Urgências de Obstetrícia: SNS tem especialistas, mas vivem em permanente "situação de guerra" e os "soldados estão cansados e desmotivados"

15 jun 2022, 07:00
Parto, Obstetra, bebé, maternidade. Foto: BSIP/Education Images/Universal Images Group via Getty Images

O caos está instalado, com os hospitais públicos sem médicos com idade para fazerem urgências por terem perdido os mais novos para o privado, Estudo publicado pela Ordem dos Médicos garante que é urgente começar a formar para garantir que em 2035 há especialistas para as necessidades do país

Urgências de obstetrícia e ginecologia encerradas ou amplamente condicionadas, hospitais perto no limite, utentes encaminhados para unidades a largos quilómetros de distância, falta de médicos e dificuldades em completar escalas. Os últimos dias têm sido caóticos em alguns hospitais e os médicos avisam que se nada for feito os cuidados de saúde correm o risco de colapsar. Em causa, garantem, está um desequilíbrio etário dos médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde.

A situação repete-se há dois, três e quatro anos. O problema arrasta-se há muito tempo”, começa por dizer Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal.

A falta de médicos para as escalas tem vindo a ser apontada como um dos motivos para este cenário, mas um estudo publicado em maio deste ano na Acta Médica Portuguesa vem revelar que, na verdade, “em Portugal não há falta de especialistas de Ginecologia-Obstetrícia em número absoluto”, seja no público ou no privado, mas há um problema que merece atenção e cujo impacto se faz já sentir e tende a agravar-se a longo prazo: a idade de uma boa parte dos médicos de ginecologia e obstetrícia que estão nos hospitais que lhes permite recusar fazer escalas de urgência. 

“Existe um elevado número de especialistas com idade igual ou superior a 55 anos [46%], que tem direito a deixar de prestar atividade nos Serviços de Urgência, e de assimetrias regionais, que contribuem para que continuem a existir algumas carências destes profissionais em vários serviços, nomeadamente em hospitais públicos”, lê-se no estudo português Características Demográficas e Profissionais dos Especialistas em Ginecologia-Obstetrícia Registados em Portugal: Necessidades, Recursos e Desafios, levado a cabo pelo Colégio de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos.

Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), explica que “os médicos começam a fazer urgência no primeiro ano de internato e, em função de dados internacionais, manda o bom sendo que, a partir dos 50 anos, possam deixar a urgência noturna e a partir dos 55 anos deixem de fazer urgência geral”, mas isso nem sempre acontece por cá.

Em Portugal e dada a grande carência de profissionais de saúde, dada a incapacidade do SNS nos últimos ano de captar recém especialistas, muitos dos médicos mais velhos continuam a fazer urgências", diz, dando o exemplo concreto do serviço de obstetrícia de Setúbal, onde havia 13 médicos e passados seis meses dois deles reformaram-se, dois rescindiram e apenas foi contratada uma médica. "Ficaram dez médicos e, desses, nove têm 55 anos. Todos fazem urgência noturna”.

O médico Nuno Clode também aponta a idade como um dos calcanhares de Aquiles, mas sobretudo porque, reforça, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não tem sido capaz de manter diversidade etárias nas equipas, uma vez que os médicos jovens com experiência tendem a sair para o privado.

“A experiência tem de ser passada, tem de haver orientação [para os médicos mais novos], porque a obstetrícia hospitalar está cheia de situações críticas, como aconteceu com o bebé nas Caldas [da Rainha]”, reconhece Nuno Clode. O médico obstetra e presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal explica que, “há uns anos, toda uma faixa geracional saiu [do SNS] com a abertura dos privados” e isso criou uma discrepância nas idades dos que ficam nos serviços de urgência públicos: demasiado novos e demasiado velhos.

A CNN Portugal contactou a Ordem dos Médicos para saber se há algum levantamento do número de clínicos acima dos 55 anos que não entraram nas escalas do serviço de urgência de ginecologia e obstetrícia, mas o organismo disse não ter esses dados. 

Embora aquele trabalho publicado na OM tenha sido feito em instituições públicas, privadas e público-privadas, os autores defendem que “é possível colmatar os défices identificados neste estudo com a capacidade formativa instalada, que ultrapassa largamente as necessidades". Mas avisam que "a normalização total da situação só será possível com a contratação regular de novos especialistas”, até porque, dizem, “espera-se um aumento das necessidades de especialistas, na ordem dos 7%. Isto tendo em conta as previsões de ecografias, partos, cirurgias e consultas de ginecologia que terão de ser feitas.

Para isso, os autores do trabalho concluíram que em 2035 "serão necessários 1.139 especialistas a nível nacional (público, público-privado e privado), em regime de 40 horas semanais, idealmente, não mais do que 510 (47%) com idade igual ou superior a 55 anos". E para conseguir esse número de especialistas "será necessário formar 33 novos especialistas por ano”, garantem.

Médicos em permanente "situação de guerra"

Para Jorge Roque da Cunha, este vai ser mais um problema. “Será possível aumentar o número de especialistas a formar por ano, mas está nas mãos do Ministério da Saúde criar as condições para isso”, diz, apressando-se a avisar que o mais certo é que tal não aconteça. “No ano passado rescindiram 1.000 médicos e no próximo ano vão reformar-se 1.800 médicos hospitalares. Ficam com o concurso com metade das vagas por preencher", sublinha, acusando os governantes: "Enganam os portugueses quando dizem que a solução é contratar médicos, pois os que vão ser contratados daqui a um mês são os internos do último ano que já estão no sistema. Mais uma vez, é uma coluna de fumo que é lançada para os olhos dos portugueses”.

O que pedem aos médicos é como estar permanentemente numa situação de guerra, a lutar por uma causa que é o SNS, que é fundamental, mas a questão é que o general tem de ter esta perspetiva e dar o litro, senão os soldados ficam cansados e desmotivados”, diz Nuno Clode, referindo-se ao Estado, que acusa de não “prestar atenção” a um problema que se repete de ano para ano. “O primeiro-ministro só se apercebeu agora de que é um problema grave”, lamenta.

Segundo os dados do Portal da Transparência, para este ano são esperadas 25 aposentações de médicos especialistas em ginecologia/obstetrícia. Em 2023 está prevista a aposentação de 26 médicos ginecologistas e obstetras, mais 17 em 2024 e 37 em 2025. Ou seja, nos próximos três anos irão reformar-se 80 médicos desta especialidade. Nos dez anos seguintes são esperadas 206 reformas só nesta especialidade.

“Daqui a uns anos, se o SNS for capaz de chamar os jovens médicos, fica com esse problema resolvido”, diz Nuno Clode.

Jovens “empurrados” para o privado

Segundo o documento Estatísticas de Saúde 2020 do Instituto Nacional de Saúde, publicado este ano, no final de 2020, o pessoal ao serviço nos hospitais era composto por 26.249 médicos (mais 15,9% do que em 2010) e a maioria (70,8%) eram médicos especialistas. No que diz respeito às especialidades, o documento diz que entre os 18.575 médicos especialistas em exercício nos hospitais em 2020, 5,7% deram da área de ginecologia-obstetrícia - o que equivale a 1.058 médicos. Em 2018 existiam 1.143 especialistas nos hospitais portugueses, 234 dos quais em hospitais privados. 

Em julho de 2021, foram abertas 46 vagas hospitalares para ginecologia/obstetrícia e nenhuma ficou por preencher. Já em agosto de 2019, apenas 14 dos 31 postos de trabalho para ginecologia e obstetrícia foram preenchidos. Na altura, noticiou o Diário de Notícias (DN), as urgências de obstetrícia de Lisboa estiveram para fechar de forma rotativa por falta de especialistas - situação que, na altura, Miguel Guimarães disse que ultrapassava o limite do aceitável e que, em 2018, foi ponderada pelo Hospital Santa Maria, em Lisboa, por falta de médicos. Ainda em 2019, noticiou o Público, das 16 vagas para médicos recém-especialistas que as quatro maternidades de Lisboa receberam para as áreas de ginecologia/obstetrícia e anestesia, perto de um terço ficou por preencher, sendo que a escassez de profissionais desta área era também uma realidade no norte e centro. No ano passado, no primeiro fim de semana de setembro, todos os hospitais da área da Grande Lisboa estiveram sem capacidade de receber urgências de Obstetrícia/Ginecologia e em 2019 o cenário foi semelhante.

A CNN Portugal contactou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) para obter dados oficiais sobre concursos e vagas para as especialidades de obstetrícia e ginecologia, mas não obteve resposta. Porém, Nuno Clode diz que a falta de obstetras é uma realidade (já antiga), mas sublinha que o cerne da questão está sobretudo na idade dos profissionais, notando que a situação tende a agravar-se, sobretudo com a saída de médicos para o privado e com a exaustão de quem fica no SNS.

Aquele estudo indica que 34% dos médicos obstetras-ginecologistas dedicam 30% do seu tempo ao serviço de urgência e 48% dedicam 75% do seu tempo no hospital ao serviço de urgência. E isso é também um problema, não só para esta especialidade, como para a medicina pública em geral. “À medida que os anos passam, os médicos vão ficando mais cansados. A urgência, quer de obstetrícia ou de qualquer outra especialidade, faz parte da componente clínica e os médicos cada vez querem fazer menos urgência”, reforça Nuno Clode. 

“Os médicos têm direito a ter descanso, a acompanhar os filhos, a ter uma vida social e familiar normal, coisa que no SNS não se tem conseguido, muitos deles fazem 500 horas extra por ano, isso são mais três meses a trabalhar oito horas por dia num ano”, critica o sindicalista.

A dificuldade em fazer escalas de urgência tem sido apontada pelos hospitais como motivo para o caos recente. A escala desta especialidade é feita consoante as diretrizes da Ordem dos Médicos, que estipulam o número de partos anuais realizado no hospital como bitola para calcular o número de clínicos necessários, podendo ir de dois a seis médicos, por exemplo.

Maternidades e urgências sem escalas completas é "quase uma rotina"

Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, alertou, em declarações à agência Lusa, que, nos últimos meses, se têm multiplicado as situações de maternidades sem escalas completas, sem planos de contingência e que tiveram de encerrar as urgências. “Agora que se aproxima o verão, vamos perceber que isto poderá ser quase uma rotina e não uma exceção”, avisou.

A atratividade do SNS e a falta de condições são cada vez mais penosas e faz com que as pessoas vão saindo. Uma pessoa não pode fazer urgência de 24h a cada 48h. Não é humanamente possível”, alerta Nuno Clode

Quando questionado sobre os motivos que levam os ginecologistas e obstetras a sair do SNS assim que ganham experiência e autonomia, Nuno Clode descarta a questão salarial. “Querem uma vida mais calma, mais orientada, não é uma questão de salário”, diz. O médico destaca que o SNS tem as suas vantagens - “como a capacidade de se formar e formar outros, de se dedicar a estudar os casos” -,  mas frisa que “no privado há mais sossego, mais reconhecimento, que é fundamental, e uma vida mais calma”. 

“A partir da altura em que [o médico] adquiriu a experiência, o que quer é uma vida mais calma e reconhecimento”, acabando por trocar o SNS pelo privado, reconhece Nuno Clode.

O grande responsável é o Ministério da Saúde, nada tem feito a reverter essa situação. Com salários de 1800 euros líquidos e 40h de trabalho semanal não conseguem captar profissionais que são altamente desejado no estranguieto, onde têm reconhecimento. Os médicos não só saltam [para o privado] como são empurrados pelo Ministério da Saúde, não só por causa dos salários, mas não havendo investimento em equipamentos, em instalações, no apoio à formação desses médicos, são empurrados para o privado. O governo estimula-os a estar na precariedade e a serem prestadores de serviços”, critica Jorge Roque da Cunha, do SIM.

O médico e sindicalista destaca ainda que “os concursos têm ficado desertos em termos hospitalares em 50%, em obstetrícia ficaram 70% ocupados” e que esta situação “deveria fazer pensar os responsáveis do Ministério da Saúde”. “Isto acontece nos últimos 10 anos”, diz. 

Obstetrícia e Ginecologia em falta um pouco por todo o país

Desde o final da semana passada que vários hospitais em Portugal têm apresentado dificuldades e constrangimentos nas urgências de obstetrícia e ginecologia. Lisboa e Vale do Tejo é a região mais afetada - no Garcia de Orta vão ficar novamente encerradas -, mas o problema é comum de norte a sul. No caso do Hospital de Braga, o alerta para o caos já tinha sido dado no final de maio: a Ordem dos Médicos anunciou que o hospital “terá imposto escalas de urgência de Ginecologia/Obstetrícia abaixo do mínimo de segurança estabelecido”. Em Portimão, por exemplo, as urgências de obstetrícia encerram esta terça-feira a partir das 21:00 e a situação deve prolongar-se, pelo menos, até à próxima segunda-feira.

“Em 2018/2019 foi exatamente a mesma conversa sem tirar nem pôr, lembro-me de haver reuniões com o presidente da ARS Sul e ARS LVT, é um problema que se vai repetindo e a tutela não se tem apercebido”, recorda Nuno Clode.

A própria ministra da Saúde Marta Temido reconheceu que este não é um problema de hoje. “Sabemos que estes constrangimentos, não sendo de hoje, estão agora numa fase mais nítida e aguda”, disse esta segunda-feira, em declarações aos jornalistas, lembrando os dois anos de pandemia que obrigaram ao adiamento de medidas que o Governo queria ter implementado mais cedo. Face à situação atual, o Ministério da Saúde vai criar plano de contingência, que estará em curso nos meses de junho, julho, agosto e setembro, e que visa um “funcionamento mais articulado e antecipado das urgências em rede do SNS, eventualmente com precaução de questões remuneratórias associadas”.

“Todos os dias há hospitais que divulgam as dificuldades a nível de recursos humanos. Nós estamos numa altura em que temos de olhar para o SNS”, confirmou à CNN Portugal o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. 

Num panorama geral, dos 1.073 novos postos a concurso em 2021, apenas 697 foram preenchidos, ficando cerca de 35% vagas por ocupar.  Também o ano passado houve concurso para os médicos escolherem a especialidade e dos 2.462 candidatos potenciais para o concurso, perto de 600 candidatos desistiram antes ou durante o processo, tendo ficado 50 vagas desertas, alertou a OM. Em 2019 o cenário foi idêntico: das 1.294 vagas para médicos recém-especialistas, mais de metade ficaram por preencher, avançou na altura o DN.

Escassez de pediatras no Algarve, ortopedistas em Santarém e no Garcia de Orta e condicionamentos nas urgências de cirurgia no Amadora-Sintra são alguns exemplos do que parece apontar para a falta de médicos, tal como noticiou a CNN Portugal. A Ordem dos Médicos diz que há mais cinco mil médicos em Portugal desde 2018, mas que há também mais unidades privadas, o que tira profissionais ao SNS.

Foi a 1 de maio de 2021 que terminou a proibição de saída de médicos do sector público, então imposta por causa do estado de emergência. Em seis meses, em média, dois médicos desistiram do Serviço Nacional de Saúde (SNS) por dia. Em seis meses foram 400 os médicos que trocaram o público pelo privado.

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