Há 3 dias que há protestos na China. "Xi irá preparar medidas severas para contra-atacar"

28 nov 2022, 05:09

A última noite voltou a ser marcada por vigílias, protestos e confrontos com a polícia em cidades como Xangai e Pequim. Há slogans contra a política de covid zero, mas também contra Xi Jinping e o Partido Comunista

Centenas de pessoas voltaram a manifestar-se na noite passada em Xangai contra as políticas de covid zero que mantêm a China sob uma espécie de sequestro domiciliário intermitente há quase três anos. Um pouco por todo o país os manifestantes voltaram a encher ruas com cânticos contra as políticas anti-covid, e exibindo cartazes e folhas de papel em branco - a nova forma subtil de denunciar a ausência de liberdade de expressão no país. Domingo foi o terceiro dia consecutivo de agitação nas ruas, em vários casos com confrontos com a polícia, que tem agredido os manifestantes e efetuado inúmeras detenções. Um jornalista inglês ao serviço da BBC também foi detido enquanto trabalhava, tendo sido agredido pela polícia durante a detenção.

Em simultâneo, às primeiras horas desta segunda-feira (tarde de domingo em Lisboa), pelo menos dois grupos de manifestantes ainda protestavam em Pequim, recusando-se a dispersar, apesar do forte aparato policial e de múltiplas detenções. Ao longo de todo o fim de semana, a capital chinesa já tinha assistido aos protestos de estudantes universitários, tal como aconteceu em dezenas de universidades em diversos pontos da China.

As palavras de ordem contra os rigorosos confinamentos anti-covid evoluíram, entretanto, para slogans contra o poder absoluto de Xi Jinping e do Partido Comunista Chinês. De "Não queremos máscaras, queremos liberdade. Não queremos testes COVID, queremos liberdade", alguns grupos de manifestantes evoluíram para cânticos visando diretamente o líder chinês e o partido único, o que constitui um crime segundo a lei chinesa. 

Em Xangai e Pequim, mas também em cidades como Wuhan, Guangzhou e Chengdu, ouviram-se multidões a gritar "Demite-te, Xi Jinping! Demite-te, Partido Comunista", num desafio sem precedentes desde que o poder político fechou o país em resposta à pandemia de covid-19. “Não queremos ditadura, queremos democracia” é outra das palavras de ordem destes três dias. Alguns vídeos mostram as pessoas a cantar o hino nacional da China e A Internacional, ao mesmo tempo de mostravam faixas com palavras de ordem, ou os tais cartazes em branco que parecem ser a nova tendência desta onda de protestos.

"Nós, chineses, precisamos de ser mais corajosos!"

Num gesto inédito, em Xangai viram-se dezenas de pessoas a insurgir-se com a polícia, arrancando das mãos dos agentes diversos manifestantes quando estes estavam a ser presos. Há bastantes vídeos que documentam este jogo do gato e do rato: polícias cercando um manifestante, e a detê-lo, e os demais a libertá-lo e a fazer um cordão de proteção. Apesar da coragem demonstrada nestas ações, foram muitas as prisões efetuadas em Xangai e noutras cidades. “Libertem-nos!” tornou-se outra das palavras de ordem gritadas pelas multidões.

A CNN Internacional dá conta de outro vídeo em que um homem, com um ramo de crisântemos, fazia um discurso enquanto caminhava numa rua de Xangai, e um polícia tentava detê-lo. "Temos de ser mais corajosos! Estou a infringir a lei ao segurar flores?" perguntou o homem à multidão, que respondeu: "Não!" "Nós, chineses, precisamos de ser mais corajosos!" repetiu o manifestante, sob aplausos. "Tantos de nós foram presos ontem. Estarão eles sem trabalho ou sem família? Não devemos ter medo!”

Os jornalistas que têm feito a cobertura das manifestações em Xangai dão conta de que a atuação da polícia se tornou mais musculada ao longo do fim de semana. Na sexta-feira e no sábado, aparentemente surpreendida pela dimensão das manifestações, a polícia tentou dispersar as multidões, separando-as em grupos mais pequenos e condicionando o seu espaço. Mas no domingo, de cada vez que havia concentração de pessoas nalgum ponto da cidade, a polícia chegou mais depressa, e usou de imediato da violência, começando logo a fazer detenções.

Longa lista de mortes por excesso de zelo

A vaga de manifestações começou na sexta-feira em Urumqi, a capital da longínqua região de Xinjiang, no ocidente da China, depois de um incêndio num prédio de habitação da cidade ter provocado a morte de dez pessoas que não puderam ser salvas pelos bombeiros por causa das regras do confinamento obrigatório. Outras nove pessoas ficaram feridas.

Urumqi foi palco das primeiras grandes manifestações de revolta após o fogo, e acabou por ser tornar um símbolo nacional do sofrimento imposto às populações pela política de covid zero. Com a raiva acrescida no caso de Xinjiang, tendo em conta que esta província está sob lockdown rigoroso há mais de 100 dias.

Ao longo dos últimos meses foram já vários os momentos de indignação e fúria por causa de mortes provocadas por excesso de zelo das autoridades nas regras anti-covid. Em setembro, um autocarro que levava pessoas para um centro de quarentena durante a madrugada despistou-se, matando 27 passageiros. Na semana passada, uma bebé de quatro meses morreu após sofrer vómitos e diarreia enquanto estava em quarentena num centro de confinamento Zhengzhou – o seu pai demorou 11 horas a obter ajuda: depois de os serviços de emergência não terem conseguido resolver a situação, a criança ela foi levada para um hospital a 100 quilómetros de distância, acabando por morrer. Já no início do mês uma criança de três anos havia morrido em circunstâncias semelhantes - depois de o menino ter inalado dióxido de carbono, devido a uma fuga de gás, o pai foi impedido durante várias horas de o levar ao hospital porque o seu prédio de habitação estava sob confinamento, e os serviços de emergência não responderam aos seus apelos.

E em setembro, quando a cidade de Chengdu foi abalada por um forte tremor de terra, as autoridades locais travaram os cidadãos que tentavam sair das suas habitações em busca de segurança, pois estava em vigor um lockdown. Polícias e agentes da autoridade sanitária gritaram com os habitantes de diversos edifícios, impedindo-os de fugir para a rua para que não fossem violadas as regras de confinamento domiciliário. Por sorte o excesso de zelo não provocou mortes, mas levantou uma onda de indignação a nível nacional, que acabou por ser abafada pela forte censura da comunicação social e das redes sociais.

Não por acaso, Chengdu foi palco de grandes protestos este fim de semana. Numa concentração nas margens do rio, uma multidão gritava frases como "Oposição à ditadura", "Não queremos governantes para toda a vida" e “Não queremos imperadores". As alusões a Xi Jinping eram evidentes.

O momento Tiananmen de Xi?

Apesar de algumas proclamações vagas sobre a necessidade de tornar as regras anti-covid mais científicas e orientadas, as autoridades não se mostram dispostas a abdicar dos confinamentos e testagem obrigatória de milhões de pessoas em bairros e regiões inteiras, sobretudo num momento em que o número de novos casos em todo o país ultrapassou os 40 mil por dia, naquela que é a pior vaga da pandemia desde o seu início. 

Apesar do pico de casos, na sua esmagadora maioria são infeções assintomáticas. Por outro lado, o rácio de casos face à população é extremamente baixo pelos padrões do resto do mundo – mas não pela bitola de Xi Jinping, que fez do combate à covid uma bandeira política, proclamou a sua política como um enorme sucesso, e não se mostra disposto a fazer inversão de marcha.

Xi Jinping, que acabou de ser reeleito para um terceiro mandato inédito como secretário-geral do PCC e líder supremo da China, enfrenta a mais grave vaga de contestação popular desde que assumiu o poder há dez anos. E, desta vez, não se trata de manifestações pontuais numa região apenas, como em 2019, em Hong Kong: as vigílias, manifestações, confrontos com a polícia estão a acontecer em diversas regiões, desde as metrópoles de Xangai e Pequim até a reprimida região de Xinjiang ou a província industrial de Henan. 

Por outro lado, as manifestações parecem reunir gente de várias origens e estratos sociais, reunidas pela raiva contra as autoridades e incapacidade de suportar por mais tempo os contínuos confinamentos e outras medidas restritivas. Em Xinjiang, por exemplo, era notória a presença nos protestos de muita gente da etnia han, a maior etnia da China (a mesma de Xi), que normalmente não participa em manifestações nesta região onde a principal resistência ao governo vem da martirizada comunidade muçulmana uigur. 

Pela primeira vez ao fim de muitos anos de repressão de Pequim sobre Xinjiang, um residente em Urumqi, que esteve nos protestos, contou que o que se passa agora é "diferente". "Parece que todos estão revoltados, e que estão todos a falar juntos, embora em lugares diferentes.” Não apenas em Xinjiang, mas em diversas regiões: “Esta é a primeira vez que vejo todo o país a manifestar-se em conjunto.”

Em vários locais do país há uma onda de desobediência civil sem precedentes na última década. O momento mais crítica de contestação popular às regras de covid zero foram os dois meses de lockdown de Xangai, em abril e maio - mas, desta vez, o cenário de Xangai está a repetir-se em muitas outras cidades, e a censura chinesa não tem conseguido responder suficientemente depressa para impedir os vídeos desses protestos de chegarem às redes sociais do país.

Vídeos e fotografias das manifestações permaneceram em linha mais tempo do que normalmente aconteceria. Milhões de mensagens partilhadas nas redes sociais deram conta de tumultos, com muitos vídeos de protestos, repressão e prisões - acabaram por ser apagados pelos censores, mas antes foram partilhados por inúmeros utilizadores, e continuam a ser reproduzidos nas redes sociais ocidentais.

Este é o mais sério desafio ao poder pessoal de Xi Jinping, que é o principal responsável pelo desenho, implementação e manutenção da política de covid zero. Para além do impacto político e social, a insistência em manter o país fechado à covid, na esperança de erradicar o vírus, em vez de aprender a viver com ele, está a ter um impacto cada vez mais penalizador sobre o desempenho da segunda maior economia do mundo, que este ano terá o crescimento mais fraco das últimas quatro décadas.

E há mais de três décadas que a China não via nada de parecido. "Estes protestos são o maior ato de resistência na China desde as manifestações de Tiananmen em 1989", disse Wu Qiang, académico baseado em Pequim e antigo professor da Universidade de Tsinghua, que viveu o célebre movimento pró-democracia de há 33 anos. 

As situações são distintas, mas o desafio ao poder poderá ser comparável, e o impacto também. Em declarações ao jornal Nikkei Asia, Wu notou que os protestos de 1989 eram em defesa de valores abstratos, como liberdade e democracia, mas desta vez as exigências são mais concretas, o que pode fazer com que mais gente se identifique com o movimento. Por outro lado, é certo que nenhuma das manifestações do fim-de-semana teve uma dimensão comparável com as centenas de milhares que se juntaram na Praça Tiananmen - porém, Wu sublinha que estes protestos são mais descentralizados e diversificados. "Os protestos de Tiananmen foram liderados principalmente por estudantes de Pequim, enquanto que os protestos atuais são descentralizados e envolvem pessoas de várias classes sociais, incluindo trabalhadores migrantes, estudantes, pessoas da classe média, e mesmo residentes de Xinjiang, cujos direitos humanos têm sido ignorados pelo continente nos últimos cinco anos.”

Por outro lado, a aparente contenção da polícia e dos funcionários públicos na primeira resposta aos protestos levanta questões sobre se será possível reprimir esta vaga de forma sangrenta como aconteceu em 1989. Wu Guoguang, investigador no Centro de Stanford sobre Economia e Instituições da China, admite que o poder político em Pequim terá sido apanhado de surpresa pela forma como o fogo se alastrou, “razão pela qual não se moveram imediatamente”. Mas também coloca outra hipótese para explicar alguma complacência das autoridades num primeiro momento: pode estar, diz, relacionada com as frustrações dos próprios polícias e agentes de segurança sanitária com as políticas de covid dos últimos três anos.

O que fará Xi? Vai "contra-atacar"

Em 1989, Xi, então um obscuro quadro provincial do PCC, apoiou com entusiasmo a repressão dos manifestantes de Tiananmen. No mesmo ano, viu com preocupação a incapacidade dos regimes comunistas do Leste da Europa de esmagar as manifestações populares que puseram um fim à hegemonia dos partidos comunistas desses países, ditando o fim do Pacto de Varsóvia e da União Soviética. Xi defende ainda hoje que essa queda do comunismo na Europa foi uma tragédia, e lamenta o fim abrupto da URSS - responsabilizando por isso a falta de firmeza de Gorbachev.

Como irá agora Xi reagir a estes protestos? Em conformidade com o seu pensamento: provavelmente com toda a repressão que seja necessária, e solidificando ainda mais o seu controlo sobre o país. 

"De acordo com a lógica do sistema do Partido Comunista Chinês e o padrão de comportamento pessoal de Xi Jinping, acredito que Xi irá preparar medidas severas para contra-atacar", diz Wu Guoguang. "Ele poderá então empregar uma variedade de técnicas para apertar ainda mais o seu controlo geral sobre a sociedade".

Nos últimos anos, Xi reforçou o seu poder pessoal a um nível só comparável com Mao Tsetung - no recente congresso, Xi foi declarado como o “núcleo” do Partido Comunista Chinês (PCC). Por outro lado, devolveu ao PCC a centralidade em todos os aspetos da vida na China. Para além disso, acentuou a subjugação das Forças Armadas à agenda política do PCC e do seu líder. E montou a máquina de repressão e censura mais poderosa alguma vez à disposição de um líder político (o orçamento da China para segurança interna é superior a todo o orçamento militar do país).

Não é só o presente de Xi que indicia esse caminho repressivo. É também o seu passado. Em particular, no período crítico de Tiananmen e da queda do bloco de Leste. Quando viu a URSS desagregar-se, com o colapso do partido e da federação de países que a constituíra, Xi intuiu o risco que corria também o seu país, igualmente vasto, multi-étnico e complexo de gerir e manter colado. 

O colapso soviético às mãos de Gorbachev foi um choque para Xi - e é, sem dúvida, um trauma que partilha com o seu “amigo” Vladimir Putin. Consciente ou inconscientemente, Xi assumiu-se como o “anti-Gorbachev”, usando a expressão de François Bougon, autor do livro “Na Cabeça de Xi”, recém-editado em Portugal.

E, tal como Xi, também o PCC vive assombrado com o colapso da URSS. Na preparação para o congresso do mês passado, dirigentes do partido, dos mais diversos níveis, foram incentivados a ver um documentário sobre a desagregação da União Soviética. E esse continua a ser tema de intenso estudo por parte dos intelectuais do partido. 

Xi tem ideias bem firmes sobre as razões por que o Partido Comunista Soviético falhou e se “dispersou como um bando de pardais”. Houve várias causas, mas foi sobretudo por “niilismo histórico”: “Lenine e Estaline foram rejeitados” e “a confusão ideológica estava por todo o lado”. Para Xi, a confusão e a ausência de uma linha firme são a base de todos os males.

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