Contra a Ucrânia, mas a favor de Israel. A favor da Ucrânia, mas contra Israel. As duas guerras provam que o mundo deixou de ter um só líder

22 out 2023, 08:00
Protesto a favor de Ucrânia e Israel (Ariel Schalit/AP)

Há um mundo multipolar em que grandes países procuram exercer influências na sua esfera. A Rússia e os Estados Unidos perdem poder, enquanto outros lhes tentam tomar o lugar

Com a guerra entre Israel e o Hamas estamos "a jogar o futuro das próximas décadas". Quem o disse foi o presidente dos Estados Unidos, que vê nas vitórias de Israel, mas também da Ucrânia, um elemento “vital” para a segurança do Ocidente.

Mas, se no bloco ocidental parece haver uma posição clara sobre ambas as guerras, ainda que com algumas nuances em relação a Israel – a Europa tem sido mais cautelosa a expressar um apoio inequívoco a Telavive do que os Estados Unidos -, o resto do mundo é mais maleável na sua posição.

Era o passo que faltava para se perceber que estamos claramente num mundo multipolar. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Portucalense, Tiago André Lopes, esse cenário já existe há algum tempo, “mas está cada vez mais evidente”. Não apenas pelo aparecimento de potências como Brasil, Rússia, Índia, China ou África do Sul (os famosos BRICS), mas também por “inconseguimentos dos Estados Unidos durante o Século XXI”.

À CNN Portugal, o especialista em assuntos internacionais refere que os fracassos militares norte-americanos no Afeganistão ou no Iraque “demonstram que os Estados Unidos já não têm o peso que tinham”, pelo menos em todo o mundo.

Em vez disso os Estados Unidos passaram a ser apenas um líder regional, com alguma esfera de influência sobre o Ocidente. “Estamos a assistir a uma regionalização da política”, indica Tiago André Lopes, falando naturalmente de China e Índia, mas também de Turquia, Irão, Egito ou Nigéria, enquanto numa Europa “desprovida de grandes lideranças” existe alguma dificuldade para encontrar quem tome as rédeas, ao passo que a Rússia já nem consegue ser um líder regional.

Posição dos diferentes países em relação a Israel

A "posição complicada" da China

A China não hesitou em colocar-se ao lado da Rússia na questão ucraniana. Têm sido constantes as conversas entre Moscovo e Pequim – Vladimir Putin até foi recebido por Xi Jinping há dias -, mas em relação ao conflito no Médio Oriente não há uma clareza de posição tão grande.

Tiago André Lopes vê a China numa “posição complicada”: por um lado foi o mediador que aproximou Arábia Saudita e Irão, uma grande vitória do regime comunista. Por outro, foi também a China um dos Estados a tentar minar os Acordos de Abraão, que a partir de 2020 colocaram vários países árabes, como os Emirados Árabes Unidos ou Marrocos, a reconhecer a soberania de Israel, em textos mediados pelos Estados Unidos, país onde até foi assinado o primeiro documento.

“A China não quer ir a jogo no jogo mediático”, refere o especialista em assuntos asiáticos, acrescentando que para a complicada posição chinesa também contribui o papel do Irão em tudo isto. “A China foi obrigada ou condicionada a aceitar que o Irão é um novo parceiro”, mesmo que Pequim tenha oferecido resistência inicial à entrada daquele país na Cooperação de Xangai ou nos BRICS, indo, neste último ponto, contra aquilo que defendia a Rússia. De resto, parte do aceitar que o Irão é um parceiro foi a concessão da entrada do país nos BRICS, o que só foi garantido este ano.

Diana Soller não vê a posição chinesa como sendo tão comedida. Para a especialista em Relações Internacionais, os últimos passos de Pequim indicam uma direção clara.

“Reagiu à reunião entre o Irão, Catar, Hamas e Hezbollah dizendo que é a favor da solução dos dois Estados, que é a favor da criação do Estado da Palestina. É uma posição muito forte para um país que se diz neutral”, nota a também investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), referindo que isso é um tomar de posição que não acompanha a causa israelita.

Apesar dessa posição, Tiago André Lopes vê uma China cautelosa, até porque “pode envolver-se num problema doméstico”. O especialista aponta a situação da Mongólia, um país cuja posição em relação ao Médio Oriente é completamente diferente da que tem tomado sobre a Ucrânia. É que o regime mongol, um aliado clássico da União Soviética, manteve laços estreitos com Moscovo após 1991. Na resolução de 13 de março em que a ONU condenou a invasão russa, a Mongólia foi um dos 35 países que se absteve, votando ao lado de países como China, Índia ou Irão.

Só que agora, até pela “redescoberta da sua matriz religiosa”, a Mongólia levanta “desafios diplomáticos grandes” para a China, promovendo uma tensão “não vista há muito tempo”. Por isso mesmo é um dos poucos países que, apesar de resistir em condenar a invasão russa, está claramente do lado de Israel.

A concorrer para a cautela chinesa há ainda uma outra questão, que até tem levado a alguns conflitos diplomáticos com o mundo árabe ou com países muçulmanos. A situação em que os uigures, povo de origem muçulmana, são mantidos na região de Xinjiang tem levado a vários pedidos de esclarecimento do Médio Oriente, a começar pela Turquia. Tiago André Lopes sublinha, por isso, que não é proveitoso para Pequim estar a hostilizar ainda mais os países muçulmanos numa questão como a de Israel, país com quem a China, “não tendo uma má relação, nunca a teve de forma profunda”.

Índia olha para fora com um olho dentro

É uma das grandes mudanças entre conflitos. Sem condenar a invasão russa - até se absteve na condenação da ONU -, a Índia colocou-se rapidamente ao lado de Israel, marcando uma posição que se explica de diferentes formas.

Desde logo pelos conflitos internos que a própria Índia tem, e que tem aumentado nos últimos tempos em redor de Caxemira, numa região que o país disputa com o Paquistão, mas onde também a China tem território. Essa guerrilha faz-se, em parte, através de pequenos grupos terroristas de fundamentalismo islâmico, o que os coloca à imagem do Hamas, pelo que seria difícil a Nova Deli não condenar o ataque do grupo pró-palestiniano.

"Relativamente à Ucrânia a Índia tem dilemas, no sentido de que tem uma relação histórica com a Rússia, que já vem da União Soviética, mas também está a desenvolver uma parceria profunda com os Estados Unidos na contenção da China, enquanto participa ativamente nas organizações internacionais patrocinadas pela China", aponta Diana Soller, explicando que cada membro dos BRICS se vê como um líder do "sul global".

Só que a Índia mantém uma posição menos hostil que Rússia e China, até porque, segundo a investigadora do IPRI, "a Índia vê-se como uma ponte entre os países em vias de desenvolvimento e os países desenvolvidos, tendo uma política externa multivetorial".

"Tem boas relações com Estados inimigos entre si [Estados Unidos e Rússia, por exemplo], por isso as posições em relação à Ucrânia são muito mais cautelosas. Há todo um futuro de parcerias que não quer alienar", acrescenta Diana Soller, vendo na questão israelita um paralelismo com a questão entre Índia e Paquistão, que também têm um confronto fundacional, tal como acontece entre Israel e Palestina, onde houve a criação de dois Estados de início.

E essa proximidade do Paquistão faz com que a Índia tenha tendência a alinhar-se com Estados com problemas de minorias muçulmanas. "As posições duras de Israel vão servir internamente as posições duras de Narendra Modi contra os estados indianos de maioria muçulmana", refere Tiago André Lopes.

O especialista em assuntos asiáticos refere que a sublevação que surgiu há ano e meio na Índia, onde se têm verificado atos de guerrilha, faz com que o país "reparta as dores de Israel", até porque "o atual governo, ortodoxo, tem dificuldades em fazer cedências religiosas".

"Para Modi está a ser atacada a alma do Estado israelita, com uma componente religiosa, e está em causa um inimigo comum. Daí a condenação do Hamas", vinca.

Esta posição indiana marca uma mudança relativamente ao início do conflito. No Plano de Partilha da Palestina, que a ONU aprovou em 1947, na resolução número 181, o Estado indiano votou contra o estabelecimento de dois Estados, defendendo que o território continuasse a ser palestiniano. Um voto ao lado de países como Arábia Saudita, Egito ou Grécia e Turquia.

Recorde-se que Israel expandiu o seu território desde então, mesmo depois de mais do que os dois terços necessários de Estados-membros terem aprovado o plano. 

Plano de Partilha da Palestina (ONU)

Brasil pragmático

A posição do Brasil em relação à Ucrânia tem sido condenada na comunidade internacional. Lula da Silva já teve várias declarações polémicas sobre a guerra europeia, tendo mesmo feito críticas ao presidente ucraniano. Desta vez, tem maior relutância em escolher o lado. Isto mesmo apesar de, como sublinha Diana Soller, o posicionamento político do presidente brasileiro ser tendencialmente próximo da Palestina.

O que está em causa, segundo Tiago André Lopes, é uma postura pragmática de um país que tem interesses na Rússia e em Israel. "O Brasil recebe energia da Rússia, não interessa hostilizar aquele país. Mas também lhe interessa boas relações com Israel, porque isso significa boa tecnologia. Por outro lado mantém as parcerias com o mundo árabe", refere o professor de Relações Internacionais.

Por isso mesmo o Brasil tenta assumir um papel de mediador, até porque tem a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas. "Apresentou um texto na ONU, quer jogar um jogo diplomático, apresentando uma posição sobretudo pragmática", acrescenta.

Ainda assim, e segundo Diana Soller, o Brasil virar-se-à sempre mais para o lado russo e chinês, relativamente à Ucrânia, onde tem uma posição mais declarada, no caso a favor da Rússia. "O Brasil fez uma escolha muito clara, apoiar a posição russa, e a principal razão é colocar fichas numa ordem internacional chinesa no futuro", diz.

O medo da rua árabe (e do Irão)

O mundo árabe não olha para a Ucrânia comparando-a com Israel, mas sim com a Palestina. Tiago André Lopes traça assim a diferença de como os países do Médio Oriente e da Europa olham para os dois conflitos.

"Para nós na Europa, a comparação é entre Ucrânia e Israel, mas o mundo árabe não olha assim. Compara a Ucrânia com os palestinianos, ao contrário do que Volodymyr Zelensky tem tentado fazer, comparando-se com Israel", sublinha o especialista, dizendo que essa posição do presidente ucraniano deixou os árabes "admirados", porque "não percebe que está mais próximo da Palestina".

Mas a verdade é que a influência árabe está a resultar. Tiago André Lopes nota que o discurso do secretário de Estado norte-americano mudou entre a chegada a Israel e a partida do Médio Oriente. "Antony Blinken entrou em Israel com um discurso duro e depois disse que Israel tem de agir dentro da lei", aponta, dizendo que isso significa que a pressão exercida pelos árabes durante as visitas ao Egito, Jordânia ou Arábia Saudita resultou, mesmo que nem todos os países árabes tenham a mesma visão.

E se há visões diferentes, uma delas é a do Irão, país que os Estados Unidos já vieram dizer que financia o Hamas e o Hezbollah. De resto, a postura iraniana relativamente ao conflito é uma das ameaças avaliadas pelos norte-americanos, que contam com os aliados Arábia Saudita e Egito para tentar evitar uma escalada da guerra.

Tiago André Lopes refere que "o mundo árabe está dividido em relação à intervenção militar", e isso deve-se, sobretudo, à diferente perceção que a entrada numa guerra pode gerar na chamada "rua árabe", sabendo-se que a Primavera Árabe deixou vários governos com medo de revoltas sucessivas.

Protestos a favor da Palestina na Jordânia (Khalil Mazraawi/Getty Images)

Para Diana Soller este também é um ponto fulcral, mas a investigadora do IPRI avisa que será sempre mais difícil conter a necessidade de uma guerra regional caso o conflito evolua para lá de Israel / Hamas. "Se fosse evidente que a Palestina era o adversário [de Israel] a maioria dos árabes, até por controlo da sua rua, apoiariam a Palestina, mas está a ser feita, e bem, uma distinção entre Palestina e Hamas", nota.

"O controlo da rua é muito importante", conclui, apontando os exemplos das manifestações em países como a Jordânia, genericamente pacífico.

Existe ainda uma confrontação entre potências, a tal procura da liderança regional, que opõe o Irão a outros países, nomeadamente à Arábia Saudita. É uma disputa de poder que se faz a nível comercial, mas também político e até religioso, uma vez que o Irão se assume como líder do Islão xiita, enquanto os sauditas representam, como o Egito, a maioria sunita.

No fundo, como diz Tiago André Lopes, "em nenhuma região um Estado atua sozinho, nem mesmo a China vai a jogo".

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