Com cicatrizes e o olho tapado por uma lente escura, Salman Rushdie fala pela primeira vez sobre ataque: "Sento-me para escrever e não acontece nada"

7 fev 2023, 10:15
Salman Rushdie (Grant Pollard/AP)

Costuma dizer-se que o tempo cura todas as feridas, mas seis meses depois do "ataque colossal" que sofreu em Nova Iorque, Salman Rushdie tem aprendido a viver com "uma coisa chamada Perturbação de Stress Pós-Traumático". As feridas físicas, mesmo as maiores, "já cicatrizaram", mas falta curar aquelas que lhe têm dificultado a escrita: "Escrevo, mas é uma mistura entre vazio e lixo, coisas que escrevo e depois apago no dia seguinte"

Com cicatrizes no rosto, uns óculos com uma lente escura e uma outra transparente. Foi assim que o escritor Salman Rushdie deu pela primeira vez a cara e falou sobre o "ataque colossal" que sofreu e que o deixou cego de uma vista e incapacitado de uma mão. Numa entrevista à The New Yorker, falou em "sorte" e "gratidão", mas também nas marcas físicas e mentais.

"Sorte... o meu principal sentimento é de gratidão."

Tudo aconteceu em agosto do ano passado, quando o escritor se preparava para subir a um palco, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, para realizar uma palestra. O agressor irrompeu pelo palco, no Instituto Chautauqua, e apunhalou-o várias vezes. Salman Rushdie esteve semanas internado no hospital sem conseguir falar e com recurso a um ventilador. Mais tarde, percebeu-se que tinha perdido a visão de um olho e ficou incapaz de mexer uma das mãos, uma vez que os nervos do braço tinham sido cortados.

O escritor já tinha sido alvo de várias ameaças de morte por causa do romance "The Satanic Verses" ("Os Versículos Satânicos") de 1988, mas nunca tinha sido atacado, muito menos com tamanha violência. Aliás, nesta entrevista ao jornalista David Remnick, fala mesmo em "ataque colossal". Ainda assim, disse: 

"Já estive melhor. Mas, tendo em conta o que aconteceu, não estou assim tão mal. Os ferimentos maiores já cicatrizaram. Tenho sensibilidade no meu polegar, no dedo indicador e na metade inferior da palma da mão. Estou a fazer muita fisioterapia e disseram-me que estou a evoluir muito bem."

Contudo, admite que tem sido muito difícil escrever em suportes digitais ou à mão, devido à falta de sensibilidade em algumas pontas dos dedos. Salman Rushdie sofreu ferimentos graves no rosto, pescoço e no braço e ficou com mais de 15 feridas no peito e no torso. 

Apesar das feridas físicas estarem cicatrizadas, existem as mentais. E essas, admitiu, ainda estão muito presentes. Tão presentes que o obrigaram a repensar a forma como olha para a segurança, depois de ter vivido durante duas décadas sem ela.

"Existe uma coisa chamada Perturbação de Stress Pós-Traumático. Tem sido muito, muito difícil escrever. Sento-me para escrever e não acontece nada. Escrevo, mas é uma mistura entre vazio e lixo, coisas que escrevo e depois apago no dia seguinte. Eu ainda não saí dessa floresta, mesmo."

Salman Rushdie explicou que tem sido capaz de se levantar e andar, mas quando diz que está bem, isso significa "que há partes do meu corpo que precisam de exames constantes". "Foi um ataque colossal", acrescentou. 

Tendo em conta as várias ameaças que recebeu ao longo de anos, Salman foi questionado nesta entrevista se não se deveria ter resguardado mais quando foi viver para Nova Iorque, em 2000. Se na altura estava certo que não, agora procura respostas: "Bom, eu tenho colocado essa pergunta a mim próprio e não sei responder. Eu tive mais de 20 anos de vida. Isso foi um erro? Além disso, eu escrevi muitos livros".

O último romance do escritor - "Victory City" - foi terminado pouco antes do ataque e deverá ser publicado ainda esta semana. Apesar do ataque que o deixou com várias limitações, Salman continua a querer que os leitores "sejam capturados pela história, que se deixem ler". Não quer, por isso, assumir "o papel de vítima", não quer que as pessoas leiam os seus livros e pensem: "'alguém me espetou uma faca! Coitado de mim...'". No fundo, Salman não quer que aquilo que lhe aconteceu o destrua como artista. 

"Sempre achei os meus livros mais interessantes que a minha vida. Infelizmente, o mundo parece discordar."

Este 21.º romance é uma mistura entre a realidade e o mágico. Conta a história de uma deusa que constrói uma cidade a partir de sementes e vive até aos 247 anos, com olho no país onde nasceu, índia, e um eventual golpe do Estado ao governo, uma vez que é forte crítico do primeiro-ministro Narendra Modi.

Acusado de tentativa de homicídio, Hadi Matar declara-se inocente

O agressor de Salman Rushdie declarou-se, perante um tribunal em Mayville, em Nova Iorque, inocente da "tentativa de homicídio" do escritor. Hadi Matar é libanês, tem 24 anos, nasceu nos Estados Unidos e é considerado por especialistas em radicalismo islâmico, um simpatizante do Irão e da Guarda Revolucionária iraniana. 

Hadi Matar, suspeito do ataque a Salman Rushdie (Associated Press)

Detido imediatamente após o ataque, Hadi Matar já se tinha declarado inocente durante uma audiência processual. O juiz optou por mantê-lo detido, sem direito a fiança.

Numa entrevista ao jornal The New York Post, Hadi declarou ter aversão a Rushdie por este "atacar o Islão" no seu romance "Os Versículos Satânicos", que admitiu não ter lido, mas negou qualquer contacto com o Irão.

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