“Não vai ser um verão fácil” para a Obstetrícia. “Uma mulher em trabalho de parto espontâneo vai andar a correr de um lado para o outro para saber que maternidade está aberta”

4 jul 2023, 06:55

Depois do caos de 2022 nas urgências de Ginecologia e Obstetrícia, os médicos dizem que não se aprendeu a lição e perspectivam um verão “preocupante”. E nem o recurso aos privados - que no domingo levou a primeira grávida do Santa Maria para o Hospital da Luz - é visto como a solução

Nove maternidades com encerramentos agendados, duas deslocadas por obras, outras cuja capacidade para realizar mais partos pode não ser suficiente, escalas de urgência ainda por conhecer, obstetras que se deslocam de norte a sul do país para ‘tapar buracos’, uma especialidade que continua envelhecida e com médicos com mais de 55 anos que continuam a fazer turnos noturnos “por amor à camisola”. O cenário da Obstetrícia em Portugal continua "negro" e os próximos meses vão trazer complicações idênticas às do ano passado, alertam os especialistas.

Não vai ser [um verão] fácil, acho que uma mulher em trabalho de parto espontâneo vai ter de andar a correr de um lado para o outro para saber que maternidade está aberta, vão replicar-se coisas que aconteceram no ano passado”, alerta Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMF).

No ano passado, o caos na Ginecologia e Obstetrícia foi de tal ordem que levou à saída de Marta Temido do cargo de ministra da Saúde, que anunciou a sua demissão horas depois de a TVI/CNN Portugal ter noticiado a morte de uma grávida que foi transferida por haver falta de vagas na neonatologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Agora, este mesmo hospital continua a ser o palco das principais preocupações, mas a realidade é transversal a todo o país - a título de exemplo, também o bloco de partos de Caldas da Rainha vai fechar para obras no verão.

Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), revela que o plano de obras do Hospital de Santa Maria que levará ao encerramento da maternidade durante o verão “é olhado com muita reversa” por quem lá trabalha, mas também pelas grávidas que lá são acompanhadas.

Durante o tempo em que a maternidade do Santa Maria vai estar encerrada estavam perspectivados 4.500 partos. E não se tem a certeza de que o Hospital São Francisco Xavier os consiga assegurar”, adverte a médica.

Quando questionada sobre o que esperar do verão deste ano nesta especialidade, a representante da FNAM diz que não perspetiva “algo muito diferente em relação ao ano passado".

"Há falta de organização, não antecipam as escalas de urgência e temos a Jornada Mundial da Juventude que vem complicar esta situação”, alerta.

Plano de Fernando Araújo vai ser o derradeiro “teste”

A Ginecologia e Obstetrícia no Serviço Nacional de Saúde está, aos olhos de Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), num “estado negro”. Aliás, para o médico, a situação “piorou” mesmo face ao ano passado, sobretudo à boleia do plano de urgências e blocos de parto apresentado por Fernando Araújo, diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde.

De acordo com o plano Nascer em Segurança no SNS - Verão 2023, referente aos serviços de urgência de Ginecologia/Obstetrícia e blocos de parto, apenas 27 das 41 maternidades do país se vão manter em pleno funcionamento. O plano, desenhado para funcionar de junho até setembro, inclui 41 maternidades do país e prevê a ajuda de três unidades privadas na Região de Lisboa e Vale do Tejo.  No domingo este protocolo com os privados - exclusivo para grávidas de baixo risco - foi accionado no Hospital de Santa Maria, que enviou a primeira grávida para o Hospital da Luz.

No entanto, nenhuma grávida pode ir pelo seu pé para estas unidades privadas. Qualquer reencaminhamento é feito pelo CODU - Centro de Orientação de Doentes Urgentes. Além disso, todos os dias, os privados têm de informar os organismos do Ministério da Saúde da capacidade de atendimento das grávidas. 

Para Nuno Clode, “vamos ter agora um teste” , não apenas com este plano da Direção-Executiva do SNS, mas também por ser um período de férias e por “não se ter avistado um aumento de pessoas ligadas aos serviços de obstetrícia do SNS”.

Aliás, Roque da Cunha diz não ter dúvidas de que o cenário é preocupante. “A Direção-Executiva do SNS, quando fala em reestruturação, na prática fala em encerramentos. Assistimos a isso no Algarve. Em Beja e em Évora são mais os dias em que as maternidades estão encerradas do que aqueles em que estão em funcionamento, o que causa uma pressão acrescida a um super já debilitado serviço de Obstetrícia de Setúbal, onde deveriam estar 22 obstetras e estão dez, oito dos quais com mais 55 anos a fazer urgência”, afirma, dizendo que o cenário é ainda mais tenso na região de Lisboa e Vale do Tejo.

Segundo o sindicalista, “no [Hospital Prof. Doutor] Fernando Fonseca, no Garcia de Orta, na área metropolitana de Lisboa, mesmo com planos de encerramento, em muitos dos dias [os serviços de obstetrícia] não conseguem manter as escalas mínimas para assegurar essa abertura”. E critica o facto de se estar a recorrer a profissionais do Norte do país para fazer frente às falhas na zona de Lisboa. “O que perturba nesta situação é transmitir-se publicamente que é possível colmatar estas equipas com vinda de médicos do Norte. Nos locais onde isto terá ocorrido, terão vindo médicos a auferir 100 euros à hora  e com transporte garantido, o que não é solução”, vinca.

Um dos mais recentes casos é de uma médica ginecologista da zona do Porto que veio de motorista fazer a escala de um colega a Loures, ao Hospital Beatriz Ângelo, tal como a CNN Portugal noticiou.

Privados são apenas “medida paliativa”

Os três especialistas são unânimes num outro ponto: o recurso aos hospitais privados para a realização de partos não é uma solução - embora tenha sido o caminho encontrado por milhares de grávidas, representando já quase 30% dos partos em Lisboa e Vale do Tejo.

“Os privados não são uma solução, já estão assoberbados com as grávidas do SNS, que com o receio daquilo que lhes possa acontecer, vão usar o seu seguro para terem partos mais tranquilos”, adianta presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMF).

Nuno Clode diz que, este verão, “vai haver um aumento de partos nas entidades privadas”, mas alerta para a possibilidade destas “não conseguirem dar apoio" por não terem "capacidade para mais”.

Jorge Roque da Cunha garante que, ao contrário do que Marta Temido dizia no ano passado, “a situação” da Ginecologia e Obstetrícia “não é conjuntural". Enquanto "não se resolverem as questões estruturais”, como o reforço de equipas e a atualização salarial dos médicos, “a situação vai piorar em vez de melhorar”, adverte. “E a medida que consideram de emergência, a de recorrer ao setor privado, é um cuidado paliativo”, vinca.

Profissionais continuam exaustos

Ginecologia e Obstetrícia continua a ser uma das especialidades mais críticas no setor público: é uma classe envelhecida e as escalas de urgência nem sempre são preenchidas, o que sobrecarrega os mais novos. E são esses mesmos os que mais captam a atenção do setor privado, que tem procurado internos desta especialidade.

“Sem dúvida é uma das áreas mais sensíveis”, diz Joana Bordalo e Sá. “Temos uma classe de colegas no SNS muito envelhecida e o grande problema é a atração de jovens médicos, que é transversal a toda as áreas, mas em Ginecologia e Obstetrícia a resposta tem de ser imediata, pois os bebés têm de nascer em segurança e as grávidas têm de ser acompanhadas”, acrescenta.

Segundo a especialista.“muitos” colegas com mais de 55 anos“ ainda fazem urgência com todo o esforço, por amor à camisola” e para não tornar o cenário ainda mais negro, apesar de se confrontarem cada vez com maior sobrecarga de trabalho e com mais horas de trabalho.

A questão das horas extra mencionadas pelos especialistas do Hospital Santa Maria não é de agora, nem tão pouco uma realidade exclusiva a esta unidade hospitalar lisboeta. Nas urgências de Obstetrícia, os especialistas vivem numa permanente “situação de guerra”, onde o cansaço e a desmotivação são transversais.

Para Jorge Roque da Cunha, se a situação destes profissionais já era no ano passado preocupante, este ano espera-se que seja pior:  “Agora tem menos médicos do que no ano passado”, seja por rescisões ou por aposentações.

Enfermeiros a realizar partos de baixo risco divide opiniões - mas não causa ansiedade às grávidas

Pelo meio de todo o caos instalado nos serviços de Ginecologia e Obstetrícia dos hospitais públicos, surgiu um tema que incendiou ainda mais: a possibilidade de os enfermeiros tratarem dos partos de baixo risco.

No mês passado, Direção-Geral da Saúde (DGS) emitiu uma norma (com caráter orientativo e não obrigatório) na qual refere que os enfermeiros vão passar a realizar partos de baixo risco, desde o momento do internamento hospitalar da grávida até às primeiras horas de vida do recém-nascido. Esta mesma norma levou a que a Ordem dos Médicos retirasse a confiança a Diogo Ayres de Campos, coordenador do projeto, que revelou à Rádio Observador que a mesma irá ser revista para que não haja falhas de comunicação, embora defenda que foi aprovada com “consenso” dos presentes nas reuniões. “É frequente” que uma norma seja revista, disse, explicando que já estavam a trabalhar na revisão  do documento. 

Tal como já tinha dito numa entrevista ao Público, Diogo Ayres de Campos defendeu que a realização de partos de baixo risco por parte de enfermeiros especializados em saúde materna “é uma prática recorrente", nos hospitais que "acontece há décadas em Portugal”. No entanto, esta é uma matéria que divide opiniões, apesar de os especialistas defenderem que não é motivo de inquietação para as grávidas.

Nuno Clode esteve na elaboração da norma, enquanto presidente da SPOMMF e diz que a entidade “concorda” com a mesma “É uma mais-valia no sentido de estabelecer regras e atitudes no trabalho de parto, sejam conduzido por médicos e por enfermeiros”.

Tal como Diogo Ayres Pereira disse, também o obstetra lembra que esta prática em partos de baixo risco “já existe em quase todas as maternidades do país", "Aliás, no Garcia de Orta desde sempre que o internamento é feito por enfermeiros especializados e muitas vezes são eles quem dão a alta” Por isso considera que "para as grávidas, isto é um assunto que não é importante, o que poderão sentir é que há alguma discussão [sobre o tema]”, diz.

Já Jorge Roque da Cunha defende que “não pode estar nas mãos de um enfermeiro a decisão do tipo de parto”, pois, a seu ver, seria “uma diminuição dos cuidados” prestados. O dirigente do SIM espera que “essa norma seja clarificada. "Não queremos alimentar querelas entre médicos e enfermeiros, mas garantir que as grávidas têm médicos como decisores sobre o parto, claro que com a participação de enfermeiros”.

A presidente da FNAM, Joana Bordalo e Sá, também defende que “não é suposto compensar a falta de médicos com enfermeiros”. O importante, sublinha,  é haver uma equipa variada no acompanhamento das grávidas e dos bebés que trabalhem em segurança.”

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