ISW), estes gastos, juntamente com a nomeação de Andrey Belousov, demonstram aquilo que há muito se especula. O novo ministro tem como missão coordenar e fortalecer a economia de guerra russa de forma a dar as ferramentas necessárias ao exército russo para vencer a guerra na Ucrânia e “possivelmente preparar a Rússia para um futuro confronto com a NATO”. E, com esses planos em mente, a área da economia ganha um destaque ainda maior.
“A prioridade de Putin é a guerra; a guerra de atrito é vencida pela economia. Belousov é a favor de estimular a procura do orçamento, o que significa que os gastos militares pelo menos não diminuirão, mas sim aumentarão”, afirma Alexandra Prokopenko, antiga conselheira do Banco Central da Rússia, citada pela CNN Internacional.
E o Kremlin pode não estar errado na sua análise. Atrasos na aprovação de pacotes de apoio militar e entraves políticos que forçaram os países ocidentais a aumentar o ritmo de produção militar levaram os oficiais ocidentais a admitir que a Rússia está a produzir três vezes mais munições de artilharia do que os Estados Unidos, a Europa e a Ucrânia juntos.
No entanto, existem alguns campos do confronto na Ucrânia onde a Rússia não só está em desvantagem para o Ocidente, como está dependente de países terceiros como a China e o Irão. O caso mais paradigmático é o dos veículos aéreos não tripulados, onde Kiev tem tido a supremacia, com o apoio de tecnologia de ponta ocidental. Não são apenas os pequenos drones FPV, mas também veículos de maiores dimensões com mais alcance e aeronaves de espionagem.
Esse foco na inovação e na descoberta de novas soluções para os problemas que Moscovo tem encontrado em mais de dois anos de guerra na Ucrânia são mesmo algumas das principais justificações do Kremlin para a nomeação do novo ministro.
“Hoje, no campo de batalha, o vencedor é aquele que está mais aberto à inovação. Portanto, é natural que, no estado atual, o presidente tenha decidido que o Ministério da Defesa russo deveria ser chefiado por um civil", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Belousov, anterior vice-primeiro-ministro, vai mesmo ter de supervisionar muitas das decisões tomadas pelo seu antecessor, Sergei Shoigu. Entre elas está o aumento significativo de efetivos no exército russo. Moscovo conta que o exército tenha um milhão e meio de efetivos já em 2026, mas, para isso, é preciso continuar a aumentar o número de soldados contratados, criar as estruturas de apoio necessárias, fornecendo treino e alojamento aos militares.
Ainda assim, o controlo das matérias militares permanece nas mãos do chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, Valery Gerasimov, e das restantes chefias militares. Apesar de os resultados no campo de batalha estarem aquém das expectativas russas, o Kremlin decidiu não alterar “para já” a estrutura militar. O mesmo acontece com a chefia dos serviços secretos internos e externos, que mantêm Alexander Bortnikov como líder do FSB e Sergei Naryshkin como homem forte do SVR.
Silovikis e demasiado poder
Ao mesmo tempo, Vladimir Putin conseguiu afastar do seu ministério mais importante um ministro que criou muitos inimigos ao longo dos últimos anos. Mas não completamente. Sergei Shoigu foi nomeado para secretário do Conselho de Segurança da Rússia, um cargo que pertencia a Nikolai Patrushev, um dos principais representantes dos siloviki – um grupo de homens de poder que vieram dos serviços secretos russos.
Apesar de Patrushev ser um dos homens mais próximos de Putin, o seu afastamento não está a ser visto como um castigo. O seu filho Dmitry Patrushev, antigo ministro da Agricultura e um dos potenciais sucessores de Putin, passou para vice-primeiro ministro.
Sergei Shoigu ocupava o cargo desde 2012 e antes de ter assumido a pasta foi ministro das Situações de Emergência entre 1991 e 2012. Enquanto esteve em funções, Shoigu tentou modernizar as forças armadas russas e garantiu apoio militar aos grupos separatistas no Donbass em 2014, bem como na invasão da Ucrânia em 2022. No entanto, acabou por ser criticado em todo o processo, com as especulações de corrupção a pairar sobre o seu ministério.
Em abril, um dos homens mais próximos de Sergei Shoigu foi detido com acusações de corrupção. O seu vice-ministro da Defesa, Timur Ivanov, foi acusado de aceitar subornos "numa escala particularmente grande" relativamente a projetos de construção do Ministério da Defesa. Ivanov enfrenta 15 anos de prisão, caso seja considerado culpado.
Mas o desagrado com Shoigu não é de hoje. No início de 2023, quando o líder do grupo de mercenários Wagner marchou contra a capital russa, tinha como alvo Shoigu e não Putin. “Prigozhin conhecia a máquina da defesa e a sua corrupção”, recorda Isidro de Morais Pereira.
Mas esta não é a primeira vez que Putin escolhe um homem da área económica civil para liderar a pasta da Defesa. Em 2007, o presidente russo escolheu Anatoly Serdyukov, um homem das finanças, para liderar o Ministério da Defesa. Serdyukov foi responsável pelo combate à corrupção no ministério e pela modernização das forças russas. Mas a escolha de um “antigo vendedor de móveis” para liderar a Defesa foi mal recebida por parte dos militares. Depois de várias polémicas, Serdyukov acabou por ser demitido e substituído por Shoigu.
Ao longo de mais de 20 anos em que Putin gravitou no poder russo, o presidente demonstrou sempre muito cuidado em não dar demasiado poder a nenhum grupo político dentro do seu executivo. E nesse campo Belousov apresenta-se como uma mais valia para o líder russo. Ao contrário de Shoigu e outros siloviki, o novo ministro não pertence a nenhum grupo de poder ligado ao Kremlin.
“Este homem pelo historial que tem, por estar ligado ao desenvolvimento tecnológico, reúne todas as condições para ser o obreiro de uma reestruturação do que podem ser as bases de um exército mais moderno e mais capaz de lutar na Ucrânia. Isto é um sinal de que Putin interiorizou que esta guerra vai demorar muito mais do que ele estava à espera e que precisa de uma economia que aguente todo o esforço necessário”, sublinha Isidro de Morais Pereira.