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Economista e Professor Universitário

O Santo Padre podia vir a Portugal, mas sem um altar-palco de três milhões de euros. O conteúdo cristão e papal não diminuiria, certamente

31 jul 2023, 23:21

Apesar de constituir um “investimento para o futuro”, a construção de um altar-palco de três milhões de euros não se coaduna com as dificuldades extremas e estruturais sentidas em muitos setores da sociedade portuguesa.

Com mais de um milhão de jovens a rumar a Portugal para as Jornadas Mundiais da Juventude, não deixa de ser tristemente irónico que, neste país, a geração mais qualificada de sempre receba, em média, 843 euros/mês. Os números são do jornal Dinheiro Vivo, a partir de informação do Instituto Nacional de Estatística.

Já os dados do Eurostat indicam que o salário médio bruto em Portugal corresponde a 58% da média da UE. Portanto, os trabalhadores europeus auferem, em média, quase o dobro de um português.

Numa outra perspectiva, igualmente preocupante, o salário médio líquido no setor privado nacional aumentou, em termos homólogos, 0,1% no primeiro trimestre de 2023. Os dados do Instituto Nacional de Estatística não deixam dúvidas a este propósito. Em um ano, o aumento salarial líquido foi de 1 euro. Não é um lapso. 1 euro em um ano.

Os mesmos dados do INE revelam ainda uma hecatombe nas atividades mais qualificadas. A destruição foi superior a 6% nas profissões intelectuais e científicas. Neste segmento, que abrange médicos, professores e investigadores, a remuneração líquida do trabalho é de 1.420 euros mensais. Um nível salarial assim é um convite declarado à emigração e à “fuga de talento”. E nem mesmo o emprego no universo das atividades profissionais técnicas resistiu à tendência negativa. A erosão foi aqui de 20%. Nestas profissões, o salário médio fica abaixo dos 1.100 euros. É confrangedor.

Por tudo isto, não se estranha que uma sondagem recente da Aximage para DN/JN/TSF tenha concluído que a “maioria dos jovens admite sair do país e culpa a economia” por isso.

O país descaracteriza-se a cada dia. O processo parece ser irreversível.

Portugal continua a integrar o grupo dos Estados-membros da União Europeia que apresentam maior risco de pobreza entre trabalhadores. A TSF noticiou muito recentemente os resultados de um estudo da Associação Cristã de Empresários e Gestores: 30% dos pobres portugueses tem emprego.

A Assistência Médica Internacional e o Banco Alimentar deixaram, há algumas semanas, um alarme preocupante: o país tem cada vez mais licenciados a recorrer ao apoio alimentar.

Portanto, ter um diploma ou mesmo emprego em terras lusas pode não ser suficiente para evitar a pobreza.

Segundo o relatório "Portugal, Balanço Social 2021" da Nova School of Business & Economics, mais de 330 mil crianças eram pobres em 2019.

No mesmo relatório, mas já em relação a 2020, pode ler-se: "mais de uma em cada quatro crianças vivia em casas com telhado, paredes, janelas e chão permeáveis à água ou apodrecidos." É um quadro desolador. E é em Portugal.

No domínio da habitação, a Agência Lusa sublinha que, desde novembro de 2022, são já bem mais de trinta mil famílias aquelas que recorreram à reestruturação dos seus créditos à habitação. Em pouco mais de um ano, as prestações dos créditos à habitação subiram para o dobro. É um processo próximo de socialmente criminoso aquele a que estão sujeitas as famílias portuguesas com créditos hipotecários.

Num país em que a habitação está cada vez mais feita para estrangeiros, Portugal começa a parecer um cruzeiro de luxo, com os portugueses a desempenhar o papel de camareiros e staff do navio, com funções que se resumem a servir as vidas desafogadas dos que vêm de fora.

No plano dos impostos, Portugal registou a maior carga fiscal global de sempre em 2022: 36,4% do PIB. Segundo o Jornal de Negócios, são mais de 80 itens de impostos, contribuições, licenças, taxas e taxinhas de receita regular para o Estado. Tudo isto num quadro em que o rendimento líquido do trabalho se situa no conjunto dos mais baixos da Europa.

A carga fiscal aplicada aos trabalhadores portugueses sobe há quatro anos consecutivos. O país tem agora a nona maior carga fiscal sobre o trabalho dos trinta e oito que compõem a OCDE. Por esta razão, talvez não seja de estranhar que Portugal ocupe a quarta posição no ranking mundial dos países com maior escassez de talento. A conclusão é de um estudo da ManpowerGroup, uma grande multinacional norte-americana que integra a lista da Fortune 500 nos Estados Unidos da América.

Na verdade, Portugal tem muito talento, mas este acaba por emigrar para evitar sofrimento e agonia. Os que por cá ficam vão sendo cada vez menos.

É urgente baixar a carga fiscal global em Portugal, e especialmente a incidente no segmento do trabalho. Só assim se aumentará a produtividade do país no curto prazo. Só assim se melhorará a atratividade pelas profissões em Portugal e se reterá o talento e os jovens portugueses. Este é, aliás, um desígnio incontornável, se a ambição for salvar o país de uma descaracterização que se acentua dia após dia e que pode tornar-se irreversível.

Num país assim, o Papa Francisco podia vir sempre a Portugal, mas sem um altar-palco de três milhões de euros.

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