A contraofensiva da Ucrânia foi "demasiado romanceada". E o que acontece se falhar?

2 jul 2023, 08:00
Militar ucraniano (Yevhen Lubimov / Ukrinform/Future Publishing via Getty Images)

Um armistício, a internacionalização do conflito ou a contraofensiva à contraofensiva. O ataque ucraniano está aquém das expectativas para o Ocidente, Zelensky desvaloriza e os especialistas analisam o que pode acontecer a seguir

Contra milhares de minas, arame farpado, trincheiras típicas da I Guerra Mundial e posições de artilharia, milhares de soldados ucranianos avançaram para reconquistar a terra ocupada pelo exército russo. Mas o progresso tem sido “mais lento do que o desejado” e o presidente ucraniano sublinha que a operação não é “um filme de Hollywood”. Face aos recursos limitados, nomeadamente a falta de apoio aéreo, os especialistas começam a questionar-se sobre o que poderá acontecer caso a contraofensiva ucraniana falhe.

“Estamos a enfrentar uma guerra como nunca vimos, desde a Segunda Guerra Mundial. Os políticos ocidentais envolveram-se de tal forma que uma derrota da Ucrânia seria um descalabro político para o Ocidente. Podemos estar muito próximos da internacionalização do conflito”, alerta o major-general Agostinho Costa.

Apesar de se confessarem “otimistas” quanto ao rumo da contraofensiva ucraniana, fontes oficiais do exército norte-americano admitem que a operação não está a “corresponder às expetativas” e que as defesas russas se têm mostrado mais capazes do que o esperado, com o exército ucraniano a sofrer perdas significativas nos vastos campos de minas espalhados no sul do país.

Para o especialista em assuntos militares, um dos cenários possíveis é o aumento da ajuda ocidental à Ucrânia e uma escalada do conflito. E existem sinais de que isso pode mesmo estar prestes a acontecer, com os Estados Unidos mais perto de poderem enviar os mísseis de longo alcance ATACMS e os aliados a criarem uma coligação para o envio dos caças F-16. “Enquanto Washington quiser, a guerra continuará”, acredita Agostinho Costa.

Avião de combate F-16 norte-americano em exercício militar (Foto: Ronald Wittek/EPA)

Para o major-general Arnaut Moreira, é muito cedo para falar em fracasso da contraofensiva ucraniana, porque a vasta maioria das brigadas treinadas na Europa e formadas com equipamento militar ocidental ainda estão por utilizar. Segundo o especialista, isto deve-se ao facto de a Ucrânia continuar à procura de vulnerabilidades na linha da frente russa.

Numa guerra, a primeira vítima é sempre o plano inicial e, neste caso, não terá sido diferente. Arnaut Moreira defende que, momentos antes do arranque da tão aguardada contraofensiva, a Rússia implodiu a barragem de Nova Kakhovka de forma a travar um desembarque vindo de Kherson, que arriscasse abrir uma nova frente. Mas isso pode vir a colocar novos problemas no futuro.

"O rebentamento da barragem foi uma manobra de natureza conjuntural para resolver um problema a curto prazo, mas que abriu um novo, na região da central nuclear de Zaporizhzhia. O lodo vai secar e o terreno vai ser possível de transpor", explica, sublinhando que, em breve, os ucranianos vão tentar abrir aí uma nova frente. 

Mas isso pode mesmo vir a criar um novo problema à Ucrânia. Para o major-general, a central nuclear "nunca será entregue a funcionar" e acredita que a Rússia poderá mesmo destruí-la, criando "um problema humanitário extraordinário" à escala do de Chernobyl. "Tem todos os meios para o fazer", insiste.

A paz podre

Mas há quem defenda precisamente o oposto. Durante meses, tanto a Ucrânia como os seus aliados anteviram com expectativa a chegada de uma forte contraofensiva que rompesse violentamente as linhas defensivas russas no sul da Ucrânia e chegasse ao mar de Azov, cortando a ponte terrestre russa para a Crimeia, criada no início da guerra. Esta visão, defende o professor catedrático José Filipe Pinto, foi “demasiado romanceada”.

“Devido ao avanço lento da contraofensiva, é possível que haja um cansaço da ajuda. O elevado preço em termos humanos e orçamental pode levar vários líderes políticos a reequacionar as suas posições e querer sentar os dois lados à mesa”, considera o professor José Filipe Pinto, professor catedrático especialista em Relações Internacionais.

O Ocidente entendeu que esta operação seria uma espécie de blitzkrieg (guerra relâmpago) mas as tropas russas tiveram tempo suficiente para se entrincheirarem e minar o terreno, criando obstáculos difíceis de ultrapassar. O presidente Zelensky abordou esta preocupação na sua entrevista à BBC. "Alguns querem uma espécie de filme de Hollywood, mas as coisas não acontecem assim", disse.

Sem sucessos militares no terreno, os especialistas acreditam que a opinião pública – mesmo a que condena a invasão russa – pode começar a pressionar os seus líderes políticos para colocarem um travão na guerra. Mas o resultado não seria a paz, mas sim um mero silenciar das armas. Um armistício.

“Um acordo não traria a paz, mas haveria um armistício, que poderá congelar o conflito. As armas calam-se num primeiro momento, mas fica a pairar no ar um clima de guerra”, explica José Filipe Pinto.

Mas esta solução é algo que o Ocidente – e em particular o líder da Aliança Atlântica – diz reiteradamente que não será permitido. O presidente Volodymyr Zelensky tem verbalizado a intransigência ucraniana em negociar a paz, por defender que esta beneficiaria Moscovo. "Só há cessar-fogo com a retirada russa", reforçou Zelensky este mês, perante um emissário enviado pelo Papa Francisco. No entanto, depois de mais de um ano de guerra de constantes bombardeamentos contra a sua indústria militar, sabe que está dependente do apoio dos seus aliados para continuar o esforço de guerra.

Canhão de 155 mm ucraniano dispara sobre posições russas nos arredores de Bakhmut, no Donbass (Getty Images)

Por outro lado, a própria Rússia pode não estar interessada em manter o conflito, uma vez que este está a ter efeitos pesados para a economia e para a sociedade russa. Os objetivos iniciais de Moscovo, como a deposição do governo de Kiev, a desmilitarização da Ucrânia e a conquista de territórios que ligassem o seu território à Transnístria, estão longe de ser atingidos. Além disso, o recente caos lançado pelo líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, que aproximou a Rússia a uma quase guerra civil, aumenta ainda mais a pressão para que a Rússia negoceie a paz o mais cedo possível, tentando chegar à mesa das negociações a receber o máximo e dar o mínimo em troca. 

“A Rússia quer ficar definitivamente com a Crimeia e com Donetsk e Lugansk. A questão que se coloca é nas regiões de Kherson e Zaporizhzhia. Estamos numa situação muito parecida ao que aconteceu na Primeira Guerra Mundial, onde não houve paz, mas sim um armistício. Ao fim de 20 anos tivemos um novo conflito”, recorda o professor.

Contra-atacar a contraofensiva

Para o major-general Agostinho Costa, uma solução política na mesa de negociações para o conflito militar não está em cima da mesa num futuro próximo e poderemos mesmo ver “uma subida da parada”. O especialista em assuntos militares considera que a contraofensiva ucraniana está muito aquém das expectativas levantadas e isso pode fazer com que os russos queiram aproveitar um potencial momento de fraqueza ucraniana para lançar o seu próprio contra-ataque.

“O que vamos ver é uma subida da parada. Se a Ucrânia continuar a lançar as suas forças contra o que parece ser uma barreira intransponível e esgotar a sua capacidade ofensiva, a Rússia vai lançar uma contraofensiva logo de seguida”, aponta o major-general, que defende que o “ímpeto inicial” do ataque ucraniano está a esgotar-se.

Mas a Ucrânia ainda pode estar longe de esgotar o seu potencial ofensivo. O presidente russo reforçou precisamente essa posição, numa declaração à imprensa. Algumas estimativas sugerem que apenas um quarto das novas unidades ucranianas, reforçadas pelo treino e pelos fornecimentos da NATO, estão agora em combate. Isto pode indicar que a chefia militar ucraniana ainda está à procura de debilitar as linhas defensivas russas antes de aplicar a máxima pressão na frente de combate.

Mas, sem meios aéreos suficientes, o major-general Agostinho Costa acredita que a operação ucraniana “pode estar condenada ao desastre”. Com a vantagem nos céus, a liderança russa espera “esgotar” a capacidade ofensiva das tropas de Kiev, até chegar uma altura em que vê o lado ucraniano suficientemente fragilizado para iniciar operações ofensivas. Para o perito militar, Moscovo espera “começar a pressionar” com ataques de pequena dimensão em diversos pontos da linha da frente em simultâneo, de forma contínua e prolongada.

Soldados russos em Rostov (Getty Images)

"A Rússia espera um colapso do exército ucraniano para começar a pressionar. A Rússia vai começar devagar, porque o tempo beneficia-os. Uma contraofensiva russa será lenta e conquistará terreno lentamente”, antevê o major-general, que aponta as regiões de Zaporizhzhia, Mykolaiv e Odessa, como os objetivos preferenciais das chefias russas.

Em diversos momentos da guerra, a Ucrânia tem demonstrado a sua capacidade de adaptação aos desafios que lhe foram aparecendo. Por isso, Agostinho Costa não descarta que os líderes militares ucranianos “mudem o tipo de guerra” e passem a uma estratégia mais defensiva, criando uma “grande dor de cabeça” ao exército russo. 

"O cenário mais provável é uma ofensiva russa, talvez no verão ou no inverno. Quando a Rússia chegar à conclusão que acabou a capacidade ofensiva da Ucrânia, vão-se lançar na ofensiva com um grande número de forças", frisa Agostinho Costa.

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