Covid-19: Portugal já vive em endemia? Especialistas dividem-se

29 jan 2022, 13:00
Greve do Metropolitano de Lisboa

Um ano após terem sido administradas as primeiras vacinas contra a covid-19 em Portugal, fazem-se mais testes, há mais casos mas menos mortes pela doença no País

Quase dois anos depois da covid-19 chegar à Europa, a pergunta continua a ser a mesma: quando nos vamos livrar da pandemia? Parece ser cada vez mais consensual que o vírus veio para ficar, e o segredo será a passagem para uma endemia, com a doença a tornar-se comum nas sociedades, como acontece com a gripe, por exemplo, mas as opiniões dividem especialistas.

Apesar do brutal aumento de casos diários das últimas semanas, as mortes continuam em valores consideravelmente mais baixos que em 2021, rondando entre os 40 e os 50 óbitos diários. Tudo isto ao mesmo tempo que uma estimativa de peritos do Instituto Superior Técnico aponta o fim da fase pandémica para o próximo mês, quando é previsto que a doença passe a ser residente. De resto, isso mesmo foi dito esta quinta-feira pela Organização Mundial de Saúde.

A diferença é clara face aos valores de há um ano e deve-se ao grande efeito da vacinação, processo em que o nosso País lidera a nível europeu. Então, estará Portugal pronto para dar o próximo passo?

Sim, para o virologista Pedro Simas, que vem defendendo que se deve dar um passo à frente há algum tempo. Em conversa com a CNN Portugal, o especialista explica que estamos a atravessar uma fase claramente endémica.

“O que carateriza uma endemia é um baixo número de infeções na primavera e verão, e uma onda sazonal exponencial nos meses de inverno”, explica, dando o exemplo da gripe, que costuma ter entre dezembro e março a sua época de maior atividade, tornando-se pouco relevante ou quase inexistente nos restantes meses do ano.

Os números do virologista também batem certo: cada português tem, por ano, duas a três infeções respiratórias, sendo que 10% a 15% dessas são coronavírus. De todas essas infeções, a esmagadora maioria ocorre no espaço de quatro meses, geralmente associados ao inverno.

Ora, a matemática diz que, assim, nesses quatro meses podem ser contabilizados até 250 mil casos por dia.

Se 10% a 15% forem coronavírus, falamos de 25 a 37,5 mil casos por dia, número relativamente semelhante ao que foi verificado nas primeiras semanas do ano, ainda que sem se notar uma substancial subida no número de mortes. Agora, e com esses números a subirem para perto do dobro, Pedro Simas fala num sinal que é ainda mais claro: "Estamos numa altura sazonal de um vírus com comportamento endémico".

“Estamos numa situação que é tipicamente endémica, porque para o número de infeções o número de mortes não acompanha”, refere Pedro Simas.

Para o especialista, é a altura certa de dar um salto, não abandonando todas as precauções, mas abrindo de forma generalizada a sociedade, mantendo apenas a utilização de máscara e assegurando a vacinação com dose de reforço dos doentes mais frágeis.

A solução, aponta, passa por deixar de fazer testes à covid-19 de forma generalizada, a não ser em situação hospitalar, onde a prática se deve manter. Na prática, passar a tratar a covid-19 como um qualquer vírus respiratório, à semelhança do que Espanha se prepara para fazer - e a Dinamarca já anunciou que vai ser feito a 1 de fevereiro -, até porque “os coronavírus são menos virulentos que a gripe”. De resto, Pedro Simas prevê que, já no próximo inverno, a covid-19 seja menos grave que a gripe.

“Temos de desconfinar, temos de simular uma situação endémica. Tem de haver coragem política para tomar as decisões com base na evidência. E a evidência é que estamos protegidos”, sublinha, definindo os cuidados intensivos como o dado mais fiável atualmente.

Dado esse passo, Pedro Simas pede que se continue a realizar uma vigilância ativa, verificando as linhas vermelhas de internamento, e, caso seja necessário, dar um passo atrás.

De resto, mesmo o escalar de casos estará perto de acabar, uma vez que, segundo o virologista, o pico de infeções, se ainda não atingido, deverá estar muito perto disso.

“Temos tudo para estar otimistas e avançar o mais rapidamente possível para a normalidade, mantendo o uso da máscara, pelo menos em espaços interiores, e com os grupos de risco com a dose de reforço”, conclui.

De outra opinião é o médico de saúde pública Bernardo Gomes, que afirma ser errado usar-se o termo endemia quando nos referimos à covid-19 e critica quem o tem feito de forma "leviana" numa fase que acredita ser ainda tão precoce.

“Sob nenhuma perspetiva podemos dizer que estamos perante uma endemia”, começa por dizer o especialista dando como exemplo a “onda motivada por uma variante mutada” que o País e o mundo atravessam.

O clínico explica que a Ómicron é uma variante hiper-transmissível e que a "aparente" menor seriedade só se deve ao facto da imunidade acumulada após o contacto com o vírus e também proporcionada pela vacinação.

“A Ómicron permite-nos ter uma maior margem de manobra no sentido da gestão do risco. Mediante a disseminação desta variante, o que foi estudado é que poderíamos avançar, como aliás se fez com a abertura das escolas, sem esperar consequências de maior em termos de hospitalizações ou da sobrecarga do SNS”, adianta, explicando que o País atravessa uma fase de adaptação e que a mesma gera por vezes confusões.

“Nos hospitais ainda estamos com um fenómeno moderado-alto de pressão e acredito que o número dos internamentos irá continuar a subir nos próximos dias. O que Portugal tem de extraordinário é, de facto, a grande adesão à vacinação”.

Bernardo Gomes explica que os números são excelentes indicadores da contenção da doença devido à elevada taxa de vacinação em Portugal, mas que a pandemia continua a ser um desafio para os sistemas de saúde a nível mundial. O médico recorda, aliás, que é essencial o investimento na correta ventilação de espaços fechados e também na manutenção de alguns cuidados a que os portugueses já estão habituados.

“São medidas que têm de ser mantidas durante algum tempo para nos adaptarmos às circunstâncias que vão surgindo”, explica.

Para o especialista, antes de ser dado mais um passo é essencial que seja concluído o esquema vacinal. Isto é, Bernardo Gomes defende que todos os adultos recebam a dose de reforço contra a covid-19, assim como continuem a recorrer aos testes rápidos como forma de travar correntes de transmissão. Por outro lado, para o médico a apresentação dos certificados de vacinação é uma das medidas a abandonar.

“A maior probabilidade é que a evolução da situação nos dê imunidade acumulada e maior proteção perante o vírus. No entanto, assumir que tudo acabou ou vai acabar de um momento para o outro é um erro. Ainda que a probabilidade da mudança de perfil do vírus seja reduzida, a pandemia continua a ser uma lição de humildade permanente. Quem diz que a pandemia já acabou, um dia vai acertar, mas ainda não é agora”, adianta, referindo que “não há almoços grátis” e que tudo o que está a ser decidido pressupõe uma maior transmissão entre a comunidade, com algumas das consequências ainda por determinar.

O especialista diz, por isso, que há razões para se estar otimista, mas sem deixar de ser cauteloso.

“Ouvir pessoas a dizer que a pandemia acabou é absolutamente errado. Não há semelhança com o que passámos em janeiro de 2021, obviamente, mas comparar a covid-19 a uma gripezinha também é completamente errado. A SARS-Cov-2 tem propriedades distintas e leva a uma taxa de hospitalização e de cuidados intensivos que nada tem a ver. Para pessoas não vacinadas, continuará a ser uma ameaça brutal. Estar a compará-la a uma gripe é um erro”, reforça o clínico, rematando dizendo que as expectativas que são constantemente criadas junto da população por alguns especialistas leva à frustração e também à resistência por parte de algumas pessoas no que diz respeito à tomada de algumas cautelas.

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