Mais de um ano depois do início da guerra, a produção de munições no ocidente ainda não é suficiente para as necessidades da Ucrânia e os líderes da indústria militar já falam em dez anos para conseguir recuperar os armazéns ocidentais
Depois da Coreia do Sul ou Israel, os Estados Unidos estão a virar-se para o Japão para tentar garantir o fornecimento de centenas de milhares das tão necessárias munições de 155 milímetros, utilizadas para apoiar a ofensiva ucraniana. Para os especialistas, este gesto, que passou quase despercebido, pode ser indicador de que a indústria militar ocidental pode não ter capacidade de produção necessária e os aliados precisam de procurar cada vez mais fundo em depósitos de terceiros para colmatar essa urgência.
“Corremos o risco de ficar sem munições a curto prazo. O ocidente está a ser lento a reagir e o tempo está a favorecer os russos. A base industrial do ocidente é incomparavelmente superior à Rússia, mas esta preparou-se durante anos. As reservas aliadas não estão bem”, afirma o major-general Agostinho Costa, especialista em assuntos de Segurança.
E um sinal disso pode ser a necessidade do Ocidente em procurar as tão necessárias munições em locais cada vez mais longínquos. Esta semana, os Estados Unidos da América abordaram o governo japonês para encontrarem uma forma de contornar a legislação local, altamente restrita constitucionalmente após a derrota na Segunda Guerra Mundial, e permitir a venda de armamento.
Especialistas apontaram, ao longo dos combates na frente de batalha, que a Ucrânia está a utilizar num mês o mesmo número de munições de 155mm que os Estados Unidos eram capazes de produzir por ano, antes do início da guerra. Mas o conflito não parou e teme-se que este não seja o único equipamento em falta, com os mísseis do sistema HIMARS a tornarem-se cada vez mais escassos.
“A Rússia produz cerca de 200 mil munições por mês e a perspetiva é de duplicar até ao final do ano. A Ucrânia consome seis mil unidades de artilharia de 155mm. O ocidente tem ido buscar a todo o lado onde é possível. Foi buscar à Coreia do Sul e ao Japão. Na Europa há uma pulverização de empresas que produzem equipamento militar”, reforça Agostinho Costa.
A situação é de tal forma grave que o presidente executivo da Rheinmetall, empresa alemã na área da defesa, revelou recentemente, numa entrevista dada ao jornal alemão RND, que a produção destas munições são o maior desafio enfrentado pela indústria militar europeia. Atualmente, o conglomerado alemão produz cerca de 450 mil unidades por ano, mas Armin Papperger, o líder da empresa, explica que a partir do verão a capacidade pode vir a aumentar para 600 mil munições por ano devido à compra da empresa espanhola Expal.
Estes números continuam, ainda assim, aquém das necessidades de Kiev. Só o bloco europeu já se comprometeu a enviar um milhão de munições este ano, que teriam de vir de outros produtores. A curto prazo, a solução encontrada passa pelo envio das reservas que se encontram nos paióis dos países da NATO, mas isso deixa a Europa numa posição ainda mais vulnerável e que pode demorar anos a resolver.
“A Ucrânia vai receber um milhão de munições de artilharia se os exércitos europeus disponibilizarem as suas reservas. (…) No entanto, pode demorar entre seis e dez anos até que todos os depósitos de munições europeus voltem a estar cheios”, afirmou o empresário.
Recorde-se que a União Europeia acordou, no mês de maio, um pacote de mil milhões para reembolsar os Estados-membro pelo fornecimento de munições dos seus depósitos e mil milhões para procurarem a compra de fornecedores privados. Além disso, a Comissão aprovou 500 milhões de euros para incentivar a capacidade europeia de produzir o armamento necessário.
O problema da indústria militar é que esta demora algum tempo para se adaptar às realidades do mercado. Depois de décadas de desmantelamento e de uma transição para a economia civil, este setor necessita de quantidades elevadas de dinheiro para construir as infraestruturas necessárias para começar a produção. A maquinaria necessária neste tipo de fábricas é, muitas vezes, do tamanho de pequenos edifícios. Por isso, esta indústria requer contratos de longa duração, de vários milhares de milhões de euros, que justifiquem a construção de novas instalações e de mais linhas de montagem.
Um exemplo claro da complexidade desta indústria pode ser visto na própria Rheinmetall. O ministério da Defesa alemão questionou a empresa acerca de qual a principal área da cadeia de distribuição que necessitava de ser resolvida. Para o gigante industrial alemão, o problema estava na produção de pólvora. O investimento inicial ronda os 700 milhões de euros e, para avançar com um investimento desta magnitude, a empresa precisa de garantias de que serão compradas munições suficientes para tornar o negócio rentável. Segundo Armin Papperger seria necessária a compra de 100 mil unidades por ano, durante oito anos, mas quase nenhum exército tem necessidade para este tipo de quantidades.
Este é um cenário completamente oposto ao da Rússia, que continuou a investir nas suas forças armadas, particularmente na sua capacidade de produção, desde o momento em que Putin foi eleito para liderar o país. A União Europeia procedeu a uma quase total supressão da indústria da Defesa, que viu a vasta maioria das suas empresas a optarem por produzir bens civis.
“A Rússia parte à frente, mas nunca se desarmou. A Europa procedeu a um desarmamento quase total das indústrias da Defesa, muitas delas foram suprimidas e não houve a preocupação de recuperar esse investimento. A Rússia fez o percurso contrário, a partir do momento em que Putin se tornou presidente da Rússia. Passou pela modernização e pelo investimento na tecnologia e na indústria da defesa”, recorda Diana Soller, especialista em Relações Internacionais.
A situação parece estar a alterar-se, com vários governos a admitirem aumentar os seus orçamentos da Defesa para um mínimo de 2% do PIB, mas Diana Soller admite que esta transição pode ser “frustrante” por não estar a ser uma “transformação rápida”.
Numa coluna de opinião na Bloomberg, James Stavridis, antigo almirante norte-americano e comandante supremo da NATO, argumenta que este aumento só pode ser feito em colaboração com a indústria privada e que cabe a cada país garantir contratos de longo prazo, que garantam a produção mesmo que a guerra termine de forma abrupta. No entanto, o especialista não deixa margens para dúvidas, mesmo com todas as vantagens que o complexo industrial russo tem, o ocidente alargado tem capacidade de superar a produção militar russa em larga escala, assumindo que a China se mantém afastada do conflito.
“O Ocidente não estava preparado em termos de produção militar para este conflito. A Rússia vai à frente e é preciso uma mudança radical política. A base industrial do ocidente é incomparavelmente superior à Rússia, mas é preciso uma decisão. As empresas têm de receber contratos a longo prazo para estimular a produção”, destaca o major-general Agostinho Costa.