Cem dias de solidão?

3 jun 2022, 17:24

O apoio à Ucrânia e a batalha pelo Donbass

Enquanto ferozes combates urbanos e uma chuva de fogo, interminável, arrasam do mapa uma nova cidade-mártir, Severodonetsk, tornada nova Mariupol, com centenas de pessoas novamente abrigadas nas profundezas de um complexo industrial segurado pelas réstias de resistência à espera do armamento pesado que, acreditam, pode travar ou, pelo menos, fixar a ofensiva e conter avanços no terreno, a Ucrânia, invadida, resiste, cem dias depois de ter sido atirada para a imensa solidão de uma frente de batalha que ninguém concebe, nestes tempos - apenas a Rússia, orgulhosamente só na sua condição de beligerante invasora, líder apátrida da desordem mundial.

Cem dias depois, o presente adensa a encruzilhada das definições estratégicas quanto ao futuro, turva a visão dos próximos passos na vontade de manter as retaliações possíveis. Nos bastidores internacionais, a angústia da incerteza sobre o caminho a seguir, a insustentável sensação que questiona se se chegou ao final da linha de apoio. E o desfecho que há de ser imposto por essa convicção. Assim, na retaguarda, distante da guerra, ensaiam-se manobras de pressão: as concessões territoriais que permitirão findar o conflito, indiferentes à soberania e à autodeterminação de um povo; os apoios militares que têm limites, devido aos receios de hostilizar mais o invasor; a definição concreta da integração europeia do solitário invadido; a margem de manobra e a criatividade para decretar novas sanções.

Do lado americano, apesar do apoio constante e colossal, raro sinal de consenso entre republicanos e democratas, escrevem-se as linhas vermelhas que não tinham realmente de ser mencionadas, na tentativa de uma irredutível firmeza - mas acabando, inevitavelmente, por mostrar parte fraca a um inimigo, do outro lado, capaz de obliterar o mundo pelo holocausto nuclear.

E na frente europeia, apesar do apoio constante e até histórico, pela tardia vontade de mudar dependências financiadas ao longo dos anos não obstante os sinais de alerta mais do que evidentes, declara-se vitória no último embargo, arrancado ao preço de um livre-trânsito ao líder da oposição interna, a Hungria. Uma vitória parcial e momentânea, pelo momento que há de vir: o desafio do gás - que importa mais e que ninguém, por ora, pretende realmente discutir. Mas esse desafio, ainda extemporâneo, há de chegar, ao preço de ainda maiores oposições e de consensos cada vez mais difíceis. Porventura o reflexo de um apoio constante à beira do embargo.

E assim, cem dias depois, a Ucrânia, invadida, apesar de manter a atenção do mundo, questiona se este, algum dia, se tornará indiferente à sua imensa solidão. Apostando no prolongamento extenuante da ofensiva no Donbass, estará o invasor também a contar com essa indiferença?

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