"Ficámos todos surpreendidos e chocados": o estranho caso do soldado Travis King - fugiu da Justiça ou fugiu da injustiça?

16 ago 2023, 11:14
Travis King (Ahn Young-joon/AP)

A história de um homem que alegadamente escolheu um dos países mais hostis do mundo para fugir. E o mistério não acaba aí: é que mesmo sobre o motivo da fuga há versões distintas

Travis King estava numa visita turística à área de segurança conjunta na zona desmilitarizada entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul quando atravessou “voluntariamente e sem autorização” a fronteira para o lado norte. Desde então que pouco se sabe sobre este soldado norte-americano cuja detenção a Coreia do Norte agora confirmou, quase um mês depois de o exército dos Estados Unidos ter dado conta do caso.

O regime de Kim Jong-un anunciou também que Travis King fartou-se de casos de discriminação racial e de desigualdades sociais no exército norte-americano, motivo pelo qual decidiu ir para a Coreia do Norte. Mas esta versão só adensa as dúvidas da família, que continua à procura de respostas para o facto de Travis King ter escolhido a Coreia do Norte, um dos países mais hostis do mundo.

A CNN Internacional adianta que um militar norte-americano estava com Travis King a 18 de julho, o dia em que entrou num edifício norte-coreano após ter ultrapassado a fronteira. A porta estava fechada e o soldado correu para trás do edifício, onde acabou por ser levado para uma carrinha e detido por guardas da Coreia do Norte. Desde aí que os Estados Unidos tentam repetidos contactos com Pyongyang para saberem da condição de Travis King, mas os pedidos continuam sem respostas que satisfaçam os norte-americanos.

Agressões e uma fuga

Travis King juntou-se ao exército em janeiro de 2021 e cumpria antes de desaparecer um tempo de rotação na Coreia do Sul. Uma semana antes do desaparecimento tinha acabado de cumprir pena de prisão e trabalho comunitário por um período de 50 dias na Coreia do Sul.

No final dessa semana, e um dia antes de desaparecer, esperava-se que embarcasse num voo de regresso a casa, ao estado do Texas, onde tinha à espera um processo disciplinar. Nesse dia foi escoltado pelo exército até aos balcões de check-in do Aeroporto Internacional de Incheon, mas acabou por deixar o aeroporto pelo próprio pé.

Um dia depois estava numa visita turística à área de segurança conjunta, visita essa que tinha sido previamente marcada com uma empresa privada. Embora não existam explicações muito detalhadas sobre o processo disciplinar que enfrentava, Travis King é suspeito de ter “agredido um indivíduo na Coreia do Sul”, segundo a secretária do Exército dos Estados Unidos, Christine Wormuth”, que falou no Fórum de Segurança de Aspen. “Estava sob custódia do governo sul-coreano e ia voltar para os Estados Unidos para enfrentar as consequências do exército”, acrescentou a responsável.

Em outubro do ano passado, o jovem envolveu-se em algumas brigas e foi acusado de agressão contra um cidadão sul-coreano num clube noturno em Seul e de ter "pontapeado repetidamente" um veículo da polícia sul-coreana. De acordo com a decisão de um tribunal sul-coreano, Travis King declarou-se culpado da agressão e destruição de bens públicos. Foi multado em cinco milhões de won (cerca de 3.500 euros) pelos danos provocados no carro e por gritar "linguagem obscena" aos polícias que tentavam prendê-lo. De acordo com as autoridades, foi libertado a 10 de julho, depois de cumprir dois meses de prisão.

Parecia uma fuga de problemas, mas a irmã de Travis King disse à CNN Internacional que o jovem “não é do tipo de desaparecer” assim do nada. “É por isso que sinto que a história é mais profunda que isso. Não acredito que apenas tenha desaparecido e fugido”, acrescentou Jaqueda Gates.

Sarah Leslie, uma turista da Nova Zelândia que estava no grupo de King durante a visita a 18 de julho à zona fronteiriça, disse à Associated Press que se lembra de ver King a rir e depois viu-o "a correr a grande velocidade em direção ao lado norte-coreano". "Ficámos todos surpreendidos e chocados", acrescentou. Um soldado americano gritou "apanhem-no!", soldados sul-coreanos e americanos correram atrás dele mas não conseguiram apanhá-lo, contou a turista. Até que o jovem desapareceu da sua vista.

Outra testemunha contou que o grupo de turistas foi levado à pressa de volta à Freedom House para que prestassem depoimentos. No autocarro estavam todos bastante transtornados com o que tinha acontecido. "Alguém comentou que chegámos 43 e só voltámos 42".

O destino do soldado depende em grande parte se a Coreia do Norte, que ainda não comentou o caso, o vai tratar como uma deserção ou como uma entrada ilegal no país. Um desertor pode pedir autorização para viver na Coreia do Norte, mas os acusados de entrar ilegalmente no país costumam ser usados nas negociações. Os Estados Unidos não têm embaixada em Pyongyang. Contam com a Embaixada da Suécia para ajudar a proteger os interesses dos americanos detidos na Coreia do Norte.

O que aconteceu no passado com os americanos detidos pela Coreia do Norte?

Vários cidadãos americanos foram detidos Coreia do Norte desde 1996, entre os quais turistas, académicos e jornalistas. Nenhum deles entrou no país através da Área de Segurança Conjunta. Em julho de 2017, o governo dos EUA proibiu os cidadãos americanos de visitar o país.

O caso mais conhecido, conta o New York Times, é o de Charles Robert Jenkins, um sargento do exército americano que desertou para a Coreia do Norte em 1965 para evitar o combate no Vietname. Jenkins só foi autorizado a deixar a Coreia do Norte em 2004. Contou que durante aqueles anos ensinou inglês a cadetes militares norte-coreanos e apareceu em panfletos e filmes de propaganda antiamericana.

Alguns turistas americanos que viajaram à Coreia do Norte foram detidos. Em 2013, Merrill Edward Newman, um reformado americano, foi libertado após ter estado detido durante 42 dias, acusado de cometer atos hostis.

Otto Warmbier, um estudante da Universidade da Virgínia, foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados depois de ser condenado, acusado de tentar roubar um póster de propaganda num hotel de Pyongyang. Em 2017, voltou para casa em coma após 17 meses de detenção e depois morreu.

Robert Park, um missionário coreano-americano de Los Angeles, entrou na Coreia do Norte vindo da China no dia de Natal de 2009, segurando uma Bíblia numa das mãos e a gritar: "Jesus ama a Coreia do Norte". Esteve 43 dias detido e depois foi libertado e expulso do país.

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