Como a instabilidade política causa ansiedade (e como essa ansiedade já não é de agora)

19 mar, 18:00
Ansiedade (Freepik)

A incerteza política pode ter consequências diretas na saúde e bem-estar e quanto mais tempo se passar sem uma solução, pior

Uma vitória à tangente com uma derrota assumida sem que, ainda, de facto, se tenha perdido. Um partido que cresceu a olhos vistos e que há muito promete mudar as regras do jogo e outros que querem evitar o cenário mais provável. Umas eleições que estão longe de resultar em estabilidade política. E quem diz política diz emocional e mental.

“As causas da ansiedade acabam por ser multifatoriais e uma crise política pode potenciar os sinais e sintomas de ansiedade”, começa por dizer Ana Valente, psicóloga e docente no Instituto Universitário ISPA, que explica à CNN Portugal que a ansiedade potenciada ou agravada por fatores políticos é uma realidade que pode ser “patológica” à medida que a incerteza e a instabilidade se prolongarem. “Podemos ficar numa situação mais vulnerável com esta incerteza de gestão de um país e gerir um país é gerir a vida das pessoas”, continua.

Embora lá fora seja comum o uso do conceito ‘ansiedade política’, a psicóloga Catarina Lucas “chamaria mais tensão política” àquilo que se vive em Portugal. “É mais stress político e eleitoral, sobretudo nesta fase de instabilidade, de mudanças”, diz, embora também reconheça que o prolongamento desta instabilidade e incerteza possam levar a quadros de ansiedade mais agudos nuns casos e mais prolongados noutros.

A instabilidade e a incerteza são, de facto, os dois grandes fatores nesta equação e aqueles que maior impacto têm no bem-estar psicológico e emocional, especialmente em pessoas “mais preocupadas com os valores, com as normas, com a forma como as coisas devem ou não funcionar”, adianta Catarina Lucas, acrescentando que as pessoas que apresentam um “perfil mais obsessivo” e que “vivem mais a política” são as que se sentem mais ansiosas, não só perante a atual situação, mas também perante os resultados eleitorais, especialmente se forem contra aquilo que acreditam ou que consideram ser o melhor para o país. 

Ansiedade não começa nem acaba na noite eleitoral

O domingo em que os portugueses vão às urnas e conhecem os resultados (nem sempre taxativos) pode até ser o “pico” de ansiedade em toda esta jornada eleitoral, mas está longe de ser o único momento. Em casos de eleições antecipadas, por exemplo, a ansiedade pode surgir logo com a ‘queda’ do Governo. Até se ter um novo Executivo muitas semanas passam, muita informação rola, muita desinformação se espalha. Entre a demissão de António Costa e a ida às urnas, por exemplo, passaram-se quatro meses, quatro meses de debates, análise, notícias, campanha e opiniões. E quatro meses depois a incerteza mantém-se, uma incerteza que não diz apenas respeito a quem vai governar e quando vai governar, mas a como o país vai funcionar de hoje em diante e que impacto isso terá na vida de cada pessoa.

Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses, assegura que a ansiedade não começa nem acaba na noite eleitoral. Pelo contrário, a ansiedade que muitos sentem agora já não é, na verdade, de agora - e isso pode até ter sido determinante para “encorajar a participação eleitoral”. 

“A ansiedade não é causada especificamente pelo resultado final das eleições, já vem causada de trás, com informações incorretas e com alguns discursos que geram medo. O gatilho não é especificamente o resultado do processo eleitoral, é tudo o que vem de trás”, continua Sofia Ramalho, apontando o dedo “à falta de confiança, seja nas pessoas, seja nas instituições, que advém da comunicação por parte das diferentes frações eleitorais”.

Independentemente de a ansiedade relacionada com a política ser de agora ou de outrora, Sofia Ramalho afirma que “as pessoas ficam mais perdidas” e isso traz consequências no seu bem-estar psicológico e emocional. Ana Valente adianta mesmo que “em populações mais vulneráveis” o facto de não se saber o que aí vem “pode ter mais impacto”, dando o exemplo dos cuidados de saúde públicos que em muitos locais já funcionam a meio-gás e cuja solução a instabilidade política poderá atrasar ainda mais, condicionando os acessos. “Esta não resolução pode transformar a minha ansiedade numa ansiedade patológica”, alerta a psicóloga, que dá outro exemplo: “As pessoas que viveram numa época em que não havia liberdade, estes resultados podem levar a mais ansiedade e stress”.

É aquilo que chama efeito “bola de neve”. As pessoas estão ansiosas com a incerteza política, a incerteza política interfere com o dia-a-dia dessas pessoas, esse dia-a-dia condicionado deixa-as mais ansiosas. “Ao sentir este medo, este receio, seja real ou não, seja no presente e no futuro”, está-se sempre perante uma “preocupação excessiva que traz sofrimento psicológico e sentimentos sobre algo que não está totalmente no nosso controlo”, esclarece Ana Valente.

E não haver ainda um fim à vista apenas vem complicar ainda mais o estado da saúde mental: “como as coisas nem sequer são claras, chegamos agora com mais dúvidas do que antes e, por isso, os estados de ansiedade têm-se prolongado”, adianta Catarina Lucas, que tem um consultório em nome próprio em Lisboa.

Noites em branco, irritação e fome

A ansiedade causada pela situação política “pode ser autolimitada, mas temos de estar sempre atentos aos sinais”, adverte Ana Valente, garantindo que à medida que se prolongam no tempo e se agravam podem resultar numa “ansiedade patológica”.

Entre os sinais mais claros de que a pessoa se sente ansiosa por culpa do panorama político estão “a irritação e as disputas com amigos de forma acentuada, que se transformam em discussões”, exemplifica Catarina Lucas, listando ainda a possibilidade de haver “dificuldade até ao nível do sono”.

Em 2020, por exemplo, os Estados Unidos foram palco de um fenómeno chamado ‘fome de stress’ associado à campanha eleitoral. E está cientificamente comprovado que o corpo liberta cortisol durante um evento stressante e que quando esta hormona está em excesso, em particular durante um período prolongado de tempo, pode levar ao aumento do consumo de alimentos e, por consequência, ao ganho de peso, como explica a Universidade de Harvard.

No caso de perturbação de ansiedade generalizada, segundo o site do Serviço Nacional de Saúde, podem ainda ocorrer “sintomas de ansiedade permanentes, persistentes, de vários tipos, habitualmente com sintomas físicos, como cólicas ou alterações de trânsito intestinal; como palpitações; como tonturas e sudação”.

Perante qualquer sinal de alerta, nada como consultar um profissional.

Mesmo no meio da incerteza, é possível controlar a ansiedade

Quando confrontada com um resultado incerto, “a tendência da nossa mente é contrair-se em torno de todos os resultados negativos que podem acontecer”, diz a Associação Americana de Ansiedade e Depressão, que adianta que é possível “contrariar esta tendência” quando se adota uma “mentalidade expansiva”, ou seja, quando se fica consciente de que vários cenários estão em cima da mesa, incluindo os bons.  

Da mesma opinião é a psicóloga Catarina Lucas, defendendo que “é importante sensibilizar” para o facto de que, mesmo exercendo o direito de voto, “somos um tanto ou quanto impotentes na tomada de decisões políticas, não temos controlo e estarmos em tensão, ansiosos, irritados, não vai melhorar”. Resta-nos, acrescenta a psicóloga, “aguardar”. E abrir horizontes, tal como sugere o Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Universidade da Califórnia, em São Francisco: “É importante preparar-se para ondas de incerteza e ansiedade durante estes tempos desafiadores”.

“As pessoas não conseguem controlar a irritação quando veem notícias, ficam angustiadas, com stress. Se sentem um comprometimento do quotidiano, então têm de mudar o comportamento”, vinca Ana Valente. E o primeiro passo é tão simples quanto seguir os conselhos que foram dados em tempos de pandemia. Que é como quem diz: menos consumo, melhor consumo. “É importante adotar um comportamento consciente, tenho de estar informado, mas a sobrecarga faz mal”, continua a docente universitária.

Sobre o papel da informação, a psicóloga Sofia Ramalho foca-se mais na “desinformação”, cada vez mais fácil de espalhar e de consumir. Essa desinformação, diz-nos, “vai explorar os vieses do pensamento e das emoções das pessoas, o que pode gerar indignação, medo e ansiedade. E isso vai influenciar o próprio comportamento”, seja no ato eleitoral ou depois. “É um círculo vicioso, a desconfiança aumenta a procura de informações alternativas e isso leva à desinformação, o que desafia a capacidade para distinguir a realidade e isso angustia as pessoas, deixa-as mais ansiosas”, continua a vice-presidente da OPP, salientando que é importante as pessoas terem consciência e barreiras criadas e que haja regulamentação para travar as informações falsas.

No fundo, dizem as especialistas, cada pessoa deve avaliar o que é melhor para si e todas pedem peso e medida no tipo e quantidade de informação. Quem está em teletrabalho, por exemplo, deve tentar consumir informação televisiva “uma a duas vezes por dia”, podendo optar por filtrar o consumo apenas a meios digitais ou impressos, escolher um e ler, recomenda Catarina Lucas. Quanto às redes sociais, o melhor é mesmo fazer uma pausa e sair da bolha. Além de serem um palco “propenso para destilar” e dar azo a “uma série de irritações e raivas”, pois “lê-se lá muitos disparates”, como diz Catarina Lucas, há sempre o risco de se “viver numa bolha” quando só se procura informação nas redes sociais, reconhece Ana Valente.

“Nas redes sociais, o algoritmo sabe a minha tendência [política], traz mais informação e vivo numa bolha, o que vai potenciar a minha ansiedade”, diz Ana Valente.

De uma forma mais generalizada, sugere o SNS, “a ansiedade excessiva pode ser equilibrada com atividades que tragam alívio de tensão, ou mudança de foco das preocupações tais como o exercício físico, o relaxamento ou a meditação”. Além disso, “a gestão do stress do dia a dia, com respeito pelo tempo, pelas horas de descanso e de sono, pode também contribuir para prevenir que a ansiedade atinja níveis nocivos”.

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