Procuradora-Geral da República pede inconstitucionalidade da lei das horas extraordinárias dos médicos

17 jun 2023, 21:14

Legislação pode violar o direito ao trabalho em condições dignas e também ameaça a saúde dos doentes

A Procuradora-Geral da República (PGR) avisa que a lei das horas extraordinárias dos médicos nas urgências viola a Constituição da República Portuguesa. Em causa a violação de duas normas constitucionais, nomeadamente o direito ao trabalho em condições socialmente dignas e o princípio da proporcionalidade, mas Lucília Gago também teme que esteja em risco a saúde dos próprios doentes.

As razões anteriores levam a PGR a pedir ao Tribunal Constitucional que declare inconstitucional a legislação aprovada em 2022 pelo Parlamento e pelo Governo para atrair mais médicos dos hospitais públicos a fazerem horas extraordinárias nas urgências, através de pagamentos mais elevados, evitando a contratação dos médicos externos pagos à hora (conhecidos como ‘tarefeiros’).

No documento consultado pela TVI/CNN Portugal, Lucília Gago diz que o tempo de trabalho tem de ter um "limite máximo" e que "esse limite terá de ser fixado, sob pena de, em abstrato, o número de horas exigível a um trabalhador médico poder ser infinito, levando-o a um ponto de exaustão tal que desvirtuaria o propósito que a norma quis alcançar e que era assegurar o direito à saúde".

Trabalho digno e direito ao repouso

Segundo a procuradora, em causa está o direito ao repouso e ao trabalho em condições socialmente dignas, numa altura em que muitos médicos dos serviços públicos se queixam de uma enorme falta de recursos humanos que os leva a fazerem cada vez mais horas extraordinárias.

João Oliveira, clínico num hospital público em Lisboa, descreve que em média faz mais 4 horas extraordinárias por dia pois “sistematicamente são necessárias mais horas” sob pena de os doentes ficarem sem assistência.
Sara Proença, médica noutro hospital do Serviço Nacional de Saúde (SNS), confirma as dificuldades agravadas pelo crescente número de colegas que cedem ao apelo do sector privado onde se trabalham muito menos horas com salários mais elevados.

“Tendemos a um dia não aguentar e mais médicos saem do SNS por causa das horas extra”, relata a médica.

Direito à saúde em risco

No pedido de inconstitucionalidade enviado ao Tribunal, a Procuradora-Geral da República indica que além dos médicos também está preocupada com a saúde dos doentes.

Lucília Gago sublinha que "exigir a um trabalhador médico a realização de um número ilimitado de horas de trabalho não poderá salvaguardar o direito à saúde constitucionalmente protegido (...) com qualidade, rigor e acerto garantísticos da segurança dos doentes".

O documento acrescenta que "num Estado de Direito, assente sobre o conceito da dignidade da pessoa humana, não é compreensível a manutenção de uma norma que não preveja um limite máximo de realização de trabalho suplementar, considerando que o mesmo é obrigatório para o trabalhador".

Pedido “raro” de inconstitucionalidade

Jorge Bacelar Gouveia, professor de Direito Constitucional, explica que os pedidos de fiscalização sucessiva da constitucionalidade feitos pela PGR são “muito raros”, mas neste caso acredita que Lucília Gago “tem razão” pois “a falta de limites viola os direitos dos trabalhadores”.

Se o Tribunal Constitucional confirmar a inconstitucionalidade da lei, o constitucionalista detalha que, ao contrário de outros casos, “tudo aquilo que aconteceu até agora mantém-se válido” pois não vai existir a devolução do dinheiro pago pelas horas extra nem do trabalho feito pelos médicos.

Contudo, a norma em vigor “deixa de valer e será preciso que imediatamente o Parlamento faça uma nova legislação para enquadrar as horas extraordinárias que são essenciais” para o Serviço Nacional de Saúde.  
Contactado pela TVI/CNN Portugal, o Ministério da Saúde não reagiu à avaliação da PGR à lei das horas extraordinárias para as urgências.

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