O Nutri-Score é presença frequente na parte frontal da embalagem de alguns alimentos processados há já alguns anos e agora é recomendado como medida de saúde pública de alimentação saudável. Este sistema de rotulagem nutricional simplificado está longe de ser consensual, mas por cá diz-se que “é melhor do que não ter nada”. É mesmo? O novo Governo está a analisar a situação
TEXTO
DANIELA COSTA TEIXEIRA
À primeira vista, a extensa lista de ingredientes de alguns destes alimentos e os próprios ingredientes em si fariam com que os deixássemos na prateleira do supermercado. Pelo menos, essa seria a recomendação de um nutricionista ou de um médico. Há de tudo: cereais com edulcorantes, bolachas com aditivos, iogurtes com 20 gramas de açúcar por unidade, cerca de 40% da dose diária recomendada, e batatas pré-fritas de ir ao forno que não são apenas batatas. São apenas alguns exemplos de alimentos processados que estão classificados como A e B na escala do Nutri-Score, cuja adoção voluntária foi recomendada pelo anterior Governo como medida de saúde pública de promoção da alimentação saudável. Uma escala que, no entanto, está agora sob análise do Ministério da Saúde, tutelado por Ana Paula Martins.
Este sistema de rotulagem nutricional simplificada nasceu pelas mãos da Santé Publique France, em 2014, tendo sido adotado pelo governo francês em 2017 como modelo simplificado de rotulagem de eleição. Dez anos depois, encontra-se presente em várias marcas, como o Bonduelle, Danone, Nestlé e Pescanova, e em várias cadeias de supermercado, como a Auchan, Aldi, Intermarché, Lidl e Pingo Doce.
Em Portugal, o Nutri-Score chegou de forma tímida em 2019, ano em que as entidades de saúde começaram a analisar a importância de ter um sistema simplificado na frente das embalagens dos alimentos.
Quem o defende - e tal como se lê no despacho que o recomenda em Portugal - diz que a evidência científica dos seus benefícios é robusta, algo que deixa dúvidas até dentro da própria comunidade, onde não tem havido consenso. “Não é totalmente robusta e os trabalhos que mais validam a sua utilização foram efetuados por investigadores ligados ao seu desenvolvimento”, adianta o nutricionista Pedro Carvalho, também professor na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica, apontando para um estudo publicado em março deste ano na revista PharmaNutrition que mostra isso mesmo.
O Nutri-Score classifica o alimento processado de A a E, num semáforo de cores que vai do verde-escuro ao vermelho, respetivamente. Ao contrário do que muitos pensam, até porque o seu uso voluntário foi decretado sem que, na verdade, se tenha explicado em que consiste, o Nutri-Score não pretende categorizar se um alimento é bom ou mau, nem compara produtos de categoria diferentes entre si. O seu objetivo, defende quem o criou, é indicar se o alimento em causa deve estar mais ou menos presente na rotina diária alimentar e qual a melhor opção entre um tipo de produto.
“A intenção do sistema é trabalhar para a educação virada para as escolhas saudáveis, há que fazer algo para simplificar e as pessoas começarem a adotar alguma disciplina nas suas escolhas alimentares, habituarem-se a rejeitar alguns tipos de alimentos, com muito açúcar, muita gordura, pobres em fibra, que não têm interesse, que não precisamos deles para viver”, esclarece Paula Ravasco, professora na Faculdade de Medicina da Universidade Católica do Porto.
Os especialistas com quem a CNN Portugal conversou reconhecem falhas no Nutri-Score, mas dizem que é melhor um Nutri-Score do que não haver sistema de rotulagem simplificado algum. Mas chutam a bola para o Executivo, alertando para a falta de literacia e para a importância de uma boa campanha de comunicação. E foi esse um dos pontos destacados em pleno XXIII Congresso de Nutrição e Alimentação, da Associação Portuguesa de Nutrição. A nutricionista Raquel Abrantes, que atualmente acompanha empresas do setor agroalimentar, apresentou os prós e contras deste sistema que reconhece ter falhas, mas admite que, a seu ver, “não há melhor alternativa”, focando a questão na importância de campanhas de literacia junto da comunidade e dos próprios profissionais. Até porque, sublinha, “o Nutri-Score não diz se o produto é benéfico, mas o verde pode levar a interpretar dessa forma”, o que, continua, “pode ser considerado uma alegação nutricional”.
Sobre isto, o certo é que o Nutri-Score passou a ser recomendado por decreto há um mês e a Direção-Geral da Saúde (DGS) não fez, até à data, qualquer campanha de informação sobre o tema, nem mesmo nas redes sociais. Contactadas pela CNN Portugal, nem a DGS nem o Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) se mostraram disponíveis para falar.
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O bom e o mau de um sistema longe de consensual
Não é bom nem mau, nem melhor ou pior. Mas uma coisa é certa: “não é infalível”, “não é imbatível”, “não é perfeito”, dizem os especialistas à CNN Portugal. Como qualquer outro modelo, tem prós e contras e é preciso “desconstruir” isso mesmo, aponta Pedro Carvalho.
De bom, adiantam, o Nutri-Score traz a capacidade de fazer uma comparação direta entre produtos do mesmo segmento (iogurtes com iogurtes, bolachas com bolachas, gelados com gelados, por exemplo), ajudando a perceber que entre todos os produtos dessa categoria um A será ‘melhor’ do que um E, podendo até, como diz Paula Ravasco, ajudar a travar o consumo dos produtos que estão pior classificados. E esta perceção quase imediata é um dos aspetos que Ana Rita Goes, professora auxiliar na Escola Nacional de Saúde Pública, também destaca. “Sistemas como o Nutri-Score” são capazes de “oferecer uma informação simples, de fácil compreensão e rápida interpretação”, até mesmo quando as pessoas “não estão muito motivadas para procurar informação nutricional”, diz a docente do Departamento de Estratégias em Saúde.
Um outro aspeto positivo prende-se com o incentivo para que os produtos de prateleira sejam nutricionalmente mais interessantes, levando a indústria a investir em novas formas de melhorar os alimentos, embora isso possa vir a ser resultado de um híper processamento dos mesmos, o que não é necessariamente mau.
“O Nutri-Score ajuda a indústria a reformular os seus produtos, não vão querer que estejam mal classificados. No futuro, se todos forem um A, podemos mudar o algoritmo do Nutri-Score e incentivar a indústria a reformular os produtos. Há muito trabalho por fazer e acho que isso é um incentivo”, adianta Cláudia Marques, professora auxiliar convidada da NOVA Medical School.
Mas é neste mesmo ponto que se dá um dos aspetos negativos deste sistema: a possibilidade de minar o algoritmo e a ‘receita’ do alimento. “Em termos industriais, há essa capacidade”, reconhece Joaquina Ribeiro, especialista em Biotecnologia, que aponta também o dedo ao potencial negativo do imediatismo do Nutri-Score. Para a engenheira, este sistema “é um risco” porque “tem de se dar mais informação e de forma mais clara e simples”.
Embora toda a informação necessária esteja presente no rótulo e o Nutri-Score apenas se aplique a estes alimentos cuja rotulagem é obrigatória, a investigadora volta a bater na tecla da incapacidade de interpretação e no efeito sedutor que um verde pode ter, até mesmo por parte de quem tende a não comprar muitos alimentos embalados, mas olha para um A como um aval para esse consumo. “Corremos o risco de estar a influenciar de forma negativa a escolha do consumidor”, lamenta Joaquina Ribeiro. Esta sedução de um verde pode contrariar a recomendação do Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física, 2015-2016, que diz que “os produtos alimentares como os bolos, doces, bolachas, snacks salgados, pizzas, refrigerantes, néctares e bebidas alcoólicas (...) não devem fazer parte da nossa alimentação diária”.
Da mesma opinião é Lídia Santiago, vice-presidente da Ordem dos Engenheiros, Ordem que tem a coordenação da engenharia alimentar, e que considera que este sistema “confunde o consumidor”. “Foi com estranheza que vimos o último governo implementar, nos seus últimos dias, o Nutri-Score”, atira Lídia Santiago, dizendo que a medida foi publicada sem “qualquer consulta prévia e de forma inesperada”, tal como se lê no comunicado enviado e no qual a OE alerta para o “impacto, limitativo e desinformativo que o sistema cria junto dos consumidores e alertam para a falta de evidências científicas que o mesmo sistema reflete”.
Paula Ravasco, professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, considera que, com o Nutri-Score, “há o risco de consumir mais alimentos processados, com mais tempo de prateleira, com processamento, com maior conteúdo em lípidos, em açúcares, mais desequilibrados do ponto de vista de micronutriente, como vitaminas e minerais”, no entanto, é taxativa na hora de dizer que “é importante haver algum sistema de rotulagem que ajude a traduzir o mais importante, seja qual for o sistema”.
Já Ana Rita Goes descarta que o Nutri-Score resulte, por si só, num aumento do consumo de processados. “O estilo de vida acelerado e um ambiente que favorece a escolha do que é rápido e conveniente é que tem contribuído para aumentar o consumo de alimentos processados”, defende, mas reconhece que pode trazer a “perceção de alguma ‘tranquilidade’ quando ao fazermos a escolha mais conveniente também verificamos que tem uma classificação mais ‘favorável, mas à partida já estaríamos orientados para fazer aquele tipo de escolha”.
Esta sensação de tranquilidade, sobretudo por quem inclui regularmente alimentos processados nas ruas refeições, pode, na verdade, trazer riscos: “as dietas pouco saudáveis estão entre os fatores de risco mais contributivos para a diminuição dos anos de vida saudável entre a população portuguesa (15,8%)”, lê-se no estudo Pontuação Nutricional: Uma Ferramenta de Saúde Pública para Melhorar os Hábitos Alimentares da População Portuguesa, publicado em 2019 na Acta Médica Portuguesa.
A Organização Mundial da Saúde, que pede a implementação generalizada de um modelo de rotulagem simplificado na frente das embalagens, seja ele qual for, alerta que o aumento da produção de alimentos processados é uma das responsáveis pela mudança nos padrões alimentares, pautados nos dias de hoje por um maior consumo destes produtos “ricos em energia, gorduras, açúcares livres e sal/sódio” e cujo preços são cada vez mais apelativos. E as consequências são notórias: os alimentos ultraprocessados, isto é, que passaram por vários processos de transformação, como uma piza ultracongelada, estão associados, por exemplo, ao aumento do risco de cancro.
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Como é calculado o algoritmo do Nutri-Score
Ao contrário de outros modelos, este não destaca na parte frontal da embalagem qualquer indicação dos ingredientes nem tem presente qualquer mensagem de alerta sobre esses mesmos ingredientes ou valor energético. Este modelo, durante anos defendido pela DECO, que chegou mesmo a lançar uma campanha e petição para a sua adoção, apresenta-se de forma mais simplificada com cinco cores e cinco letras - A a E e verde-escuro a vermelho, respetivamente. O alimento é classificado por 100 gramas e não por porção recomendada, como também acontece noutros sistemas. No fundo, mostra na embalagem a classificação do alimento como um todo, embora esse todo não inclua necessariamente tudo.
A fórmula usada para chegar à classificação do alimento é o grande ponto de discórdia relativamente ao Nutri-Score. O algoritmo, que foi atualizado no final do ano passado, mas cuja mudança nas embalagens pode demorar 24 meses a acontecer, tem em conta dois aspetos: ingredientes nutricionalmente favoráveis (frutas, vegetais, leguminosas, fibras e proteínas) e ingredientes nutricionalmente desfavoráveis (açúcar, sal, gordura saturada, calorias).
Aos ingredientes favoráveis são atribuídos pontos de 0 a 5 e cuja somatória deve ser classificada entre 0 a 15 pontos. Já aos ingredientes desfavoráveis são atribuídos pontos de 0 a 10 e cuja somatório deve ser classificada entre 0 a 40 pontos. De uma forma simples, o Nutri-Score é o resultado da subtração dos pontos desfavoráveis dos pontos favoráveis. E quanto maior for a pontuação, mais próximo o alimento fica do E.
No entanto, até mesmo com a revisão do algoritmo, que aconteceu no final do ano passado, fora das contas ficam alguns edulcorantes, como sorbitol, manitol, isomalte, alitame, xarope de poliglicitol, maltitol, lactitol, xilitol e eritritol. Estes açúcares artificiais - que têm menos calorias do que o 'natural' e menos impacto para cáries, por exemplo - podem ser encontrados no rótulo sob os códigos E420, E421, E953, E956, E965, E966, E967 e E968, respetivamente. O novo algoritmo apenas aperta o certo a alguns dos edulcorantes não nutritivos nas bebidas.
Sobre esta ausência, Alexandra Bento, atual coordenadora do Departamento de Alimentação e Nutrição do INSA e antiga bastonária da Ordem dos Nutricionistas, diz que é algo que “preocupa”, assim como a ausência de aditivos nos cálculos, mas apressa-se a dizer que “outros sistemas também não têm”. No entanto, adianta, “temos de caminhar” no “sentido” de tornar o Nutri-Score mais transparente.
“A indústria alimentar sabendo da forma como se calcula o Nutri-Score pode modificar a composição nutricional dos seus produtos de modo a ficar melhor classificada (o que é algo positivo), mas nem sempre torna o produto como algo objetivamente bom para consumo diário”, adianta Pedro Carvalho, defendendo que “há também que olhar para o lado positivo que esta pode ser uma forma da indústria reduzir o teor de açúcar, gordura e sal e aumentar a fibra e proteína para melhorar a composição nutricional dos seus produtos”.
Fora do algoritmo ficam ainda os métodos de processamento e de confeção, isto é, umas batatas pré-fritas que não são apenas batatas podem ter um A, mesmo sabendo que ao serem fritas passariam para um E. E, para quem está na produção destes alimentos, este seria um ponto importante a ter em conta, mas que continua de fora com o novo algoritmo
“O Nutri-Score ainda precisa de mais estudos e de mais evidência. Para um consumidor que não tem informação científica e seja capaz de fazer uma escolha acertada é um risco, porque não temos toda a informação necessária para garantir que aquele alimento vai ser consumido na proporção certa, na moderação adequada. E os métodos de confeção são decisivos para dizer se o alimento vai fazer bem ou menos bem. Estas questões não estão a ser contabilizadas, [o Nutri-Score] deixa um vazio para o consumidor que não tem literacia nutricional”, aponta Joaquina Ribeiro, especialista em Biotecnologia - Ciência e Engenharia dos Alimentos e investigadora no Instituto Politécnico de Leiria.
Olhando novamente para os exemplos acima, é fácil perceber isso mesmo: temos batatas pré-fritas classificadas com um A, um mesmo A que seria dado à batata no seu estado mais natural, mas que, por não ser um alimento de prateleira, escapa a esta rotulagem. Consequência: comprar a batata, lavá-la, descascá-la e assá-la (ou fritá-la) dá muito mais trabalho. E haver uma opção já preparada com um A dá luz verde ao consumo da versão menos natural. Mas este é apenas um exemplo. Em 2021, um estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) apontou para o potencial “enganador” do Nutri-Score ao revelar que dos 60,1% dos alimentos que tinham classificação Nutri-Score A ou B (verde), “a grande maioria (87%) (...) não cumpria os valores de referência da EIPAS [Estratégia Integrada para Promoção da Alimentação Saudável], quando avaliados conjuntamente os açúcares e o sal”.
A nutricionista Rita Alvernaz recorreu às redes sociais para explicar como o Nutri-Score pode facilmente rotular com um A ou B alimentos com alto teor de açúcar, alertando para a importância de o algoritmo continuar a ser atualizado.
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Europa a dois ritmos
O Nutri-Score está presente em vários países europeus - como Alemanha, Suíça, Países Baixos, Luxemburgo, Espanha e Bélgica - e há uma espécie de sonho de uniformização na comunidade europeia - a DECO defende mesmo uma petição para que seja obrigatório no continente. “Mais importante do que uma medida, era que essa medida fosse em contexto europeu. Esperamos há muito tempo uma promessa da Comissão Europeia”, aponta Helena Real, secretária-geral da Associação Portuguesa de Nutrição, destacando que seria “importante” uma adoção a nível europeu deste sistema de rotulagem.
Mas isso poderá estar nas mãos de Giorgia Meloni. Itália, que tem o seu próprio sistema, o NutrInform Battery, tem sido crítica à adoção do Nutri-Score por prejudicar alimentos típicos ou cujas receitas dizem que não podem ser alteradas, como os queijos. À boleia dos partidos nacionalistas, Itália chega mesmo a sugerir mudanças na constituição para que a adoção deste sistema seja travada. A Suíça, que é um dos países aderentes ao Nutri-Score, parece agora estar com dúvidas e o Conselho de Estados do país decidiu que o governo federal deveria criar uma estrutura para a utilização deste sistema, de modo a evitar que alguns produtores fiquem em desvantagem.
O nacionalismo tem vindo mesmo a ser um dos pontos de fissura no Nutri-Score, com os produtores de charcutaria - mesmo com a OMS a alertar para o potencial cancerígeno do consumo de enchidos e fumados - e laticínios, as críticas são disparadas em todas as frentes. Stephan Peters, autor do estudo que revela que uma boa parte dos estudos sobre o Nutri-Score foram feitos por cientistas envolvidos na sua criação, é presidente da Associação Neerlandesa de Lacticínios e uma das vozes que mais tem protestado contra aquilo que considera ser uma penalização aos produtos à base de leite, como o queijo, que acaba por ter quase sempre uma classificação D ou E pelo seu elevado teor de gordura, algo de que os italianos também se queixam, dificultando que a Europa ande a uma só voz, como muitos querem.
Por cá, o tema do Nutri-Score tem passado ao lado. Mas Lídia Santiago, da Ordem dos Engenheiros, agarra-se ao exemplo do azeite, entretanto emendado pelo novo algoritmo. “Sendo o azeite 100% lípidos, uma gordura insaturada e vegetal, neste Nutri-Score tem uma ‘pinta’ vermelha. Como é? Então recomendamos a dieta mediterrânea e depois dizemos que [o azeite] não é bom? Isto confunde as pessoas”, vinca. Entretanto, com a atualização do algoritmo, o Nutri-Score classifica agora o azeite com um C, mas é possível que o veja nas prateleiras com um E durante algum tempo, uma vez que as marcas têm 24 meses para mudar a sinalização com o novo algoritmo.
Da parte da indústria dos processados, batem-se palmas: há cada vez mais alimentos embalados no mercado e um estilo de vida cada vez mais destinado ao seu consumo e uma rotulagem benéfica é uma mais-valia, mesmo que isso implique esforços constantes para melhorar os seus produtos. A Nestlé, uma das pioneiras na adoção do Nutri-Score, reconheceu no ano passado que menos de metade do seu portefólio principal de produtos é classificado como saudável, mas compromete-se a melhorar o valor nutricional dos alimentos, como noticiou o Wall Street Journal.
E o facto de várias gigantes da agroindústria e cadeias de supermercado estarem a adotar o Nutri-Score, faz com que os países se sintam tentados a querê-lo. Aliás, o próprio decreto assinado pelo Governo de António Costa usa isso mesmo como argumento: “[O Nutri-Score] tem implementação num conjunto alargado de países da União Europeia e é já utilizado por diversos operadores económicos nacionais do setor alimentar”, lê-se.
Quando questionado se há alguma espécie de lobby associado ao Nutri-Score, Pedro Carvalho diz que “sim”. “Sim, há lobby e interesse da indústria nesta ferramenta, daí ser necessário desconstruí-la”.
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E o mundo? Vários ritmos para um mesmo objetivo
Do Chile à Austrália, são vários (e cada vez mais) os países que procuram promover a alimentação saudável através de travões ao consumo de alimentos processados. Mais uma vez, são os sistemas de rotulagem simplificados a aposta pelo imediatismo que promovem, mas ao contrário do Nutri-Score, lá fora vigoram sistemas que são simples, mas menos simplistas. É o caso do semáforo britânico, criado em 2007 e adotado em Portugal pelo Continente, que à CNN Portugal diz que o irá manter.
“Neste momento, iremos manter o modelo de semáforo nutricional da MC nos produtos Continente, cumprindo os requisitos do regulamento da União Europeia n.º 1169/2011. Estamos comprometidos em oferecer informações claras e úteis aos nossos clientes para que possam tomar decisões conscientes em relação à sua alimentação. Permanecemos atentos às atualizações regulamentares e às necessidades dos consumidores e avaliaremos alterações necessárias”, lê-se na resposta do Continente enviada por escrito.
Este modelo baseia-se em classificar por cores (verde, laranja e vermelho) a quantidade de gordura, gordura saturada, açúcar e sal, assim como as calorias por dose recomendada, podendo “ser mais fácil de interpretar” por parte de quem quer ou necessita mesmo de evitar determinados componentes como o sal e o açúcar, como diz Paula Ravasco. O sistema britânico é muito semelhante ao decodificador de rótulos que o Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável da DGS recomendou durante vários anos.
Idêntico ao britânico, mas apenas com duas cores (azul e branco), o italiano NutrInform Battery “permite representar graficamente no rótulo a percentagem de ingestão de energia e nutrientes em comparação com o porção de consumo recomendada do alimento”, como explica o governo.
Há ainda o modelo de estrelas da Nova Zelândia e da Austrália, que classifica o alimento como um todo o destaca na frente da embalagem ingredientes concretos, como sal, gordura saturada, sódio e fibra, colocando ainda na equação o total de calorias.
Um outro modelo que tem captado a atenção é o do Chile, dos primeiros a aparecer e que destaca na embalagem um hexágono a preto e com letras brancas e grandes se o produto em causa tem um “alto” teor de açúcar, de gordura saturada, de sódio e de calorias. O Brasil adotou recentemente um modelo semelhante e que destaca se o alimento é de “alto teor” de um a três ingredientes.
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Sem literacia não há semáforo para o caminho certo
Uma das justificações que o anterior Executivo apresentou para a recomendação do Nutri-Score prende-se com o facto de em Portugal, quatro em cada dez pessoas não compreendem a informação nutricional presente nos rótulos dos produtos alimentares - imposta por lei Regulamento da União Europeia n.º 1169/2011, de 25 de outubro, que entrou em vigor em dezembro de 2016. E este é um dos problemas que os especialistas mais apontam na hora de promover uma alimentação saudável e o Nutri-Score promete facilitar tornar a ciência da nutrição em algo menos complexo, mais imediato e chamativo. Como já aqui mostramos, isso é bom e mau ao mesmo tempo: capta a atenção de quem vai às compras e desperta a curiosidade pelo que está rotulado a verde (A ou B) em detrimento do que tem um rótulo vermelho (E), mas nem tudo o que é verde e A ou B é assim tão bom ou faz sequer sentido na alimentação.
“Há um défice, uma carência muito grande de ações de promoção de saúde e literacia dadas à população e é esse fosso que vai aumentar o risco disso. O Nutri-Score vai permitir que um consumidor informado possa comparar produtos, mas se não está informado corre o risco de escolher apenas pela cor e letra e não saber o porquê desse resultado”, reconhece Liliana Sousa, bastonária da Ordem dos Nutricionistas.
Liliana Sousa é rápida a dizer que “uma medida não faz a medida, isso só com nutricionistas”, numa clara mensagem a um dos maiores calcanhares de Aquiles da saúde pública em Portugal: a falta de nutricionistas nos centros de cuidado de saúde primários. Na ausência desses profissionais para uma ‘primeira lição’ sobre o Nutri-Score, Liliana Sousa defende que entrem em vigor o quanto antes campanhas de informação, sobretudo entre as pessoas mais velhas, como as que “frequentam centros de dia e universidades sénior”.
“Uma das medidas identificadas no diploma [despacho aprovado pelo anterior Governo] é que tem de existir uma campanha de literacia junto do consumidor. E tem mesmo de existir”, atira Helena Real, secretária-geral da APN, explicando que “não quer dizer que por ter um A podemos ter um consumo indiscriminado do consumo”. E o mesmo com alimentos classificados mais negativamente, como o azeite: “é um E e é saudável, mas consumido numa quantidade reduzida, mas não quer dizer que não desaconselhamos o consumo”.
As campanhas de comunicação - sobretudo “campanhas institucionais televisivas”, como defende Paula Ravasco - são vistas pelos especialistas como fundamentais nesta matéria, mas olhando para o que já aconteceu no passado - como a falta de campanhas eficazes para a interpretação dos rótulos, que são obrigatórias nas embalagens há oito anos -, pode ser importante atuar noutras frentes.
“O inimigo das escolhas saudáveis não é a informação simples, mas sim todo um ambiente que favorece escolhas menos saudáveis, seja pelos preços, pela visibilidade, acessibilidade e conveniência”, aponta a docente Ana Rita Goes, que diz ainda que “é preciso considerar políticas que afetem o preço dos produtos e a sua visibilidade e promoção”.
Pedro Carvalho considera mesmo que o problema é “mais abrangente do que apenas a falta de literacia nutricional”. Para o especialista, “não é preciso ser perito em nutrição para perceber os alimentos mais ricos em gordura e açúcar e que deveriam ou não entrar em nossa casa”, defendo outras medidas que, a seu ver, seriam mais eficazes do que o sistema de rotulagem nutricional simplificado.
“Taxar adicionalmente os alimentos mais desequilibrados seria um desincentivo ao consumo bem mais eficaz do que o Nutri-Score ou qualquer outra ferramenta que tornasse mais fácil a leitura do rótulo”, defende Pedro Carvalho, que aponta uma outra medida: “Obrigar os restaurantes a colocar o número de calorias nas suas ementas”, algo que diz que “é também uma boa forma de alertar os consumidores” e que teria “um efeito maior do que o Nutri-Score”.