Exército e secretas israelitas são das melhores do mundo, mas isso não impediu um ataque nunca antes visto do Hamas
“Isto é o nosso 11 de Setembro. Eles apanharam-nos”. A frase do porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF) diz tudo. O país foi apanhado de surpresa com uma invasão sem precedentes do seu território por parte do Hamas, expondo a fragilidade do sistema de defesa, mas, sobretudo, lançando a questão: o que falhou (e continua a falhar) naquele que é tido como um dos exércitos mais bem preparados do mundo?
Uma das hipóteses em cima da mesa é um falhanço político, em grande parte motivado por operação bem sucedida do Hamas em desacreditar a possibilidade de um ataque, nomeadamente desta dimensão. A agência Associated Press e o Financial Times referem que uma fonte do governo egípcio garante que o Egito avisou com alguns dias de antecedência que “algo grande” estava a ser preparado na Faixa de Gaza.
O primeiro-ministro de Israel classificou esses relatos de “absolutamente falsos”, mas foi desmentido pouco depois pelo presidente do Comité de Negócios de Estrangeiros da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos.
“Sabemos que o Egito avisou os israelitas três dias antes de isto ter acontecido. Não quero entrar em muitos detalhes, mas foi dado um aviso”, afirmou Michael McCaul.
Mas não foi só o governo israelita a falhar.
Defesa adormecida ou ataque inteligente?
São as duas principais agências de informação de Israel, conhecidas por missões ultrassecretas em todo o mundo, sobretudo a Mossad, o que lhes valeu uma grande reputação.
Para o major-general Carlos Branco, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, embora exista um claro falhanço de ambas as organizações, é à Shin Bet que cabe a maior parte da responsabilidade. Isto porque é esse o serviço responsável pela segurança interna, enquanto a Mossad atua, sobretudo, fora do país.
Mas o especialista militar refere à CNN Portugal que não se deve ver apenas o copo meio cheio do lado israelita. Antes pelo contrário: devemos olhar para a operação do Hamas como algo extremamente sofisticado, até porque só dessa forma conseguiu fazer o que ninguém esperava.
“Durante estes dois últimos anos o Hamas tomou uma série de medidas de deceção, procurou esconder aquilo que estava a preparar”, diz Carlos Branco, que serviu a Organização das Nações Unidas (ONU) numa das missões de pacificação no Médio Oriente, centrando-se particularmente em países como Israel, Líbano e Síria.
Entre as várias estratégias utilizadas pelos combatentes pró-palestinianos estiveram conversas ensaiadas. O Hamas sabia que as chamadas eram intercetadas pelas secretas de Israel, tendo dado ordem aos seus combatentes para falarem sempre num tom que afastava qualquer intenção beligerante.
Prova de que essa campanha do Hamas estava a ter resultado é uma entrevista dada pelo conselheiro de Segurança Nacional seis dias antes do ataque. Tzachi Hanegbi disse que "o Hamas está muito, muito contido e percebe as implicações de novas provocações".
O The New York Times refere que uma reunião ocorrida na semana passada sobre as ameaças mais prementes a Israel colocou os militantes libaneses, em particular o Hezbollah, como a grande preocupação.
Com efeito, grande parte dos últimos conflitos entre as forças israelitas e as fações palestinianas não tinham o Hamas envolvido, pelo menos oficialmente. Num deles deixou que fosse o movimento da Jihad Islâmica da Palestina a atuar sozinho e, num momento posterior, até atuou com o Catar para acordar um amenizar das tensões junto à Faixa de Gaza.
Foi a calma antes da tempestade, numa estratégia que claramente serviu o seu propósito: “relaxar Israel”, como nota Carlos Branco.
De resto, se na Faixa de Gaza a calma era aparente, para tal contribuiu um programa que previa a participação de milhares de palestinianos que tinham sido detidos em Israel na sociedade civil. Foi um pequeno aproximar de relações e um amenizar da tensão que terá levado Israel a pensar que dificilmente iria haver uma escalada.
“Esse programa corria sem grandes percalços, o que não levantava suspeitas. Havia uma acomodação entre o Hamas e aquela população que trabalhava com as autoridades israelitas”, sublinha Carlos Branco.
De resto, toda a atividade, incluindo o deslocamento de várias unidades israelitas, pareciam apontar a Cisjordânia como o ponto mais tenso do momento. Algo que “seria estranho”, para Carlos Branco, mas que levou Israel a “afrouxar” perante o Hamas.
Apesar de uma aparente falta de atividade militar num sentido hostil por parte do Hamas, o major-general diz que seria extremamente difícil esconder toda a preparação de uma ofensiva desta dimensão. Não são apenas os meios empregues, mas também o “número volumoso de combatentes” que teve de treinar.
“Levanto muitas interrogações se de facto os órgãos israelitas não tinham conhecimento disto. As operações foram treinadas, e treiná-las com esta dimensão e número não é fácil. É difícil esconder o equipamento”, aponta, lembrando que, apesar de tudo, uma coisa é treinar, outra coisa é atacar o inimigo, o que poderá ter contribuído para que Israel não elevasse o nível de alerta.
Drones para cegar Israel
Quem pensa num exército altamente tecnológico e em serviços secretos ao nível dos melhores do mundo pode estranhar que o país que os tem seja invadido com recurso a retroescavadoras e homens a sobrevoar a fronteira em asa-delta.
Mas foi precisamente dessa forma que cerca de 1.500 combatentes do Hamas irromperam em 30 pontos da fronteira com Israel, chegando a mais de 20 localidades e tomando conta de quatro bases militares, provocando uma onda de caos e de morte como não se via há 50 anos naquele país.
Isso só foi possível graças a um primeiro lançamento altamente bem-sucedido de drones por parte do Hamas. Esses mesmos drones destruíram câmaras de vigilância e os sensores que alertam para atividade na fronteira com a Faixa de Gaza.
“Os israelitas foram absolutamente apanhados de surpresa”, reconhece Carlos Branco, apontando que “muita coisa vai ter de ser esclarecida”, porque a destruição dos sistemas de vigilância não explica, só por si, a facilidade com que o Hamas entrou em Israel.
“Como é que foi possível rebentarem com a cerca da Faixa de Gaza, que é vigiada permanentemente? Até uma barata conseguem identificar, onde estavam as pessoas que têm responsabilidade de vigiar os sistemas de controlo?”, questiona o major-general.
Mais estranho é se pensarmos que entre 2018 e 2019, durante um protesto que ficou conhecido como a Grande Marcha do Retorno, 300 palestinianos foram mortos por snipers israelitas só por se terem aproximado da cerca que separa os territórios.
O The New York Times escreve que as defesas da fronteira eram maioritariamente feitas por esses sistemas de vigilância automático, sendo que altos responsáveis do exército israelita estavam convencidos de que aquele sistema era impenetrável. Tudo isso fez diminuir a presença humana no local.
Hamas aproveita feriados judeus
Como há 50 anos, os rebeldes palestinianos decidiram escolher um fim de semana especial para os judeus. Em 1973 celebrava-se o Yom Kippur, feriado que até acabou por dar nome à guerra que se seguiu.
No sábado os israelitas saíam de um feriado, o Sucot, para entrarem em dois dias de festividades, divididos entre o Shemini Atzeret e o Simchat Torá, que marcam o ciclo anual de leitura da Torá, o livro sagrado do Judaísmo, impedindo todas as pessoas de trabalhar.
Carlos Branco admite que isso também possa ter levado a um maior “relaxamento” das forças israelitas, já de si com “guarda baixa” pela bem-sucedida campanha de decepção do Hamas.
E o poderoso Iron Dome, falhou?
Desde que Israel se retirou de Gaza em 2005, gastou milhares de milhões de dólares para proteger a fronteira de ataques. Para o efeito, tem atacado todas as armas disparadas do interior de Gaza e impedido os terroristas de tentarem atravessar a fronteira por via aérea ou subterrânea através de túneis. Para impedir os ataques com rockets, Israel utiliza a "Cúpula de Ferro", um sistema eficaz de defesa desenvolvido com a ajuda dos Estados Unidos, mas que desta vez não chegou para os mais de três mil rockets lançados no sábado.
O major-general Carlos Branco explica que dificilmente seria possível que este sistema, por muito avançado que seja, fosse capaz de dar conta de todos os ataques.
Apesar disso o militar aponta um problema, mais uma vez relacionado com uma provável postura relaxada de Israel. É que a "Cúpula de Ferro" tinha "poucas baterias preparadas". Isto porque, segundo o militar português, "estavam numa postura defensiva para outro tipo de ameaça".
"Este ataque foi muito maior do que o pensado. A 'Cúpula de Ferro' fez o seu papel, mas não conseguia resolver o problema de três mil foguetes lançados", acrescenta, garantindo que "é errado" dizer-se que o sistema falhou. Simplesmente foi "insuficiente para fazer face à dimensão da ameaça".