Travis King: o que se sabe sobre o soldado americano que fugiu para a Coreia do Norte

CNN Portugal , MJC
21 jul 2023, 15:22
Travis King - soldado americano na coreia do  norte (Uncredited/AP)

O soldado de 23 anos estava na Coreia do Sul e preparava-se para voltar para os Estados Unidos, onde iria enfrentar medidas disciplinares

Travis King, um soldado dos EUA, de 23 anos, está na Coreia do Norte, incontactável, depois de cruzar a fronteira da Coreia do Sul sem autorização. A história tem todos os ingredientes de um filme - incluindo o facto de ninguém saber muito bem o que se passou e o suspense em relação ao futuro do jovem americano e do que é que este caso pode implicar nas já difíceis relações diplomáticas entre os EUA e a Coreia do Norte.

O que aconteceu na fronteira?

O soldado estava integrado num grupo de turistas que fazia uma excursão pela Área de Segurança Conjunta, na Zona Desmilitarizada (DMZ), que faz a fronteira entre as duas Coreias. Na Área de Segurança Conjunta são comuns as excursões abertas ao público, organizadas pelo Comando das Nações Unidas.

A área desmilitarizada é uma das mais fortificadas fronteiras do mundo, com quilómetros de arame farpado, minas terrestres e soldados das duas Coreias, mas, embora exista um conjunto de pontos de segurança para chegar à Àrea de Segurança Conjunta, também conhecida como "aldeia das tréguas", cruzar a Linha de Demarcação Militar, que é a fronteira efetiva entre as duas Coreias, não requer que se passe qualquer barreira física. Há apenas uma pequena linha com relevo no chão.

Sarah Leslie, uma turista da Nova Zelândia, que estava no grupo de King na visita, disse à Associated Press que se lembra de ver King a rir e depois viu-o "a correr a grande velocidade em direção ao lado norte-coreano". "Ficámos todos surpreendidos e chocados", acrescentou. Um soldado americano gritou "apanhem-no!". Soldados sul-coreanos e americanos correram atrás dele, mas não conseguiram apanhá-lo, contou a turista. Até que o jovem desapareceu da sua vista.

Outra testemunha contou que o grupo de turistas foi levado à pressa de volta à Freedom House para que prestassem depoimentos. No autocarro, estavam todos bastante transtornados com o que tinha acontecido. "Alguém comentou que chegámos 43 e só voltámos 42".

O Comando das Nações Unidas, que opera a DMZ, disse acreditar que o soldado está agora sob custódia da Coreia do Norte.

As autoridades norte-americanas afirmam que não houve qualquer contacto com o soldado e que o incidente está a ser investigado pelas Forças dos EUA na Coreia do Sul.

"O Pentágono entrou em contacto com os seus homólogos do exército do povo [norte] coreano. Essas comunicações ainda não foram respondidas”, disse Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, na quarta-feira.

O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, disse que a principal preocupação do Pentágono é com o bem-estar do soldado. A secretária de imprensa da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, confirmou que "ainda estão a reunir todos os factos". "O nosso principal objetivo é garantir o seu bem-estar, ter uma noção de como ele está, mas também, claramente, estamos empenhados em trazê-lo para casa", disse Austin na quarta-feira.

O que sabemos sobre Travis King?

O soldado King está no Exército americano desde janeiro de 2021. Integrava desde fevereiro de 2022 a 1ª Divisão Blindada do exército em rotação na Coreia do Sul. Já recebeu três medalhas ao serviço do exército: a Medalha do Serviço de Defesa Nacional, a Medalha do Serviço de Defesa Coreano e a Fita do Serviço Ultramarino.

Em outubro do ano passado, o jovem envolveu-se em algumas brigas e foi acusado de agressão contra um cidadão sul-coreano num clube noturno em Seul e de ter "pontapeado repetidamente" um veículo da polícia sul-coreana. De acordo com a decisão de um tribunal sul-coreano, King declarou-se culpado da agressão e destruição de bens públicos. Foi multado em 5 milhões de won (cerca de 3.500 euros) pelos danos provocados no carro e por gritar "linguagem obscena" aos polícias que tentavam prendê-lo. De acordo com as autoridades, foi libertado em 10 de julho, depois de cumprir dois meses de prisão.

King foi então enviado para Camp Humphreys, uma base do exército americano na Coreia do Sul, onde esteve sob observação militar durante uma semana e de onde foi escoltado para o aeroporto de Incheon, em Seul. Deveria apanhar um voo para os Estados Unidos, onde enfrentaria medidas disciplinares. Mas não embarcou no avião. De acordo com os relatos, King chegou sozinho ao portão de embarque do aeroporto de Incheon, pois os militares não tinham autorização para acompanhá-lo até o avião. Aí, terá abordado um funcionário da American Airlines, alegando que o seu passaporte tinha desaparecido. O funcionário da companhia aérea acompanhou-o para fora da zona de embarque. Aproveitando esta falha na segurança, o soldado saiu do terminal e foi até à fronteira, que fica a 54 quilómetros de distância.

O soldado deveria viajar para Fort Bliss, no Texas, e provavelmente seria afastado administrativamente do exército. As autoridades americanas acreditam que o soldado cruzou a fronteira "voluntariamente", provavelmente para fugir às retaliações. Se se confirmar esta tese, King é o primeiro militar a desertar desde o início dos anos 1980.

A mãe de King, Claudine Gates, mostrou-se surpreendida com as ações do filho, afirmando que ele devia estar num “estado de espírito perturbado para tomar tal decisão”. À comunicação social, a mãe confirmou que tinha falado com o filho "algus dias antes", quando ele disse que em breve voltaria para Fort Bliss, a sua base militar no Texas.

O soldado planeou a fuga?

É possível que a fuga do soldado tenha sido planeada.

O apresentador de um podcast sobre a Coreia do Norte, Jacco Zwetsloot, trabalhou em 2012 para uma empresa de turismo que levou soldados americanos para a Área de Segurança Conjunta - a única parte da Zona Desmilitarizada (DMZ) onde as forças norte-coreanas e sul-coreanas ficam frente a frente. À BBC, Zwetsloot diz que "não há como fugir do aeroporto um dia e reservar um desses passeios no dia seguinte". Geralmente, a autorização para essa visita demora três dias e as pessoas têm de enviar o seu número de passaporte e identidade militar para o comando da ONU que opera a área. "Quando eu organizava os passeios, tivemos que alterar o prazo de marcação 48 para 72 horas porque havia muitos erros", conta.

Além disso, desde a pandemia, tem sido muito mais difícil conseguir esses passeios. Eles só se reiniciaram recentemente, e parece que existem apenas duas empresas a proporcionar visitas a estrangeiros. Fazer uma reserva exigiria pesquisa e planeamento.

Porque esta situação é tão complicada para os EUA?

O incidente suscitou preocupações tanto nos Estados Unidos como no resto do mundo. Os Estados Unidos não têm relações diplomáticas oficiais com a Coreia do Norte e a detenção do soldado nas mãos de um regime notoriamente secreto torna mais complexa qualquer potencial resolução.

As tensões crescentes na península coreana tornaram-se uma prioridade da política externa para o governo do presidente dos EUA, Joe Biden.

O incidente ocorreu no dia em que um submarino de mísseis nucleares dos EUA chegou ao porto sul-coreano de Busan - uma demonstração visível da força militar dos EUA que irritou os norte-coreanos. A medida foi uma resposta dos EUA a mais de cem novos testes de mísseis norte-coreanos nos últimos anos.

Desta forma, o soldado poderá potencialmente ser usado pela Coreia do Norte como moeda de troca para negociar com os EUA.

O que aconteceu com os americanos detidos pela Coreia do Norte no passado?

Vários cidadãos americanos foram detidos Coreia do Norte desde 1996, entre os quais turistas, académicos e jornalistas. Nenhum deles entrou no país através da Área de Segurança Conjunta. Em julho de 2017, o governo dos EUA proibiu os cidadãos americanos de visitar o país.

O caso mais conhecido, conta o New York Times, é o de Charles Robert Jenkins, um sargento do exército americano que desertou para a Coreia do Norte em 1965 para evitar o combate no Vietname. Jenkins só foi autorizado a deixar a Coreia do Norte em 2004. Contou que durante aqueles anos ensinou inglês a cadetes militares norte-coreanos e apareceu em panfletos e filmes de propaganda antiamericana.

Alguns turistas americanos que viajaram à Coreia do Norte foram detidos. Em 2013, Merrill Edward Newman, um reformado americano, foi libertado após ter estado detido durante 42 dias, acusado de cometer atos hostis.

Otto Warmbier, um estudante da Universidade da Virgínia, foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados depois de ser condenado, acusado de tentar roubar um póster de propaganda num hotel de Pyongyang. Em 2017, voltou para casa em coma após 17 meses de detenção e depois morreu.

Robert Park, um missionário coreano-americano de Los Angeles, entrou na Coreia do Norte vindo da China no dia de Natal de 2009, segurando uma Bíblia numa das mãos e a gritar: "Jesus ama a Coreia do Norte". Esteve 43 dias detido e depois foi libertado e expulso do país.

O que poderá acontecer a seguir?

O destino do soldado dependerá em grande parte se a Coreia do Norte, que ainda não comentou o caso, o vai tratar como uma deserção ou como uma entrada ilegal no país.

Um desertor poderá pedir autorização para viver na Coreia do Norte, mas os acusados de entrar ilegalmente no país costumam ser usados nas negociações.

Os Estados Unidos não têm embaixada em Pyongyang. Contam com a Embaixada da Suécia para ajudar a proteger os interesses dos americanos detidos lá.

Relacionados

Ásia

Mais Ásia

Patrocinados