Um conto de duas Europas. Correu mal em França mas Xi Jinping encontrou outros "amigos" com quem falar

8 mai, 22:00
Macron Xi Jinping presidente China visita França (Yoan Valat/AP)

Na sua primeira visita oficial ao continente europeu em cinco anos, e depois de dois dias de encontros infrutíferos em França, o presidente da China aterrou na capital da Sérvia, antes de seguir para a Hungria. A segunda fase do périplo, que contempla "os dois aliados mais fiéis a Pequim na Europa", está carregada de simbolismo e encerra recados importantes para a UE, os EUA e a NATO

Quando Xi Jinping se despediu de Emmanuel Macron na terça-feira, depois de uma visita oficial de dois dias a França, não houve direito à costumeira fotografia que regista estes encontros diplomáticos para a posteridade. Depois de o presidente francês e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, terem tentado convencer o homólogo chinês a alinhar com a Europa em detrimento da Rússia de Vladimir Putin, a ausência de um retrato oficial “foi emblemática da visita de Estado no seu todo, que falhou em dissipar as nuvens sinistras que pairam sobre a relação bilateral” UE-China, escrevia esta quarta-feira o Le Monde.

Horas depois, o chefe de Estado chinês estava de partida para a capital da Sérvia, que há cinco anos não constou do mapa das visitas de Xi ao continente. Estávamos em 2019, antes da pandemia e da invasão russa em larga escala da Ucrânia, e o líder chinês foi recebido num “cenário cor de rosa” em França e em Itália, explica Matej Šimalčík, diretor-executivo do Center European Institute of Asian Studies (CEIAS).

Em Paris, “Xi testemunhou a assinatura de acordos de comércio multimilionários, incluindo uma encomenda de 300 aviões Airbus no valor de 30 mil milhões de euros”. A visita a Roma “também foi frutífera” e viu Itália tornar-se o primeiro Estado do G7 a juntar-se à Belt and Road Initiative (BRI) – um ano antes, na primeira visita oficial de Xi a Portugal, Lisboa também já se tinha associado ao grande empreendimento externo de Xi, a chamada Nova Rota da Seda, escancarando a porta para o mercado lusófono com mais de 280 milhões de consumidores (na sequência da guerra na Ucrânia, acabaria por distanciar-se do projeto).

Desta vez, a visita a França esteve longe de ser um mar de rosas – em meia década, muito mudou. “As relações entre a União Europeia e a China tornaram-se mais complicadas”, explica Šimalčík. “Itália deixou a BRI em 2023, antes de três Estados do Báltico terem abandonado a plataforma de Cooperação China-CEE, uma componente da BRI em si mesma.”

Desde então, “a UE também adotou uma série de novos instrumentos para se proteger da interferência e da armamentização do comércio pela China e por outros Estados autoritaristas – sintomático da significativa deterioração das opiniões sobre a China na Europa, principalmente devido à pandemia de covid-19 e ao apoio da China à Rússia na sua agressão contra a Ucrânia”, indica o analista.

Finalizada a visita a França, inaugurou-se esta quarta-feira a segunda fase do périplo europeu de Xi, numa demonstração clara de que o presidente chinês “está a interagir com duas versões muito diferentes da Europa”, destaca Šimalčík. “Enquanto em França foi pressionado por Macron e Von der Leyen numa série de questões contenciosas, incluindo dependências económicas e a situação na Ucrânia, em Belgrado e em Budapeste Xi será recebido de forma muito mais cordial, dado que a Sérvia e a Hungria são os aliados mais fiéis de Pequim na Europa.”

Xi Jinping foi recebido esta quarta-feira por Aleksandar Vucic, presidente da Sérvia, e por uma multidão em Belgrado (Presidência sérvia)

"Juntos desafiámos a política de poder"

As deslocações às capitais do centro e leste europeu estão carregadas de simbolismo. Na Sérvia, a visita coincide com o bombardeamento da embaixada chinesa em Belgrado pelas forças da NATO há 25 anos. Logo a seguir, na Hungria, irá coincidir com o 75.º aniversário da restauração das relações diplomáticas entre os dois países – o que poderá provar-se um “marco” com “importantes implicações globais”, defendia há uma semana o embaixador chinês em Budapeste, num encontro com jornalistas.

Não é de menosprezar a importância de Xi ser recebido por Viktor Orbán na semana do Dia da Europa e por altura do 20.º aniversário da adesão da Hungria à UE, no que os analistas dizem ser uma “mensagem clara e desafiadora” ao continente. “Estas visitas vão permitir a Xi Jinping ripostar contra as políticas críticas em relação à China que estão a ser adotadas na UE e, ao mesmo tempo, dar uma imagem da falta de consenso da Europa em relação à China”, sublinha o diretor do CEIAS.

“Para a China, a visita à Sérvia é uma oportunidade para condenar a NATO e a sua alegada expansão no Indo-Pacífico”, agora que, face às pretensões de soberania de Pequim na região, a aliança atlântica tem estado a estreitar relações com a Austrália, o Japão, a Nova Zelândia e a Coreia do Sul. Na Hungria, Xi prepara-se para desvendar novos projetos bilaterais e “apresentá-los como uma história de sucesso de colaboração económica” com um parceiro europeu.

A marcar a ideia de duas Europas estão os discursos dos seus protagonistas desde o início da semana. Na segunda-feira, no dia de encontros oficiais entre a delegação chinesa e as autoridades francesas, Xi fez questão de sublinhar que o mundo deve evitar uma “nova Guerra Fria”, numa renovada tentativa de convencer os governos europeus a afastarem-se da política externa dos EUA, tida pelos chineses como uma arma para conter a sua ascensão. 

Já esta quarta-feira, na véspera da chegada a Budapeste, elogiou a “independência” da política externa húngara e o empenho do governo Orbán em “desafiar o poder”. Numa carta publicada nos media do grupo húngaro Magyar Nemzet, o presidente chinês pede a Orbán que “lidere” as relações das nações do centro e leste europeu com o seu país. “Juntos passámos por dificuldades e juntos desafiámos a política de poder no contexto de relações internacionais voláteis. Encontrámos o nosso próprio caminho para que Estados soberanos conduzam intercâmbios amigáveis com outros países de forma independente.”

O primeiro-ministro da Hungria foi o único líder europeu a marcar presença do Fórum da Silk and Road Initiative em Pequim há sete meses - e o único a encontrar-se com Vladimir Putin desde o início da guerra na Ucrânia (AP)

"Quando nos perguntam sobre a China, não temos respostas complicadas"

A mensagem não podia ser mais clara – “uma referência à forma como Orbán, o primeiro-ministro há mais tempo no poder na Europa, tem desafiado as pressões de Bruxelas, dos EUA e da NATO, mantendo relações amigáveis com Moscovo e aprofundando as suas relações comerciais com a China”, escreve o Financial Times.

Assim o demonstrou o seu encontro com Putin em outubro, à margem do fórum da BRI em Pequim, no qual Orbán foi o único líder europeu a marcar presença. “Os nossos dois países precisam de liderar a cooperação regional” para assegurar relações “firmes” entre Pequim e a UE, escreve Xi na mesma carta publicada esta quarta-feira. 

Durante os seus encontros com Macron e Von der Leyen, Xi não cedeu em nenhum dos pontos de contenda com o bloco, incluindo o facto de estar a inundar o mercado europeu de produtos baratos e o facto de as crescentes trocas com Moscovo estarem, na óptica de Bruxelas, a ajudar os russos a contornar as sanções do Ocidente desde o início da guerra na Ucrânia em 2022.

Na chegada à Sérvia, país não-membro da UE, o líder chinês foi recebido com elogios. “Quando nos perguntam sobre a China, não temos respostas complicadas”, disse o presidente sérvio, Aleksandar Vučić, ao lado de Xi. “Como país pequeno que somos, temos muitos problemas e então aí chamamos os nossos grandes amigos, senhor presidente. Existe um forte sentimento de amizade entre os nossos países.”

A amizade traduz-se em negócios importantes para a China, incluindo a participação de empresas chinesas na construção do primeiro metropolitano de Belgrado e a compra por parte dos sérvios de comboios chineses de alta velocidade a ligar Belgrado a  Budapeste, onde entre amanhã e sexta-feira deverá haver anúncios de parcerias económicas ainda mais relevantes.

Segundo cálculos de Pequim, o investimento direto estrangeiro acumulado por empresas chinesas na Hungria poderá atingir os 30 mil milhões de euros no final deste ano – e no final da semana, pelo menos 16 novos acordos poderão ser assinados por Orbán e Xi Jinping, abarcando os setores da energia, da indústria e das infraestruturas e construção. 

É ainda esperado o início de um programa de cooperação Pequim-Budapeste “que abarca todo o portfólio de energia nuclear”, indicou o ministro húngaro dos Negócios Estrangeiros, Péter Szijjártó, sem adiantar mais detalhes sobre que negócios vão ser gerados nesta visita: “Falar sobre empresas específicas durante as negociações, antes de qualquer acordo ser alcançado, é contrário aos interesses nacionais da Hungria.”

Para Matej Šimalčík, tudo isto “ajudará a mitigar alguns dos danos causados à imagem da China pelas relações em deterioração com outros Estados-membros da UE”. E depois do desalinho em França, “vai permitir a Xi concluir esta viagem à Europa em beleza”.

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