Ser pobre é uma via rápida para a doença mental? A pandemia foi “cocktail fatal” para mostrar que sim

11 jul 2022, 07:20
Saúde, hospitais, covid-19, pandemia, cuidados intensivos,  Hospital de São João Foto: Patrícia de Melo Moreira/AFP via Getty Images

A doença mental não escolhe classe social. Mas as condições de vida mais duras, que a pandemia tornou mais evidentes, podem ser um convite a que ela se instale. Uma psicóloga e um sociólogo explicam porque a desigualdade acaba por alimentar um círculo vicioso, não permitindo pagar (ou sequer encontrar) a ajuda necessária. Num Portugal onde a covid-19 se transformou numa “sindemia”

Faça este exercício. Qual dos seguintes cenários se assemelha mais aos seus meses de confinamento geral? Cenário 1: em teletrabalho, recolhido numa casa de campo arrendada, com uma divisão onde os miúdos podiam assistir às aulas sem interferir com as suas reuniões. Cenário 2: com um trabalho presencial onde recebe o salário mínimo, a apanhar transportes, a regressar diariamente para uma casa onde a sala de estar foi transformada em escola.

Se respondeu “cenário 2”, saiba que é mais suscetível de desenvolver problemas de stress ou ansiedade associados à pandemia. O estudo do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre a pandemia refere que as famílias com maiores dificuldades económicas são as que sentiram (e ainda estão a sentir) o maior impacto na sua saúde mental.

Os investigadores classificam-no como uma “sindemia”, ou seja, quando uma doença contribui para acentuar outra realidade já existente, como os problemas económicos e sociais”. E porque são os mais pobres aqueles que se arriscam a pagar uma das faturas mais altas da pandemia?

A receita que ninguém quer experimentar

Insegurança à custa de recursos imprevisíveis e escassos – risco de perder o emprego ou de não ter o suficiente para assegurar as necessidades. Sensação de perigo pelo desconhecimento do vírus. Impotência na hora de agir – porque é preciso continuar a ir trabalhar. Perceção de injustiça face outros que não passam pelo mesmo – porque, por exemplo, ficam protegidos pelo teletrabalho. Aponte estes elementos. São os ingredientes da receita de um “cocktail fatal para a doença mental”, diz Filipa Jardim da Silva.

Em conversa com a CNN Portugal, a psicóloga clínica não hesita: “Um dos fatores de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde mental passa pelas condições socioeconómicas. As classes mais desfavorecidas são muitas vezes classes com menos informação. Estão mais em modo sobrevivência, num dia a dia orientado para essa sobrevivência. Não têm sequer o conceito de bem-estar nas suas rotinas.”

Quando a prioridade está em garantir o sustento, o restante passa para um segundo plano. E no restante inclui-se um conjunto muito variado de elementos que contribui para a chamada saúde mental – como o simples gesto de dar um passeio ou de pedir ajuda especializada.

“Estas populações não têm segurança nem física nem psicológica suficiente. A pandemia veio exacerbar e adensar essa insegurança. Quando não temos segurança, impacta tudo em nós”, insiste Filipa Jardim da Silva. Mas, por muito que o pânico de uma pandemia as tenha deixado a sentirem-se impotentes, continuaram a trabalhar, a procurar garantir o alimento.

E, em muitos casos, a alimentar um problema ainda maior, como a depressão.

Dupla sujeição

“A pandemia não veio nivelar, veio distanciar.” É deste jeito, quase em tom de máxima, que o sociólogo Nuno Nunes explica o facto de “a condição socioeconómica ser bastante relevante na explicação da saúde mental de cada um”.

Neste contexto de pandemia, quando se fala de pobreza, há que falar também de uma dupla sujeição. Por um lado, essas pessoas têm medo de perder rendimentos. Por outro, acabam por se sujeitar ao que for preciso – como andar de transportes ou atender ao público – para não perderem o salário. E, com isso, vão alimentando receios e ansiedades que podem desembocar numa situação que exige tratamento médico e/ou psicológico.

“As condições influenciam bastante a maneira como as pessoas viveram a pandemia. Sobretudo no plano do emprego, mas também no plano da conciliação da vida pessoal-profissional. Por exemplo, uma família com poucos recursos, a viver numa casa pequena, tem dificuldade em gerir situações de teletrabalho ou de apoio aos filhos”, concretiza.

A corrida invertida (e o acesso desigual ao tratamento)

Na análise das desigualdades sociais, uma das metáforas recorrentes é a da corrida: se partíssemos todos da mesma linha, conseguiríamos chegar todos à meta ao mesmo tempo? A resposta recorrente é “não”. E agora, com a pandemia, os especialistas acreditam que há quem esteja a recuar ainda mais em relação à marca de partida.

Exemplos não faltam, a começar pelo acesso ao tratamento da doença mental. “Estas pessoas economicamente mais frágeis estão única e exclusivamente dependentes do SNS, onde o acesso não é assim tão simplificado”, diz Filipa Jardim da Silva, insistindo que muitos destes pacientes acabam a ver ser-lhes prescritos ansiolíticos, algo que deveria ser “a última linha de intervenção”. Já o privado, para eles, não passa de uma miragem, que não podem pagar.

“As pessoas com melhores rendimentos têm melhores opções de decisão”, reitera Nuno Nunes. E dá um exemplo noutra área que demonstra como a pandemia veio acentuar o fosso entre ricos e pobres: “Se os alunos de contextos desfavorecidos já tinham dificuldades de aprendizagem, elas agravaram-se.”

Doença mental não tem classe social

Apesar deste retrato, há uma ideia que convém sempre vincar: a saúde mental é algo transversal à sociedade e, como tal, não exclusiva de quem tem maior fragilidade económica. A prova disso é que têm chegado aos consultórios dos psicólogos pacientes com forte poder de compra que “têm desenvolvido sequelas e procurado ajuda ‘a posteriori’”, nomeadamente com transtornos depressivos ou ‘burnouts’ [esgotamento causado pelo excesso de trabalho], segundo Filipa Jardim da Silva.

A grande diferença é apenas uma: quem tem dinheiro consegue pagar a ajuda que necessita; quem não tem não sabe, muitas vezes, sequer onde encontrá-la.

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